Ditadores-filósofos versus assembleísmos

08/02/2015

Por Flavio Antônio da Cruz - 08/02/2015

 Rule of law... Conceito importantíssimo. Todos estamos submetidos à lei. E, de certo modo, muitas leis também estão submetidas a todos nós (mas não todas!). Estado de Direito significa que humanos não podemos ser reificados pela burocracia; não podemos ser triturados em redes kafkianas. Estado de Direito também significa que deve haver um mínimo de impessoalidade na atividade de quem nos governa.

Simples assim: sem perseguições e sem apadrinhamentos.

Estado de Direito pressupõe legitimidade e segurança jurídica. Segundo o projeto iluminista, a legitimidade adviria, de certo modo, da aquiescência de quem é atingido pelo poder. E Habermas retoma essa concepção, ao enunciar que uma norma apenas será válida se puder contar com a potencial aquiescência dos seus destinatários, mediante uma hipótese contrafática.[ii]

O poder surge do povo e em seu nome é exercido, diz a Constituição; mas é fato que a Lei Maior parece tratar, ali, de um exercício específico (cuida apenas daquele Poder Soberano mencionado por Foucault).[iii] Na prática, sabemos que há, não raro, grandes distâncias entre o que eleitores querem e o que eleitos fazem. Mas deixo o exame disso para outro dia.

E há necessidade de segurança jurídica, truísmo dizê-lo. Segurança jurídica significa a tutela de expectativas consolidadas na vida social. Significa poder acreditar nas regras do jogo; poder acreditar na palavra empenhada e na limitação do próprio Estado. Significa não ser preso senão depois de um devido processo; não ter o patrimônio confiscado por exações indevidas; não ser alvejado pela indevida supressão de direitos adquiridos com muito esforço.

Estado de Direito - verdadeiro Estado de Direito, que aqui associo ao Estado Constitucional de que falam Peter Häberle[iv] e Luigi Ferrajoli[v] - é aquele em que mesmo as opções legislativas estão submetidas ao crivo da razão. É aquele em que o espaço da vontade, reconhecido ao Parlamento, é contido por opções imemoráveis, por força da dignidade inerente ao outro, enquanto humano. É aquele em que direitos fundamentais servem de freios, e sem contrapesos, para atividade de quem exerce poder em nosso nome.

E vivemos, então, aquele grande dilema.

Por um lado, a ilusão dos ditadores-filósofos platônicos. Afinal de contas, como sabido, Platão imaginava que a sua República deveria ser governada apenas por filósofos. Aqueles com aptidão de encontrar as ideias puras, depois de despirem a realidade de todos os seus detalhes (daí que Platão seja o pai do idealismo, como todos sabemos). E já tivemos o tempo de busca de direito-puro, ou essência do fenômeno jurídico. Platônicos.

Contudo, a ditadura dos filósofos não deixa de ser .... uma ditadura. Enfim. Muitos acreditam, ainda hoje, em despotismo esclarecido. Tenho lá minhas dúvidas, conquanto não possamos abrir mão da crença na razão superando desejos e frustrações (o espaço da vontade).

No lado oposto, senhores, o que temos? Temos o assembleísmo. Como se fosse possível conferir legitimidade para as opções - para todas as opções - pelo simples fato de haver eleição. E isso não pode ser aceito em todo e qualquer caso. Querem um exemplo? Imaginem-se em meio a uma multidão, com alguém gritando: "matamos ou não matamos fulano?" E você é o fulano! Até que ponto o seu direito de viver pode ficar na dependência da escolha dos demais?

Stuart Mill falava em ditadura de maiorias.[vi] E isso não é oxímoro.

Afinal de contas, democracia demanda forma e conteúdo. E ainda hoje não sabemos exatamente até onde ir. Ficamos a meio caminho entre esses tipos ideais weberianos. De um lado, os ditadores-filósofos das Supremas Cortes, que dizem guardar promessas em nosso nome.  De outro, o risco também das multidões que aplaudem linchamentos e são ávidas por condenações imediatas.

De um lado, Platão, Otto Bachof, Hans Welzel, Hugo Grotius, Thomas de Aquino. Ou seja, todos aqueles com pendores matemáticos. Aqueles que acreditam poder axiomatizar opções valorativas alheias. Acrescento ao grupo Gustave Le Bon, ao evidenciar os riscos das multidões enfurecidas.

 De outro lado, senhores, temos aí Dussel e suas 20 teses de política,[vii] ao enfatizar que a potentia se degrada em potestas, mesmo quando se supõe que o poder seja exercido com boas-razões. Afinal de contas, não raro, a razão parece ser apenas um verniz lançado sobre a vontade (os desejos condicionam a lógica, e não o contrário).

Em um extremo, os juízes-déspotas-esclarecidos-não-eleitos. Magistrados que se vinculam a opções que os antecedem. Mas que, não raro, também projetam seus ideais de vida-boa, suas idiossincrasias e suas ideologias (das quais ninguém totalmente se liberta), mesmo quando dizem atuar em nome da tradição, da cultura, da técnica ou da Constituição. E isso sem que tais opções pessoais possam ser devidamente controladas.

