Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini
Introdução
Uma das novidades mais discutidas dentre as trazidas pela Reforma Trabalhista consiste na possibilidade de indivíduos alcançarem um acordo em âmbito extrajudicial e, ato contínuo, submeterem a avença à homologação judicial. Trata-se de uma forma de composição que dispensa (e evita) o ajuizamento de ação trabalhista, procedimento utilizado por vezes como forma de fraudar o Judiciário.
Surge da franca e legítima comunhão de vontades dos interessados em alcançar o denominador comum para pôr fim ao conflito. E, neste sentido, exige-se a homologação judicial justamente para que funcione como instrumento de pacificação social, extinguindo a controvérsia e apaziguando o ânimo entre as partes.
O procedimento é disruptivo porque representa a possibilidade de o Poder Judiciário reconhecer e chancelar a validade de um acordo alcançado exclusivamente pelos interessados, fora do processo judicial, a fim de fazer repousar sobre ele a segurança jurídica, evitando, assim, o perpetuamento do conflito e o aumento da judicialização. Antes da existência de tais dispositivos legais, nem a legislação nem a jurisprudência dos tribunais trabalhistas davam margem ao reconhecimento de acordos extrajudiciais sobre matéria trabalhista.
A fim de regulamentar tal procedimento, o legislador incluiu um capítulo próprio na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o qual dispõe, em quatro sucintos artigos (do art. 855-B ao art. 855-E[1]), a forma pela qual os interessados devem submeter o ajuste à Justiça do Trabalho.
Em apertado resumo, o procedimento consiste na obrigação das partes interessadas, devidamente representadas por seus respectivos advogados, apresentarem petição conjunta contendo os termos e condições do acordo bem como seus efeitos, com o consequente pedido de avaliação e homologação judicial, a qual deve ocorrer em até quinze dias contados do protocolo do pedido.
Os artigos também preveem que a apresentação da petição conjunta suspende o prazo prescricional da ação quanto aos temas tratados pelas partes, sendo certo que tal prazo apenas voltará a fluir caso não haja homologação do acordo pelo juiz.
Ocorre que, a despeito de as regras apresentarem-se claras e sucintas, com a patente finalidade de estabelecer o procedimento como alternativa eficaz para resolução de conflitos, seus desdobramentos no contexto pragmático judicial não têm sido dos mais tranquilos.
Depois de mais de um ano de vigência da Reforma Trabalhista, é possível constatar um sem número de notícias reportando discussões sobre o tratamento que vem sendo dado pelo Judiciário aos referidos acordos. A discussão gira em torno, principalmente, da recusa por parte dos juízes em homologar integralmente os acordos, sobretudo aqueles que ostentam cláusula de quitação geral por parte do empregado.[2]
Justamente neste aspecto é que debruçamos nossos esforços: na análise da celeuma quanto à discricionariedade conferida ao magistrado para homologar (ou não) tais avenças, em face da necessidade de se reconhecer a autonomia da vontade e a boa-fé objetiva que rege as relações jurídicas, além do próprio papel do advogado enquanto operador do direito.
Transação como forma de resolução de conflitos
O conflito, inerente à natureza humana, pode decorrer das mais variadas situações e tem origem no relacionamento entre indivíduos com interesses contrapostos e resistidos. A relação de trabalho é, por excelência, um tipo de relação que pressupõe a contraposição permanente entre os interesses daquele que explora a atividade econômica (o empresário) e aquele que cede sua força de trabalho para fins da consecução das atividades necessárias ao negócio (o trabalhador).
Não por outro motivo é que das relações de trabalho surge grande parte dos conflitos levados à apreciação do Judiciário no Brasil. Dados estatísticos a este respeito indicam que o país recebeu, no ano de 2016 – ano que antecedeu a Reforma Trabalhista – cerca de 3,9 milhões de novas demandas trabalhistas[3]. Se comparado ao número de desempregados no mesmo ano, que chegou a aproximadamente 3,2 milhões[4], percebe-se a alta taxa de judicialização, que supera até mesmo o número de rescisões contratuais.
Embora não se possa estabelecer uma relação direta entre o número de rescisões contratuais e o número de novas demandas, sabe-se que grande parte destas tem início quando há ruptura contratual, momento a partir do qual o trabalhador sente-se desimpedido para pleitear eventuais direitos não observados durante a vigência do contrato de trabalho evidenciando, sendo o conflito até então subjacente às obrigações contratuais.
