Dissonância cognitiva, autoengano e ignorância autoimposta (Parte 1)

14/04/2015

Por Atahualpa Fernandez - 14/04/2015

“No es lo que no sabes lo que  te genera problemas. Es lo que crees que sabes seguro y no es así”. Josh Billings

É conhecido desde a antiguidade que a forma como interpretamos o mundo é muitas vezes o que nos faz sofrer, e não tanto a realidade objetiva exterior. E nossa interpretação do mundo, a construção de nossa experiência subjetiva da realidade, tem suas raízes nas narrativas que produzimos acerca de nós mesmos e do mundo, segundo sejam nossas ideias, crenças, valores, desejos e preferências. Somos os fabricantes dos significados e do sentido (ou “sem-sentido”) que damos à nossa vida.[1]

Também é de sobra conhecido que para Aristóteles a existência separada e autônoma, a formação do indivíduo, de seu caráter, é um logro ético de primeira ordem e no qual intervêm por muito o próprio indivíduo, que se automodela e se faz a si próprio, na medida em que é capaz de eleger seus desejos e resolver seus conflitos interiores, integrando mais ou menos harmonicamente seus distintos “eus”[2]. Quero dizer, ainda que não sejamos sequer artífices parciais dos fatos que nos marcam mais profundamente e de que não elegemos quase nada do que tem maior importância em nossa existência (nosso próprio nome, o momento e o lugar em que nascemos, nossos pais e irmãos, a primeira língua que falamos ou a religião que professamos, etc.), podemos tratar - porque temos essa capacidade, se bem que limitada - de exercer “el trabajado dominio de uno mismo” (P. Bruckner), de “autolegislar-nos”, para dizê-lo com um giro kantiano.

Ademais, somos criaturas complexas que, apesar da evidência de que nossas mentes não são sistemas cognitivos ideais ou ótimos e de sofrermos constantemente a desagradável sensação que provoca o arrependimento e o manter pontos de vista e emoções incompatíveis entre si, desfrutamos do desejo de “consistência interna” e nos esforçamos desesperadamente por manter certa coerência e harmonia de pensamentos, sentimentos e atitudes (S. Blackmore). A razão aparente para isto é que o cérebro vive “a base de su dieta preferida, que se basa en la estabilidad, la certeza y la consistencia; y percibe lo impredecible, lo incierto y lo inestable como amenazas a su supervivencia; una supervivencia que, de hecho, es la nuestra”(D. DiSalvo).

Este fenômeno ou “princípio de consistência” é vital para compreender grande parte da conduta e do pensamento humano. Quer dizer, dado que uma parte considerável do mundo exterior é imodificável ou não é modelável de acordo com nossos desejos e caprichos, sentimos a irremediável necessidade de que, às vezes, o que deve ser transformado para salvaguardar nossa saúde psíquica, o que há que cambiar para impedir nossas frustrações, é nossa “alma”, o conjunto interior de nossas preferências, desejos, crenças, valores e oportunidades.

Pois bem, um dos modos ou mecanismos para alterar esse conjunto na busca de coerência interna corresponde ao que a psicologia contemporânea conceitua como erupção de “dissonâncias cognitivas” na psique do indivíduo (L. Festinger). Imaginemos aquela tensão interna que sentimos quando nos damos conta (por pouco que seja) de que duas ou mais de nossas convicções, duas ou mais de nossas ideias, ou nossas crenças e nossas condutas entram em conflito: fumas, ainda que “sabes” que o cigarro pode matar-te; comes demasiado, ainda que “sabes” que a gula pode engordar-te ou enfermar-te; não fazes nenhum tipo de exercício físico ou mental, ainda que “sabes” que o sedentarismo e a mangona mental podem prejudicar-te.

Essa desagradável experiência, essa tensão de ver-se atado entre duas forças (pensamentos) contraditórias na mente ao mesmo tempo se conhece como dissonância cognitiva e pode provocar ansiedade, angústia, sentimento de culpabilidade e vergonha. A teoria da dissonância cognitiva[3] ensina que, em uma situação de dissonância, as pessoas fazem todo o possível para reduzi-la, bem alterando seu sistema de crenças para acolher uma ideia nova e recuperar a consistência interna, bem mitigando a importância de um dos elementos dissonantes. Além disso, assinala que a dissonância é uma reação físico-emocional bem ancorada em nossos circuitos neuronais. Não é que dependa exclusivamente de nossa vontade, senão que simplesmente não a podemos evitar quando de repente o mundo arredor se nega a atender ou não cumpre, com suas “obrigações evidentes”, nossas expectativas.

Para tentar funcionar corretamente é necessário resolver a dissonância, tratar de eliminá-la ou evitar as situações e informações que possam aumentá-la: há que intentar reduzir a dissonância por meio da autojustificação, da invenção de novas razões ou justificações para apoiar nossa decisão ou ato. Não suportamos ao mesmo tempo dois pensamentos contraditórios ou incompatíveis, e justificamos dita contradição. Tão pouco podemos fazer uma coisa e pensar outra; esta dissonância necessita ser resolvida e ao final conduz a que acabemos fazendo o que pensamos ou a que acabemos pensando de acordo com o que fazemos.