Senhores, nada impede que supremos-juízes também sejam autoritários.

No outro extremo, juízes-eleitos-que-agradam-maiorias. Ou seja, juízes que podem ceder à tentação das urnas, esquecendo que muitas vezes o seu papel é o de decidir contra aquilo que maiorias de ocasião desejam. Maiorias que podem estar enfurecidas, clamando pelo sangue alheio.

Tudo muito difícil. E tudo muito simplificado, sei bem.

Dado que a própria definição e o próprio reconhecimento de direitos fundamentais dependem de visões de mundo (ideais de vida boa),[viii] facilmente podemos ficar reféns de quem quer nos proteger; quem nos limita em nosso próprio nome.

Imaginem aquela mãe zelosa que trancafia o filho adulto em casa, com medo de que ele se perca na realidade violenta em que todos vivemos... Mas viver é correr riscos. E também é assim com a democracia. Deve-se reconhecer a autonomia de cada pessoa, enquanto sujeito da sua própria história.

E aí chegamos à conhecida alegoria do Ulisses acorrentado.[ix]

Acreditamos em pactos entre gerações. Ou melhor, acreditamos no mito da racionalidade das cláusulas de eternidade (art. 60, §4º, CF). Acreditamos ser possível distinguir momentos de lucidez e momentos de loucura históricas. Ainda que saibamos que, não raro, constituições surgem em momentos de ruptura e congregam alianças políticas possíveis.

Ulisses pode se acorrentar para não ouvir o canto das sereias. E isso supõe a suprema-razão pela qual alguém priva a sua própria onipotência (o povo!) em prol da preservação da sua própria subsistência (o povo!). Falo aqui do povo, conquanto sabidamente essa seja a alegoria máxima da própria divindade, que recusa sua onipotência em favor do livre arbítrio humano.[x]

No presente momento histórico, as correntes que contêm Ulisses são indispensáveis. Talvez chegue algum momento em que elas se tornem desnecessárias. E quem contém as correntes? Os juízes supremos acorrentam Ulisses, como todos sabemos.

Não podemos, porém, abrir mão do controle mínimo de racionalidade das opções valorativas dos eleitos. Do contrário, direitos fundamentais de fundamentais teriam apenas o nome.

Tudo equacionado, talvez tenhamos mesmo que ficar com o caminho do meio. Assegurar o controle da racionalidade mínima das leis, a cargo das Supremas Cortes (Estado Constitucional), ao mesmo tempo em que se reconhece que o espaço de criação das normas ainda é a praça pública e que juízes supremos não podem tudo.

Precisamos melhorar, sem dúvida, os mecanismos de controle de quem nos controla. Ou seja, precisamos discutir o sistema de escolha dos supremos-juízes, dado o risco de que simplesmente projetem suas visões de mundo, mesmo quando parecem falar em nome da Constituição. Mais debates, melhores sabatinas, prazos para permanência no cargo! - essa é uma discussão urgente.

Enfim, que sejamos nós os filósofos. E que saibamos que as promessas que a Suprema Corte deve guardar são aquelas feitas em nosso nome. Inabdicáveis promessas de racionalidade. É isso.


Sem título-4

Doutor em Direito do Estado pela UFPR. Juiz Federal Substituto em Curitiba desde 2002.

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[ii] Habermas emprega, para tanto, conceitos desenvolvidos por Charles S. Peirce (auditório universal), Karl Popper (conceito de sociedade aberta) e também por Kant (imperativos categóricos). Leia-se HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa - I: racionalidad de la acción y racinalización social. 4. ed. Tradução do alemão para o espanhol por Manuel Jimenez Redondo. Madri: Taurus, 2003.

[iii] Afinal de contas, há outras perspectivas de exame do poder, como bem revelam as categorias sobre o poder disciplinar/correcional, o biopoder e a tanatopolítica. Leia-se ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Trad. de M. Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 46 e ss.

[iv] HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. Tradução do alemão para o espanhol por Hector Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autônoma de México, 2003.

[v] FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. Volume 2. Teoría de la democracia. Tradução do italiano para o espanhol por Perfecto Ibañez e outros. Madri: Trotta, 2011, p. 9.

[vi] MILL, John Stuart. Utilitarianism, on liberty, considerations on representative government (edição conjunta). Londres: Everyman Paperback Classics, 2001, p. 72 e ss.

[vii] DUSSEL, Enrique. Vinte teses de política. Tradução de Rodrigo Rodrigues. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 43-51. Leia-se também AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. Tradução de Iraci D. Poletti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 115-133.

[viii] Sobre os distintos ideais de vida boa, leia-se FORST, Rainer. Contextos da justiça: filosofia política para além do liberalismo e comunitarismo. Tradução de Denílson Luís Werle. São Paulo: Boi Tempo, 2010, p. 17 e ss.

[ix] ELSTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. Tradução de Cláudia Sant'Ana Martins. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 119-129.

[x] HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Tradução de Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 22.

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Imagem Ilustrativa do Post: Mint Mushmore

Foto de: Neal Fowler

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