No entanto, muitos desses conflitos poderiam ser solucionados por meio de outros mecanismos, tais como os métodos de autocomposição de conflitos, os quais, segundo Carlos Henrique Bezerra Leite, consistem nas hipóteses em que “[...] os litigantes, de comum acordo e sem emprego da força, fazem-se concessões recíprocas mediante ajuste de vontades.”.[5]
A propósito, o mesmo doutrinador, ao esmiuçar a definição do instituto, traz o clássico conceito há muito enunciado por Amauri Mascaro Nascimento, ao afirmar que, na autocomposição:
[...] um dos litigantes ou ambos consentem no sacrifício do próprio interesse, daí ser a sua classificação em unilateral e bilateral. A renúncia é um exemplo da primeira e a transação, da segunda. Pode-se dar à margem do processo, sendo, nesse caso, extraprocessual, ou no próprio processo, caso em que é intraprocessual, como a conciliação (CLT, art. 831, parágrafo único).[6]
Tais definições são suficientes, por si só, para evidenciar que a transação, para que seja válida e aceita como forma legítima de autocomposição de conflitos, não depende de qualquer fator externo, tampouco aval de terceiros não envolvidos na relação que originou o conflito.
Privilegiando a busca pela pacificação social, por uma sociedade justa e solidária, nos moldes apregoados em nossa Constituição (art. 3º, inciso I), a transação merecia, desde sempre, ter ocupado lugar de respeito, qualquer que fosse sua origem. No entanto, isso não ocorreu como propriamente era de se esperar, sobretudo na esfera laboral.
Em regressão histórica, destaca-se que a autocomposição encontra raízes na Antiguidade, embora tenha sido pouco evidenciada durante o Direito romanístico, onde predominara a escolha de árbitros, estranhos à relação litigiosa, na busca por imparcialidade e confiança, as quais eram depositadas na figura de um terceiro. Até aquele momento, preponderava a noção de uma justiça privada, apesar da presença de uma relação tríplice dada pela arbitragem, mas sem intervenção política organizada do Estado.
No ciclo temporal, a função desse “terceiro estranho à lide” foi paulatinamente avocada pelo Estado, através do poder-dever da jurisdição, passando a fazer a justiça pública, sob enfoque de um contexto social e na disponibilidade de uma função própria ao Estado.
Foi por meio da jurisdição, com o estatismo concentrado e refletido na presença dos juízes, que se desenvolveu e consolidou a prática de pacificação dos conflitos de forma legal e efetiva através de um processo justo e igualitário. Com isso, as figuras que a precederam, como os institutos de autocomposição, foram perdendo espaço, dando lugar à jurisdição contenciosa.
Elementos constantes da essencialidade histórica da autocomposição foram acolhidos na jurisdição, por meio legal, como ocorre com as cessões recíprocas feitas pelas partes dentro do processo judicial, homologadas pelo juiz.
Como consequência, a sociedade acostumou-se com a resolução de conflitos quase que exclusivamente por meio da jurisdição estatal. Apenas o que é dado ou decretado pelo Estado pode ser tido como aceito e justo. O senso de boa-fé objetiva e de diálogo na busca pela resolução dos conflitos foi deixado de lado e os efeitos desta negligência histórica com os institutos de autocomposição pode ser sentido pelas altas taxas de judicialização já expostas.
Ao longo dos anos, algumas tentativas de se fazer valer o acordo entre as partes, no que diz respeito à matéria trabalhista, foram testadas. Todas sem sucesso.
O Judiciário, em sua expressiva maioria, jamais reconheceu documentos de transação extrajudicial firmados entre trabalhador e empresa. Também se recusou a aplicar, sob o fundamento de inconstitucionalidade, a sistemática prevista pela Lei 9.958/2000, que incluiu na CLT a previsão de constituição de Comissões de Conciliação Prévia (CCPs), permitindo às partes a negociação de interesses a fim de resolver conflitos, evitando judicialização.
O vértice da fundamentação contrária à aplicação de tais institutos sempre foi a de que o trabalhador, em condição de hipossuficiência perante o empresário, não dispunha de condições para negociar parcelas trabalhistas que, por sua natureza de representarem direitos sociais, são irrenunciáveis, indisponíveis e, assim, não podem ser objeto de transação.
