Coluna Práxis / Coordenadoras: Juliana Lopes Ferreira e Fabiana Aldaci Lanke
O instituto da conciliação é uma antiga tradição portuguesa considerada como dever de honestidade [1] e surge inicialmente no Brasil com as Ordenações Manuelinas (século XVI) [2], quando ao juiz era previsto informar as pessoas envolvidas em conflitos a incerteza sobre quem seria o ganhador e o vencedor da ação e da honestidade em resolver as questões de boa-fé.
Essa prática é observada até a chegada da Constituição do império em 1824, na qual a etapa consensual passou a ter previsão obrigatória diante da necessidade de tentar a conciliação antes da propositura da ação, transformando a conciliação em um dever jurídico conduzido pelos juízes de paz [3].
Com o tempo e o acúmulo de funções, os juízes de paz viam-se cada vez mais envolvidos com finalidades partidárias e representantes de determinados grupos de interesse. Logo, a conciliação não produziu resultados por sua baixa credibilidade. Após a proclamação da República em 1890, a obrigatoriedade da conciliação foi abolida, uma vez considerada dispendiosa e inútil para autocomposição de conflitos [4].
As próximas constituições federais promulgadas não dispuseram sobre a justiça de paz e suas funções primordialmente conciliatórias, relegando-a para a organização dos Estados e ficando a conciliação restrita à prática da Justiça Trabalhista. Aos poucos, o método volta a ser introduzido no sistema processual na área de família em questões de divórcio e alimentos, respectivamente pelas Lei nº 968/49 e Lei nº 5.748/68 e, com o Código de Processo Civil (CPC) de 1973, a conciliação volta a estar presente no transcurso do processo, ganhando novos contornos com a Lei nº 13.105/2015 (CPC).
Como a prática da conciliação no Brasil é antiga, muito se diz sobre a experiência ao longo de anos. As críticas sugerem o conciliador como uma figura que pressiona as pessoas para obter acordos, além de apontarem o tempo exíguo da conciliação no âmbito judicial, inviabilizando uma abordagem voltada para a fala e escuta dos conflitantes.
No âmbito legislativo, as críticas foram consideradas pelo cuidado do legislador em vedar “a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem (artigo, 165, §2º, CPC de 2015) e indicar as diretrizes estipuladas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para garantir a formação e aperfeiçoamento profissional dos conciliadores bem como de seu cadastro com avaliações das pessoas que utilizaram seus serviços. Assim, acredita-se evitar os erros do passado com os juízes de paz, que aplicavam intuitivamente a técnica, eivados de interesses sobre a causa.
A avaliação e a formação profissional contínua são mecanismos que visam proibir o exercício arbitrário da conciliação por alguns profissionais que não observam o caráter colaborativo da abordagem e se utilizam do espaço público para “empoderarem-se” e posicionarem suas opiniões como decisões chanceladas por conflitantes coagidos, uma preocupação que também se estende quando se trata do exercício da mediação [5].
Christopher Moore esclarece que a mediação como área profissional começa a ser desenvolvida a partir de 1960 com a agência de serviços voltados para relações comunitárias criada pelo Ministério da Justiça dos Estados Unidos em 1964.
A difusão da mediação torna a aumentar na décadas de 1980 e 1990 na América do Norte com a criação de espaços para desenvolvimento e prática do mecanismo consensual de disputas pelo governo federal e iniciativas privadas, principalmente na área institucional (facilitar diálogos políticos para formulação de políticas públicas), empresarial (tratar de conflitos interpessoais e interdepartamentais); trabalhista (em grandes corporações ou sindicatos); internacional (conflitos políticos entre Estados); escolar (entre alunos, entre discentes e docentes) [6].
Atualmente existem três principais modelos para o exercício da mediação, o modelo de narrativa dos autores Winslade e Monk, que propõe a reconstrução do conflito através de questionamentos socioculturais dos conflitantes (mediandos) e do próprio mediador (facilitador do diálogo); o modelo transformativo de Folger e Bush, objetivando criar processos de mudança através do conflito com foco na qualidade das relações humanas e o modelo centrado na solução de problemas, da escola de negociação de Harvard e a opção escolhida pelo Judiciário brasileiro quando da normatização da mediação [7].
Pelo atual CPC, o mediador e o conciliador são considerados auxiliares da justiça [8] e o trabalho exercido sob os mesmos princípios [9]: i) da independência, sem influências na condução; ii) da imparcialidade, sem tomar partido de um participante em detrimento do outro por julgamentos ou preconceitos; iii) da autonomia de vontade, todas as decisões são construídas conforme a vontade de cada um; iv) da confidencialidade, todos os assuntos abordados durante a sessão são sigilosos e não pode ser divulgados (isso propicia um ambiente seguro para as pessoas sentirem-se à vontade em expor suas questões); v) da oralidade e informalidade, voltados para reforçar o espaço autocompositivo como lugar de fala sem regras de condutas ou normas a serem observadas; vi) da decisão informada, pois todos os participantes precisam estar conscientes e esclarecidos sobre o que foi combinado.
Também se aplica aos auxiliares de justiça as mesmas regras de ética, que se assemelham aos princípios da mediação [10] e de suspeição e impedimento do magistrado [4], sendo vedado o exercício da advocacia nos juízos onde atuem como mediadores e o assessoramento jurídico do mediando, evitando-se captura de eventuais clientes, influências sobre processo de decisão e etc.