Recordemos a fábula de Esopo (reescrita por Jean de La Fontaine) da raposa e as uvas. Depois de tentar alcançar as uvas várias vezes em vão, a raposa desiste e se marcha, murmurando: “Provavelmente estavam amargas”. O câmbio de opinião da raposa é um exemplo perfeito de uma estratégia habitual que utilizamos de forma instintiva para reduzir a dissonância. Segundo a teoria da dissonância cognitiva (na qual as pessoas mudam qualquer opinião a fim de manter uma autoimagem positiva), para resolver este tipo de contradição interna, a mente, consciente ou inconscientemente, altera uma das duas ideias opostas (R. Feldman).

Suponhamos que prefiro “A” a “B” sempre e em qualquer caso. Contudo, o contexto no que me movo (meu conjunto exterior de oportunidades) é tal que “A” é mais difícil de conseguir e exige muito esforço; mas “B”, ao contrário, é de fácil acesso e menos exigente. Como um de nossos mecanismos psicológicos adaptativos, a teoria da dissonância cognitiva prediz que, baixo determinadas circunstâncias, a partir desse momento se desencadearão processos em minha mente que acabarão por fazer-me preferir “B” a “A”, sem que intervenha no processo nenhuma decisão consciente de minha parte.

A modificação de meu gosto se deve a mecanismos causais ocultos – ou quase ocultos – à minha consciência. E esse câmbio se produz no mesmo plano ou ordem de preferências: acabei por adaptar-me ao meu contexto de um modo espontâneo, automático, sem que se possa dizer que o tenha feito autonomamente, senão heteronomamente (isto é, forçado pelas circunstâncias exteriores e sem me aperceber de que fui determinado por elas). Neste caso, de adaptação ou busca de consistência interna, podem ocorrer efeitos colaterais perniciosos para minha saúde mental: sentimentos mais ou menos difusos de frustração, culpabilidade, impotência, dúvida, etc., acaso pequenos ou grandes, segundo a importância atribuída a “A”.

E dado que a realidade não tem nem a mais ligeira obrigação de ser amigável ou reconfortante com nossas ideias, desejos, preferências e identidades, quando vivemos um conflito entre nossas crenças, nossos desejos e nossas ações não podemos dar marcha atrás e retificar (ou apagar) o que já fizemos; de modo que ajustamos nossas ideias, valores e preferências para adaptá-los às nossas ações. O que é mais fácil, cambiar algo que fizemos no passado (ou um hábito) ou cambiar nossas ideias, crenças, valores, preferências e desejos?

A opção mais fácil, sobra dizer, costuma ser a última. Assim que temos que inventar novas crenças (ideias, valores, preferências e desejos), cambiar as que temos ou restar importância às crenças (ideias, valores, preferências e desejos) incompatíveis para tentar eliminar a incoerência e aliviar a tensão interna: Fazer dieta é algo que se nota a largo prazo, assim que não tem nenhum problema que tenha deixado de (ou deixe de) fazê-la este fim de semana”; “Por um docinho que comi ontem (ou que coma hoje) seguramente não engordarei muito”; “Já seguirei seriamente minha dieta na semana que vem”; “Depois desta torta de chocolate nunca mais voltarei a comer doces”; “Se posponho meu compromisso pessoal de fazer exercício ou estudar hoje, prometo que farei...”.

Como explica Michael Gazzaniga, quando justificamos nossas ações, o hemisfério esquerdo do cérebro [ao que denomina “intérprete”] “se ocupa de explicar con una intención lógica el por qué de todo lo que hacemos o no hacemos. Elabora un relato continuo de nuestra propia imagen y de nuestras creencias, con lo que justifica todas nuestras acciones (aún las más alocadas o inexplicables) con el fin de que todo lo que hagamos o digamos nos resulte coherente con lo que creemos es nuestra única personalidad. El intérprete se ocupa de que podamos sentir  que nuestra vida es coherente y cuando algún detalle no encaja acomoda el relato mediante la negación o eliminación del detalle molesto. Por lo tanto, es el responsable de los autoengaños, a los que, sin saberlo, todos recurrimos permanentemente. Siempre está a nuestra disposición para crear argumentos razonables – racionalizaciones -, y para justificar acciones que de otra forma serían difíciles de explicarnos a nosotros mismos y a los demás.” [4] Somos o que somos.


Notas e Referências:

[1] Por isso, quando alguém me diz seriamente: "Sei o que vi, o que quero e o que recordo", me encanta pensar: "Não, não o sabes". Temos uma imagem do mundo (pensamentos, preferências, crenças e  memórias) distorcia e construída de uma percepção distorcida e construída, ambas contextuais e ao serviço da narrativa baixo a qual está operando nosso cérebro. Não temos ideia de “por que” fazemos o que fazemos (posto que carecemos de acesso integral aos processos inconscientes que determinam nossas ações e decisões, e tratamos de inventar razões plausíveis despois do fato) e nem sequer podemos confiar em nossos recordos (uma vez que são reconstruídos cada vez que acedemos a eles, e podem chegar a deformar-se ou contaminar-se com outros recordos). Grande parte do que percebemos, recordamos ou pensamos o inventa alegremente nosso cérebro, modificando as instantâneas da realidade como se dispusera de um sofisticado PhotoShop.

