Do autoritarismo à higienização social: o Estado de Exceção ainda vive

14/07/2016

Por Michelle Gironda Cabrera e José Carlos Portella Junior - 14/07/2016

Quase um século separa o nosso tempo daquele marcado pela assunção de Hitler à chancelaria (1933) e posterior unificação à presidência (1934). O Partido Nazista chegou ao poder a partir das eleições parlamentares e, após algumas tentativas fracassadas de chegar ao Executivo alemão, fez uma aliança com o Presidente Paul Von Hindenburg, que culminou com a nomeação de Hitler como chanceler.  Em 1934, após a morte de Hindenburg, Hitler toma o poder e logo promulga, em 28 de fevereiro daquele ano, o Decreto para proteção do povo e do Estado, que suspendia os artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades individuais[1]. A higienização social – eliminação total daqueles tidos como inimigos do “são sentimento do povo alemão” – foi o mote do discurso totalitarista daquela época. Judeus precisariam ser eliminados para que a ascensão do discurso de contenção da crise social do entre-guerras vigorasse. Talvez o mais estarrecedor seja o fato de que o extermínio em massa de judeus tenha ocorrido sob a indiferença – e consequente aceitação – de milhões de homens e mulheres que julgavam não valer a pena lutar e morrer em defesa da liberdade.

Erich Fromm aborda a problemática do medo na primeira edição do livro Escape from freedom[2], fazendo-nos questionar sobre se poderia a liberdade tornar-se um fardo por demais pesado para o homem suportar, algo de que ele procurasse escapar. O desejo de reconhecimento e de satisfação condicionam a liberdade e são peças-chave da aceitação, ainda que inconsciente, do autoritarismo e do totalitarismo.

Por que tantos – milhões! – tornam-se incapazes de lutar pela supressão das opressões? Não há dúvidas de que o Terceiro Reich possa ser caracterizado como um estado de exceção, este que, conforme definição de Giorgio Agamben, pode ser compreendido como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo, através da suspensão das normas postas por outras normas ad hoc, conforme a vontade do soberano. Trata-se da potência da vontade soberana, que tem o poder de suspender os direitos daqueles cujas vidas são transformadas em vidas nuas, deixando-os suscetíveis à violência impunível.

A vida humana é capturada como mera vida nua. Ao ser suspendido o direito, a vida torna-se desprotegida como pura vida natural. Em outras palavras, a vida e a morte não pertencem mais às pessoas; a sua existência e a sua memória são apagadas, sua condição humana é diminuída ou eliminada. A vida está em suspensão – claro, a daqueles cujas vidas não merecem serem vividas.[3]

Ocorre que os estados de exceção, apesar de representarem suspensão de direitos, sempre implicam uma referência a um contexto jurídico, o que acaba por lhes conferir suposta legitimidade e ancoragem em uma zona de controle, uma zona de penumbra na qual a suspensão da validade do ordenamento se confunde com sua vigência: terreno fértil para a aceitação e indiferença da massa a esse estado de coisas excepcional. A exceção vira regra. Os estragos são irreversíveis! Apenas quem não conhece a História ousaria discordar.

Segundo Hannah Arendt, a essência dos regimes e movimentos totalitários encontra-se na atomização humana, na perda da capacidade humana de pensar por si próprio, a partir do que o sujeito se demite da condição de ser eticamente responsável – a essência, enfim, do mal que ela chamou de banal.[4] Esse isolamento na esfera política é chamado por Arendt de solidão na esfera social. É essa solidão exatamente o que mais prepara os homens para a perda de sua liberdade e o consequente domínio por estados de exceção.

O chamado homem-de-massa vivencia um mecanismo semelhante ao mimetismo adotado por alguns animais ao se defenderem: torna-se tão parecido com seu entorno que dificilmente é distinguido dele. O comportamento e o pensamento do homem passam a ser dados não mais por seus desejos e vontades, mas por um comportamento padrão do mundo em que vive. Esse comportamento caracteriza um meme[5], que submete o homem a agir e pensar de forma repetida e autômata, acreditando possuir uma ideia quando, em verdade, a ideia é que lhe possui.

Nos estados de exceção, a Constituição pode ser suspensa quanto à sua aplicação, "sem, no entanto, deixar de permanecer em vigor”[6]. Extrai-se daí sua perversa capacidade de se fazer vigente. Reside aí a extrema dificuldade de o homem-de-massa contrapor-se a eles.

Agamben, ao citar Clinton Rossiter, menciona que essa “ditadura constitucional” (ontologicamente inconstitucional e antidemocrática), este estado de exceção, enfim, tornou-se, de fato, um paradigma de governo.[7]

Na experiência brasileira, a Constituição Federal de 1988, garantista e reconhecedora de direitos individuais, como a liberdade e a dignidade humanas, a presunção de inocência, a jurisdição (nela inserido o direito de ser julgado por um juiz imparcial), e direitos sociais, como rede de proteção ao trabalhador, saúde, educação e moradia, não pode ser eficaz frente ao avanço do neoliberalismo. Nas periferias, onde os de vida nua se encontram – aqueles cujas vidas não valem a pena serem vividas –, a Constituição não pode se fazer presente ante a emergência de um modelo de organização social calcado na competição de todos contra todos, no encurtamento do espaço democrático e no sequestro do Estado por uma elite econômica que busca a acumulação acelerada do capital às custas da precarização da vida.[8]