Por buscarem o tratamento de conflitos, tanto a conciliação quanto a mediação não devem sofrer limitações ou serem estigmatizadas. É comum diferenciarem a conciliação da mediação por considerarem a conciliação superficial, com conciliador de perfil intervencionista e com intenção quantitativa em elaborar acordos, dentre outras razões que geraram uma dicotomia inexistente entre as práticas [11].
Certo que a prática forense habituou a compreensão equivocada da conciliação por designações de audiências com durações exíguas e que o entendimento da conciliação e mediação judiciais atualmente sugere diferenças, pois o tratamento da conciliação é focal (aplicável em relações não-continuadas) e da mediação é mais abrangente (aplicável em relações continuadas).
Entretanto, não se deve tomar a prática e o convencionado normativo para determinar diferenças nas formas de tratar o conflito. As inovações legislativas brasileiras acerca da mediação trazem à tona a oportunidade de revistar a conciliação como uma técnica capaz de estimular a construção conjunta da solução pelos envolvidos no problema, com suporte de uma visão prospectiva do conflito.
Os dois institutos utilizam-se de técnicas negociais e comunicativas com compromisso colaborativo, dedicando-se ao restabelecimento da comunicação e à visão positiva do conflito ao percebê-lo em seu caráter transformador. Os métodos não se vinculam diretamente a obtenção de acordos, circunstância que pode acontecer como consequências dos encontros [12].
Até a fundamental diferença apontada entre a sugestão de soluções pelo conciliador na conciliação e a ausência de sugestões pelo mediador na mediação é um ponto questionável, visto as espécies de mediação que seguem uma postura de sugestões, chamadas mediação avaliativa (avaliação técnica do conflito pelo mediador) e binding mediation (as pessoas acordam que em caso de insucesso nas tratativas, a decisão do mediador será vinculante) [13].
Por essas razões, os métodos são aqui considerados paritários em sua essência e ambos compreendidos dentro do novo paradigma da ciência, o pensamento sistêmico.
É possível ilustrar essa relação quando seus profissionais buscam recuperar e desenvolver a sensibilidade em relação ao outro; compreender diferentes visões de realidade legitimadas pela fala e escuta atenta; preparar os conflitantes e aprender com eles novas formas de administrar os conflitos do cotidiano, percebendo-os em sua natureza transformativa.
Notas e Referências
[1] CAMPOS, Adriana Pereira; FRANCO, João Vitor Sias. A conciliação no Brasil e a sua importância como tratamento adequado de conflitos. Revista de Direito Brasileira, v. 18, n. 7, p. 263-281, 2017.
[2] Redação Original. Ordenações Manuelinas. Título III. Capítulo XV. “E no começo das demandas dirá o juiz a ambas as partes, que antes que façam despesas, e se antre eles siguam ódios, e dissenções se devem de concordar (...) porque o vencimento da causa sempre he muito duvidoso: e isso que dizemos de induzirem as partes a concordia, nom he necessidade, mas somente honestidade, nos casos em que o bem poderem fazer”. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/l3p48.htm Acesso em 18 de fevereiro de 2018.
[3] BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Art. 161. Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará Processo algum. Art. 162. Para este fim haverá juizes de Paz, os quaes serão electivos pelo mesmo tempo, e maneira, por que se elegem os Vereadores das Camaras. Suas attribuições, e Districtos serão regulados por Lei.
[4] SILVA. Érica B. Conciliação judicial. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 156-157.
[5] LANKE, Fabiana A. Um processo de “erosão da soberania”: demandas para os novos atores envolvidos e para os tribunais de justiça brasileiros. In: Anais Eletrônicos do I Seminário Nacional de constelações familiares na Justiça. Coords LANKE, Fabiana A.; FERREIRA, Juliana L. Rio de Janeiro: Práxis Sistêmica, 2017, p. 8-12.
[6] MOORE, Christopher W. O processo de mediação: estratégias práticas para a resolução de conflitos. Porto Alegre: ArtMed, 1998.
[7] De acordo com as estruturas curriculares para formação básica dos profissionais, vide Resolução 125/2010.
[8] BRASIL. Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Art. 149. São auxiliares da Justiça, além de outros cujas atribuições sejam determinadas pelas normas de organização judiciária, o escrivão, o chefe de secretaria, o oficial de justiça, o perito, o depositário, o administrador, o intérprete, o tradutor, o mediador, o conciliador judicial, o partidor, o distribuidor, o contabilista e o regulador de avarias.
[9] VASCONCELOS, Carlos E. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 226-229.
[10] Cabe aos profissionais manter o sigilo; esclarecer sobre os métodos e sobre a decisão tomada em conjunto; ser capacitado para o exercício das técnicas e manter-se em aperfeiçoamento profissional; respeitar as leis vigentes; estimular as pessoas à solução de futuros conflitos a partir da experiência autocompositiva;
[11] BRASIL. Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Art. 148. Aplicam-se os motivos de impedimento e de suspeição: II - aos auxiliares da justiça.
[12] SILVA. Érica B. Conciliação judicial. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 181-186.
[6] Em ambos os casos, podem ser realizadas mais de um encontro entre os conflitantes e o tempo de cada sessão pode ser previamente combinado entre os participantes e variar, conforme o caso.
[13] ALMEIDA, Tânia. Mediação de conflitos: Um meio de prevenção e resolução de controvérsias em sintonia com a atualidade. Apostila do curso básico de mediação de conflitos do Mediare. Rio de Janeiro: Mediare, abr/jun 2016, p. 39.
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