Ademais, sempre que os documentos de transação extrajudicial previam cláusula de quitação, impedindo a parte acordante de ingressar no Judiciário para rediscutir a relação, tal disposição era declarada nula, ao argumento de que impedia o amplo acesso à jurisdição, assegurado constitucionalmente (art. 5º, inciso XXXV).
No entanto, o argumento de indisponibilidade de verbas trabalhistas e impossibilidade de transação, por outro lado, sempre foi ignorado quando se tratava de conciliação firmada judicialmente, no curso do processo judicial, em verdadeiro paradoxo argumentativo.
Essa incongruência trouxe-nos até os dias atuais, com reflexos importantes nas problemáticas que envolvem a aplicação da inovação legislativa trazida pela Reforma Trabalhista, já que, a despeito de existir regras garantindo às partes o direito de alcançarem transação extrajudicial a fim de resolver o conflito, a aplicação de lei e a finalidade da norma não vêm sendo devidamente observadas.
Natureza dos procedimentos de jurisdição voluntária
No intuito de não alijar completamente o trabalhador – parte mais frágil da relação de trabalho – da proteção estatal, o legislador reformista tratou de incorporar à CLT regra procedimental até então inédita no Processo do Trabalho. Foi incluída a possibilidade de um procedimento de jurisdição voluntária com o fito de obter do Estado a chancela final na resolução do conflito.
Perceba-se que a lei não fixou “obrigação” de que acordos extrajudiciais sejam, em qualquer hipótese, reconhecidos e acatados pelo Judiciário, mas, sim, que aqueles acordos noticiados na forma da lei, cujos requisitos legais de validade e constituição estejam presentes, possam contar com a homologação por sentença do Poder Judiciário, como expressão máxima da segurança jurídica e da pacificação social.
Trata-se de procedimento de jurisdição voluntária, a qual, nos dizeres de Humberto Theodoro Júnior, pode ser assim definido:
[...] ao Poder Judiciário são, também, atribuídas certas funções em que predomina o caráter administrativo e que são desempenhadas sem o pressuposto do litígio.
Trata-se da chamada jurisdição voluntária, em que o juiz apenas realiza a gestão pública em torno de interesses privados, como se dá nas nomeações de tutores, nas alienações de bens de incapazes, na extinção do usufruto ou do fideicomisso etc.
Aqui não há lide nem partes, mas apenas um negócio jurídico-processual envolvendo o juiz e os interessados.
Não se apresenta como ato substitutivo da vontade das partes, para fazer atuar impositivamente a vontade concreta da Lei (como se dá na jurisdição contenciosa). O caráter predominante é de atividade negocial, em que a interferência do juiz é de natureza constitutiva ou integrativa, com o objetivo de tornar eficaz o negócio desejado pelos interessados. A função do juiz é, portanto, equivalente ou assemelhada à do tabelião, ou seja, a eficácia do negócio jurídico depende da intervenção pública do magistrado.[7]
Ou seja, é da natureza dos procedimentos de jurisdição voluntária, a exemplo do procedimento de homologação de transação extrajudicial, que o Judiciário exerça mero papel de autoridade estatal para constituir e integrar os efeitos desejados pelas partes, não havendo que se falar, para este tipo de procedimento, em deliberações ou alterações do pactuado por intervenção judicial.
Em outros termos, a função jurisdicional aqui fica prejudicada, já que, fazendo-se um paralelo com o Direito Administrativo – porquanto nos procedimentos de jurisdição voluntária, funciona o Judiciário como órgão representativo do poder administrativo do Estado para gerir interesses privados – tratar-se-ia de verdadeiro ato vinculado. Significa dizer que, uma vez preenchidos todos os requisitos formais pelas partes e, não padecendo o ato de nulidade por afrontar qualquer dispositivo legal, estaria o Judiciário obrigado a conceder a homologação nos moldes pretendidos, sob pena de interferência indevida na esfera particular dos cidadãos.
Todavia, esta natureza e particularidade dos procedimentos de jurisdição voluntária não vem sendo reconhecida, tampouco respeitada, já que, como demonstrado pelas notícias transcritas alhures, grande parte dos acordos deixam de ser homologados ou o são de maneira parcial, deixando de entregar aos interessados a prestação estatal almejada.
