Cada vez mais precisamos pensar sobre direitos e garantias fundamentais atrelados ao ambiente tecnológico (e à tecnologia em geral).
Como exemplo negativo, Soares e Borri (2024) destacaram privilégios do MP-PR no Projudi, abordando a dificuldade concreta de verificar-se a paridade de armas.
Eles destacam sobre a assimetria e desigualdade o seguinte exemplo, demonstrativo de privilégio que viola a paridade de armas no âmbito criminal: “aponta-se a seguinte situação: o advogado é intimado e se mantém inerte, ao término do prazo o sistema gerará automaticamente a movimentação processual de decurso de prazo. Todavia, o mesmo não acontece quando o Ministério Público adota idêntico comportamento, ou seja, o sistema não gera uma movimentação processual de decurso de prazo.” (SOARES; BORRI, 2024).
E prosseguem: “Por óbvio, a falta de registro da informação no sistema processual não ressuscita os prazos processuais, mas dificulta o controle das partes e dos serventuários, remanescendo sem resposta por que esse registro do decurso do prazo é certificado em relação ao advogado e permanece sem registro em situação idêntica com o Ministério Público. Ademais, a ausência de registro dificulta qualquer controle pela sociedade da atuação do membro do Parquet, além de não deixar anotações que possam servir inclusive de fundamento para atuação dos órgãos disciplinares, como ocorre em desfavor dos advogados que deixam de se manifestar nos autos. Soma-se a isso que, em sede de habeas corpus, em que se exige prova pré-constituída, em muito contribuiria à defesa a demonstração de eventual excesso de prazo imputável à acusação, que seria facilmente comprovada com informação de decurso do prazo do sistema Projudi.” (SOARES; BORRI, 2024).
Bourdieu (2021) explora o grande potencial e efeito de criação do discurso jurídico (como se suas produções e classificações substituíssem o real). Existe o devido processo legal na Constituição Federal, mas existe algo assim de verdade funcionando enquanto regularidade? Existe paridade de armas enquanto regularidade jurídica na seara criminal?
Pois bem. É importante destacar que embora permaneçam as disparidades, os questionamentos sobre violações à paridade de armas no meio digital são velhos. E acompanham a própria instituição do formato digital, assim como as promessas de reforma acompanham a própria existência da prisão: tanto o discurso reformista quanto o de defesa da prisão nascem conjuntamente na história do poder punitivo e das instituições modernas.
Anitua (2010) foi capaz de demonstrar (ao historiar o emergir do poder punitivo) como a hegemonia e a dominância do poder punitivo foi sendo gradativamente construída no continente europeu e como foi possível a sua planetarização e dominação atrelada a discursos legitimantes, com expansão universalizante e totalizante que contou com o saber jurídico e a presença das Universidades e seus especialistas[i].
Os efeitos universalizantes associados ao poder punitivo nunca permitiram que as tentativas humanas de contenção desse poder refletissem uma igualdade ou paridade de armas real, sendo o que chamamos de devido processo legal, prevalentemente um conto platônico (e não a crítica criminológica, como se inverte no senso comum criminológico).
Enfim, dentro do próprio discurso jurídico de (auto)legitimação do poder exercido, vigora a promessa constitucional dessa construção (devido processo legal), prevista no Art. 5º, LIV, da Constituição Federal.
O desrespeito aos procedimentos legais estabelecidos, no caso gerando (mais) desvantagens e prejuízos ao Réu, constitui clara violação ao devido processo legal, comprometendo a lisura do processo e a legitimidade do julgamento (segundo o próprio discurso jurídico legitimante, por menos crítico que seja).
A paridade de armas exige que ambas as partes tenham as mesmas oportunidades processuais sem qualquer vantagem ou benefício corroborando com a dominância do Aparelho de Estado[ii] contra o Réu.
Isso, na inglória busca por um mínimo de respeito à simetria, dentro dos mecanismos constitucionais de contenção da “irracionalidade máxima” do poder punitivo, nos dizeres de Zaffaroni (2013) acerca do papel dos juristas (contraditório e relegitimante, diga-se de passagem).
Dito de outro modo, o que o real da história nos indica, é que a tentativa de romper com a estrutural e intrínseca assimetria material entre Acusação e Defesa na história do poder punitivo esbarra em obstáculos muito robustos: os rituais, símbolos, poderes, autoridades e hierarquias do campo jurídico são estruturalmente reprodutores das condições de (re)produção do poder punitivo.