[2] “Tú existes, ¿cierto? Pruébalo. ¿Cómo 100 mil millones de neuronas parloteando crean el conocimiento —o la ilusión— de que estás aquí? […] Otra sobrecogedora conclusión de la ciencia de la conciencia es que esa sensación intuitiva que tenemos, de que existe un “yo” director y único que se sienta en el centro de control del cerebro, observando las pantallas de nuestros sentidos y presionando los botones de nuestros músculos, es una ilusión” (S. Pinker). Apesar de que operamos baixo essa ilusão de um “eu” único, estático e imutável, cada um de nós albergamos em nosso interior uma multiplicidade de “eus”, muitos estados do “eu” distintos; e não se trata de uma curiosa aberração, senão o estado natural do ser humano (nota bene: a palavra ilusão não significa que não exista, “existe como fruto de la actividad cerebral que al parecer genera esa ilusión en nuestro propio beneficio” – S. Blackmore). De fato, nem sequer o que chamamos personalidade é algo fixo, coerente e individual; mais bem somos múltiples atores representando uma obra de teatro, tal e como explica Rita Carter em seu livro Multiplicity. Daí a sugestão de introduzir um pequeno câmbio à famosa tese orteguiana: «Yo soy yo [y mis yos sucesivos] y mis circunstancias, y si no los salvo a ellos tampoco me salvo yo». Nas palavras de Miguel de Unamuno, quando duas pessoas se encontram não há duas, senão seis pessoas: “una es como uno cree que es, otra como el otro lo percibe y otra como realmente es; esto multiplicado por dos da seis”. Já disse Montaigne que “estamos por entero hechos de pedazos, y nuestra contextura es tan informe y variada que cada pieza, cada momento, desempeña su papel. Y la diferencia que hay entre nosotros y nosotros mismos es tanta como la que hay entre nosotros y los demás”.

[3] Para que nos entendamos: o conceito de dissonância cognitiva (onde "cognição" é definida como qualquer elemento do conhecimento, incluindo as atitudes, desejos, emoções, crenças, preferências ou comportamentos) surge dentro do paradigma de psicologia social desenvolvido por Leon Festinger e que teve uma importante influência no campo das ciências sociais. O suposto mais importante para explicar este conceito é que todo indivíduo procura lograr a coerência ou consistência interna de suas opiniões e atitudes. Desse modo, as exceções à regra, quer dizer, as inconsistências, serão combatidas com o objetivo de reestablecer a coerência perdida. Estas inconsistências são denominadas «dissonâncias cognitivas» e entanto que são psicologicamente incômodas, fazem com que os afetados por elas tratem de reduzi-las e de restaurar a consonância. Como consequência, a pessoa também buscará evitar aquelas situações e informações que poderiam aumentá-la. Em síntese, constitui uma defesa psicológica  de nosso cérebro “que trata de reducir el desacuerdo entre nuestros sentimientos y la realidad. Y para sentirnos bien hemos de reducirla. Ya que no podemos cambiar la realidad, cambiamos la forma de pensar sobre ella: de la misma manera que el hambre nos lleva a una serie de actos que se orientan hacia quitar el hambre, la disonancia cognitiva, como condición antecedente, nos lleva hacia una actividad dirigida a la reducción de la disonancia” (C. Anne Tavris).

[4] “Todos estamos fabulando de alguna manera. Cuando nos resulta muy difícil decidir entre dos posibilidades, como me caso o no me caso, da igual la decisión porque al final elijas lo que elijas vas a buscar una justificación. Eso significa que también estamos interpretando continuamente nuestras acciones, estamos leyéndonos el pensamiento a nosotros mismos...” (S. Martínez-Conde). Recordemos que a ideia de que a (plena e absoluta) racionalidade é um dos ingredientes da natureza humana forma parte desse tipo de contos ou fabulações, menoscabando a relevância das narrações, dos relatos e das justificações “post hoc” para a tomada de decisões. Quer dizer: a imagem de que a tomada de decisões é um processo puramente racional, analítico e dedutivo, uma busca da verdade objetiva e nada emocional, não é acertada, é um mito. Como D. Kahneman, G. Lakoff, M. Johnson e D. Ariely demonstraram, a mente humana opera de acordo com marcos e mecanismos que tratam de manter o sentido e a coerência. Os mecanismos cognitivos criam “sesgos, interpretaciones y atajos con el fin de eliminar la disonancia cognitiva y la incoherencia. Expresado de forma directa: no toma­mos decisiones de un modo analítico sino narrativo, incluso en decisiones tan aparentemente lógicas y calculadoras como las decisiones jurídicas” (M. Herzenstein, S. Soneneschein  e U. M. Dholakia).


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: Smile // Foto de: jessicahtam // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/jessicatam/4057782618 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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