Motivos que levam à não homologação dos acordos extrajudiciais e seus contrapontos
O ordenamento jurídico trabalhista, construído ao longo de décadas e fruto de momentos históricos que forjaram socialmente sua atual formatação, parte da premissa quase que inafastável de que os trabalhadores se apresentam hipossuficientes na relação de trabalho e, por tal motivo, não dispõem de condições para negociar diretamente com seu respectivo empregador.
Daí, exsurge o principal e mais proeminente motivo pelo qual os acordos extrajudiciais encontram forte resistência por parte do Judiciário: há uma permanente preocupação com a possibilidade de fraude ou coação do trabalhador na adoção da medida, ainda que a lei tenha tido cautela ao mencionar expressamente, e com razão, que as partes necessariamente deverão estar assistidas por advogados distintos (conforme artigo 855-B, §1º, da CLT).
Por tal motivo, logo após o início da vigência do novo texto legal, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), após reunir seus representantes durante o XIX Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (CONAMAT), entendeu por bem aprovar enunciados que servem como diretrizes aos magistrados na aplicação das novas regras de jurisdição voluntária.
Vale destacar, neste aspecto, que foram aprovados, dentre outros, os seguintes enunciados sobre a matéria:
- JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. ACORDO EXTRAJUDICIAL. RECUSA À HOMOLOGAÇÃO O juiz pode recusar a homologação do acordo, nos termos propostos, em decisão fundamentada.
- HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO EXTRAJUDICIAL I. A faculdade prevista no capítulo III-A do título X da CLT não alcança as matérias de ordem pública. II. O acordo extrajudicial só será homologado em juízo se estiverem presentes, em concreto, os requisitos previstos nos artigos 840 a 850 do Código Civil para a transação; III. Não será homologado em juízo o acordo extrajudicial que imponha ao trabalhador condições meramente potestativas, ou que contrarie o dever geral de boa-fé objetiva (artigos 122 e 422 do Código Civil).
Percebe-se, pois, que a ANAMATRA fixou o entendimento padrão de que o juiz não está obrigado a homologar o acordo apresentado pelos interessados, devendo apenas justificar tal negativa de homologação, de forma fundamentada. Além disso, chegou-se ao consenso de que os acordos extrajudiciais não podem tratar de matéria de ordem pública, tampouco contrariar as regras impostas pela Lei Civil para a transação ou impor condições meramente potestativas ao trabalhador.
O substrato deste entendimento, inclusive, já havia sido manifestado pelo próprio Tribunal Superior do Trabalho (TST), ao editar a Súmula 418[8], a qual garante ao magistrado faculdade plena para homologar ou deixar de homologar avenças em âmbito judicial.
Ocorre que, aqui, merecem atenção especial os precedentes que deram origem à mencionada Súmula, já que, como se verá, seu texto sintético não foi capaz de expressar as verdadeiras hipóteses nas quais o magistrado poderá deixar de homologar determinado acordo.
De início, verifica-se que os precedentes citados pela referida Súmula remontam a um passado longínquo – final da década de 90 e início dos anos 2000 – razão que, por si só, já é suficiente para pôr à prova sua adequação em função da evolução dinâmica e implacável das relações de trabalho e necessidades jurisdicionais.
Destaque-se, em resumo, o que citam alguns dos precedentes que deram origem à Súmula 418:
MANDADO DE SEGURANÇA. NÃO-HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO EM EXECUÇÃO. INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. 1. Ato hostilizado consistente na recusa do Juízo em homologar acordo firmado entre o Sindicato-autor e a Empresa, determinando-se o prosseguimento da execução, com a realização de praça. 2. Inexiste imposição legal ao juiz, dado o princípio da persuasão racional, à homologação de transação. 3. Levando-se em consideração as particularidades do caso, tais como a disparidade entre o valor objeto da execução e o acordado, bem como havendo dúvidas quanto à real abrangência dos integrantes da avença (eram 119 os substituídos e apenas 11 foram enumerados no acordo), não se vislumbra nenhuma ilegalidade na ausência de homologação do acordo, inexistindo o alegado direito líquido e certo a ser protegido pelo presente remédio jurídico. 3. Recurso Ordinário desprovido. (ROMS 533427/1999 – Min. José Simpliciano Fontes de F. Fernandes – Publicação em 16/05/2003). (grifos nossos)
