DO ALTAR DO CIVISMO À PARTILHA DO DESIGUAL: A SOCIEDADE DE CONSUMO E AS VÍSCERAS DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO

02/03/2018

Coordenador Marcos Catalan

No último dia 05, chamou atenção a fala do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo - Manoel Pereira Calças - quando da cerimônia de sua posse na presidência do órgão, ao fazer a seguinte afirmação: "Acho muito pouco o valor do auxílio-moradia". Minutos antes, ao iniciar o discurso, proferiu o seguinte dizer: "Veneramos no altar do civismo e do espírito público os valores imprescindíveis e imperecíveis para lograrmos a reconstrução do espírito e do orgulho nacional".

É preciso, pois, contextualizar as palavras do magistrado, diante da crítica que este espaço semanalmente tem procurado realizar. Para isso, recorre-se a Jean Baudrillard em seu "A sociedade de consumo", cuja característica marcante demonstra que o mundo no qual estamos inseridos tem sido rodeado por objetos, capazes de transformar os seres humanos em escravos de seus utensílios. Neste mundo, ocorre um fortíssimo controle por máquinas, bens, objetos e serviços, os quais nos distraem e nos desviam daquilo que deveria ser o afazer principal e mais importante. Assim, ao assumirmos nossa submissão aos objetos, logramos a tendência de estar em posições que não deveriam ser as nossas. O foco, muitas vezes, é centrado, antes de mais nada, em signos, que compreendem uma função simbólica de representação do social e que permitem construir um determinado status individual alheio à realidade circundante.

É nesta perspectiva que o Poder Judiciário brasileiro encarna uma disposição de escravo de seus próprios objetos e de suas pautas corporativas, ao se organizar politicamente para a manutenção privilegiada de suas posições numa sociedade conflituosa, excludente e que (re)produz uma estrutura hierárquica, contribuindo para o fosso cada vez mais profundo da desigualdade social. A capacidade que o consumo assume, e sua conexão com a crítica pensada nesta coluna, é o de gerador de um projeto de articulação que representa e expõe um significado arbitrário, que evoca desejos, demandas, paixões e moralismos espúrios, tornando-os obstáculos ao crescimento de uma nação e à diminuição de suas injustiças brutalizadas.

Este arcabouço configura a justificação que o direito impõe como uma tentativa de legitimação do poder de setores da sociedade sobre outro[1]. Essa dita estabilização pensada por Paul Ricoeur é a dupla face de uma mesma pretensão ideologicamente operacionalizada. Ou seja, o direito se manifesta enquanto forma operacional na produção legislativa proveniente do Estado, por intermédio das leis e/ou da produção normativa, no sentido de se legitimar perante a sociedade, ao passo que a segunda forma consiste em extrair sua feição ideológica no modus de atuação dos atores jurídicos, em especial, da magistratura, uma das legítimas representantes de uma classe economicamente dominante, privilegiada e, sobretudo, com alta capacidade de articulação para a defesa de seus interesses.

Baudrillard assevera a necessidade política de manter a desigualdade social calcada em estruturas de privilégios, produzindo e reproduzindo o crescimento como elemento estratégico de disputas no interior das sociedades. Tal crescimento, contudo, não é símbolo de riqueza, pelo contrário, depende diretamente da miséria e da desigualdade entre os indivíduos, os grupos sociais e as classes, o que revela um processo de desmaterialização da realidade. Nesse processo, o Poder Judiciário brasileiro ainda não começou a pensar, tampouco a “descer do altar”.

 

Referências:

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Edições 70: Lisboa, 1995.

FREITAS, Lorena. Além da Toga: uma pesquisa empírica sobre ideologia e direito. Recife: Bagaço, 2009.

RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1977.

 

[1] FREITAS, Lorena. Além da Toga: uma pesquisa empírica sobre ideologia e direito. Recife: Bagaço, 2009. p. 45.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Pau a pique // Foto de: Caetano Lacerda // Sem alterações

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