A partir da década de 1990, a periferia do mundo (inclui-se aí a América Latina) rende-se a um modelo econômico capitalista neoliberal, que, no momento atual, se conjuga a pautas conservadoras e antidemocráticas, tendentes a darem respostas simbólicas e superficiais à crise social instalada. Esse modelo foi o responsável por infligir uma cultura do medo sem precedentes, altamente lucrativa para determinados setores.[9] E, mais do que isso, leva àquilo que caracteriza a mentalidade autoritária: a criação de grupos-dentro vs. grupos-fora, que conduz à exclusão social (afinal, só os jogadores mais aptos levam o butim!). A exclusão do outro é vista como um ato necessário à manutenção da própria inclusão.[10]

Hannah Arendt alertou que já foram os judeus os inimigos da vez. No presente, há quem inclua, na categoria de “elimináveis”, os gays e trans, as mulheres, os pobres, os negros, os imigrantes, os filósofos, os artistas, os “comunistas” (aqui, segundo o discurso do homem-de-massa, incluídos todos os que defendem medidas de redistribuição da riqueza). O discurso atual é maniqueísta e encontra-se ancorado numa profunda incapacidade de argumentação. A má interpretação da crise – e das crises mundo afora – gera a necessidade de escolha de inimigos, um bode expiatório capaz de representar todos os desgostos e frustrações do homem-de-massa.

Homens-de-massa necessitam de válvulas de escape, capazes de compilarem todas as culpas das crises, representando, a partir de discursos simplistas, porém, revestidos de alguma legitimidade, suas ideias higienistas – leia-se: “limpeza da podridão”. Eleito o bode expiatório, ele seria capaz de atenuar a culpa de todos. A catarse popular está erguida.

Engana-se quem acredita que a existência de uma Constituição Cidadã possa nos proteger dos estados de exceção. Os percentuais de letalidade da população periférica e da juventude negra decorrente da guerra às drogas, a suspensão de pautas relativas a direitos humanos[11], os linchamentos ocorridos sob gritos de “justiça” nas ruas, o autoritarismo e a parcialidade dos juízes, a violência do sistema prisional, e tudo o mais que cotidianamente legitimam a exclusão, levam à constatação de que o estado de exceção é, em solo brasileiro, a regra. Com esse cenário sombrio de autoritarismo e higienização social, os anos 1930 não parecem tão distantes.


Notas e Referências:

[1] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 12.

[2] Publicado em 1941, com posterior tradução brasileira como O medo à liberdade.

[3] Orlando Zaccone em seu Indignos de vida, relata a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Para tanto, desenvolve análise a respeito das vidas matáveis no contrato social, vidas que não valem a pena serem vividas. ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

[4] Hannah Arendt, em Origens do totalitarismo, parte de uma concepção de mal radical, o que acabou por abandonar, mais tarde, quando da cobertura do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, quando passou a conceber o mal como banal, algo que poderia ser atribuído a qualquer ser humano, desde que perdesse sua capacidade de pensar por si próprio, tornando-se supérfluo, inexpressivo, vazio. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: Anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

[5] Este comportamento é estudado pela memética e o termo meme foi criado por Darwins. DARWINS, Richard. O gene egoísta. Trad. Rejane Rubino. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[6] SCHIMTT, Carl. La dictatura: desde los comienzos del pensamiento moderno de la soberania hasta la lucha de classes proletaria. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 137.

[7] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 21.

[8] A precarização da vida está no bojo do discurso neoliberal, com a defesa virulenta do desmantelamento progressivo do Estado Social, como saída para a crise do capitalismo. Sem direitos sociais e com Estado cada vez ausente na prestação dos serviços essenciais, todos são jogados na arena do mercado, onde as únicas regras inafastáveis são a competição, a meritocracia e o aumento dos lucros. FORRESTER, Viviane. O horror econômico. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo: UNESP, 1997.

[9] O medo, nesse contexto, é a mistura de um sentimento real que decorre da retirada crescente de direitos sociais imposta por políticas neoliberais e de sentimento ilusório criado por políticos que querem se perpetuar no poder e por uma imprensa que defende interesses da elite econômica empenhada no desmonte da socialdemocracia. Em épocas de crise, o medo pode ser um produto rentável e politicamente eficaz para esvaziar o debate democrático sobre medidas supostamente necessárias para a “manutenção da ordem”.

[10] FRAGOSO, Christiano. Autoritarismo e sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 273.

[11] A exemplo, a Portaria n° 611 do Ministério da Justiça, publicada em 22 de junho de 2016, que suspendeu dotações orçamentárias destinadas à proteção da mulher, da igualdade racial, da juventude e dos direitos humanos, seguida do Decreto de 22 de junho de 2016, do Presidente interino Michel Temer, que transferiu a dotação orçamentária do extinto Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos para a Presidência da República.


Michelle Gironda Cabrera. . Michelle Gironda Cabrera  é doutoranda em direito socioeconômico e desenvolvimento na PUC/PR, professora de processo penal, advogada. .

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José Carlos Portella Junior. . José Carlos Portella Junior Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba. Professor de Direito Processual Penal. Advogado. .

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Imagem Ilustrativa do Post: Barbed wire fence in Birkenau (Auschwitz II) // Foto de: Lars K Jensen // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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