Quando a Defesa é colocada em situação de desvantagem (na prática extra, pois já parte de desigualdade) em relação à Acusação, seja como for, no meio físico ou digital, a mensagem é clara: não há o menor respeito às regras do jogo fictício enunciado.
Entretanto, uma vez que os discursos legitimantes associados ao poder punitivo o prometeram, resta, ou recai ao poder dos juristas, o dever de resistir às violações experimentadas.
Os penalistas encontram-se na posição mais contraditória, limitada e complexa frente ao avanço do poder punitivo. Mas ainda assim, desde a Análise de Discurso pecheuxtiana, é preciso ousar dizer não e resistir à dominância do poder punitivo, lembrando que inexiste controle e assujeitamento totais, com algum espaço para linhas de fuga e inscrição de diferenças transformadoras.
A atualidade de Pêcheux (2014) se pensarmos nas novas tecnologias e mesmo IAs, envolve a não neutralidade ideológica das práticas, discursos e sujeitos, de modo que o funcionamento hegemônico e dominante é refletido no funcionamento das tecnologias, que precisa ser questionado e transformado.
O caso em questão aborda o funcionamento digital no Projudi, espaço de tratamento de dados pessoais atravessado pela disparidade histórica e estrutural da formação social que envolve o poder punitivo, e desigualdade que se reproduz e re-materializa no ambiente digital, com tons de obviedade.
A reprodução no (e pelo) campo jurídico é particularmente especial em sua capacidade de escamoteamento técnico, para muitos, de razão pura[iii].
Entretanto, é preciso seguir de olhos abertos para a aparente neutralidade tecnológica das sociedades contemporâneas e suas novas formas de violações e controles.
Notas e referências:
ALTHUSSER, Louis. Aparelho Ideológicos de Estado. 15 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2023.
ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. 2 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2022.
ANITUA, Gabriel Ignacio. Historias de los pensamientos criminológicos. Prólogo de E. Raúl Zaffaroni. 2a reimp. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Puerto, 2010.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa. Edições 70, 2021.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.
SOARES, Rafael Junior; BORRI, Luiz Antonio. Privilégios do MP-PR no Projudi: desafios na implementação de paridade de armas CONJUR. 06/08/2024. Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2024-ago-06/privilegios-do-mp-pr-no-projudi-desafios-na-i mplementacao-de-paridade-de-armas//>/ Acesso em: 27 set. 2024.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas: Deslegitimación y Dogmática Jurídico-Penal. Buenos Aires: Ediar, 2013.
[i] Assim gerando, como fórmula Pêcheux (2014) na Análise de Discurso Francesa, os efeitos de obviedade dentro do campo jurídico, em uma descrição que serve de chave crítica à naturalização do “óbvio” (artificialmente construído).
[ii] Sobre Aparelho, lembre-se que "o 'Direito' (ou antes, o sistema real que essa denominação designa, dissimulando-a, já que faz abstração da mesma, a saber: os Códigos + a ideologia jurídico-moral + a polícia + os tribunais e seus magistrados + as prisões etc.) merece ser pensado sob o conceito de Aparelho Ideológico de Estado. (ALTHUSSER, 2022, p. 225). A prática jurídica ao longo dos anos relega às incontáveis violações cotidianas o papel de pequenas questões formais sem afetação material, o que Althusser explica desde a ideologia: "Para que a prática jurídica funcione, basta ideologia jurídico-moral, e as coisas funcionam 'por si sós' já que as pessoas jurídicas estão impregnadas destas 'evidências' que saltam aos olhos" (ALTHUSSER, 2022, p. 109). Althusser (2022) e Bourdieu (2021) explicitam como o Aparelho Ideológico e o Repressivo se complementam no campo jurídico (funcionando enquanto ambos, com o exemplo destacado pelos autores acerca da versatilidade civil-criminal).
[iii] Althusser (2022, 2023) e Pêcheux (2014) exploram como a necessidade de reprodução é "cara" a uma formação social que falhe em reproduzir as próprias condições de (re)produção, de modo que não duraria um ano sequer sem o fazer. Pois a forma jurídica adquire papel central nessa dobra ideológica, criando-se um percurso reprodutor da ideologia dominante sob o manto da técnica e da razão assépticas, apagando-se todos os direcionamentos de fora que explicam o que existe dentro. Embora desde esses autores o direito seja intrinsecamente montado para a desigualdade, é preciso ensaiar práticas transformadoras que consolidem minimamente a paridade de armas. Ou ao menos: que as violações ampliadoras da disparidade de armas sejam tecnicamente questionadas.
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