MANDADO DE SEGURANÇA. RECUSA À HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO. INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. Recusa de homologação de acordo individual do substituído firmado com o Banco-reclamado, após prolação de sentença e interposição de recurso ordinário em ação de cumprimento ajuizada pelo sindicato da categoria. Inexiste imposição legal ao juiz, dado ao princípio da persuasão racional, à homologação de transação. Levando-se em consideração a existência de inúmeras petições de acordos protocoladas por quase todos os substituídos, contendo as mesmas condições objetivas (cláusulas e valores a serem pagos), caracterizando verdadeira negociação coletiva, e havendo a expressa discordância por parte do sindicato da categoria, aliado ao fato de já haver nos autos decisão favorável aos substituídos, determinando-se o cumprimento das cláusulas previstas em norma coletiva, não se vislumbra o alegado direito líquido e certo a ser protegido pelo presente remédio jurídico. (ROMS 186/2001-000-17-00.3 – Min. Emmanoel Pereira). (grifos nossos)
MANDADO DE SEGURANÇA. HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO. INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. Na Justiça do Trabalho, toda conciliação, devido a sua importância, deve se cercar de cuidados, tanto é que para ter validade deverá ser homologada pelo juiz. O juiz, no seu papel de conciliador e de conhecedor da lei, deverá verificar a real vontade das partes, especialmente a do Reclamante, bem como se certificar dos reais termos do acordo. Dessa forma, a homologação do acordo não constitui direito líquido e certo do impetrante, pois se trata de atividade jurisdicional alicerçada no livre convencimento do juiz. Recurso conhecido e desprovido. – trecho da fundamentação: No presente caso, verificamos que as partes celebraram acordo, com o pagamento da importância de R$ 2.700,00, e consignaram que o mesmo era por "mera liberalidade e sem o reconhecimento do vínculo empregatício". Posteriormente, o Reclamante peticionou no sentido de que pretendia manter o vínculo empregatício renunciado ao acordo. O Juiz nada mais fez do que respeitar a vontade do Reclamante, que, nesse caso, é irrenunciável por constituir imposição de ordem pública. Dessa forma, a homologação do acordo não constitui direito líquido e certo do Impetrante, pois se trata de atividade jurisdicional alicerçada no livre convencimento do juiz. (ROMS 645012/2000 – Min. Francisco Fausto Paula de Medeiros) (grifos nossos)
Verifica-se pela leitura atenta dos referidos precedentes que a motivação fundamental para a negativa da homologação judicial dos acordos pelos respectivos magistrados esteve intimamente ligada às circunstâncias específicas do caso concreto, seja pelo arrependimento de uma das partes, seja pela constatação de indícios tendentes a fraudar direitos trabalhistas. Destarte, houve evidências, nos casos concretos que geraram os precedentes, de quebra da boa-fé objetiva que deve nortear as relações jurídicas.
A regra textual estampada pela Súmula 418 ignora as particularidades fáticas que a deram origem, passando a atuar como permissivo normativo abstrato e prospectivo para que juízes, em quaisquer circunstâncias, possam se recusar a homologar determinado acordo (ou partes deste), sem receio de terem sua determinação obstaculizada por Mandado de Segurança.
Isso nos leva a concluir que a discricionariedade dada ao magistrado para homologar (ou não) determinada transação não pode ser tão ampla a ponto de frustrar a expectativa das partes interessadas. Ao contrário, a tutela estatal deve se manifestar apenas em casos de fundado receio de fraude ou vício na manifestação de vontade das partes.
Com efeito, as manifestações de vontade das partes, no contexto de um documento negocial, tal qual a transação extrajudicial, devem ser pautadas pelo princípio fundamental da boa-fé objetiva, cuja função é a de estabelecer um padrão ético de conduta para as partes nas relações obrigacionais.
A partir do Código de Defesa do Consumidor (CDC), em 1990, a boa-fé foi consagrada no sistema de direito privado brasileiro como um dos princípios fundamentais das relações de consumo e como cláusula geral para controle das cláusulas abusivas.[9]
Igualmente no Código Civil de 2002, o princípio da boa-fé está expressamente contemplado[10], constituindo um modelo de conduta social ou um padrão ético de comportamento que impõe, concretamente, a toda pessoa que atue com honestidade, lealdade e probidade em suas relações.
Dito isso, o entendimento que se depreende cristalino de nosso ordenamento jurídico é no sentido de que a boa-fé se presume, enquanto a má-fé deve ser provada. Deve-se sempre partir da premissa de que os interessados manifestaram livremente sua vontade e preencheram os requisitos legais para entabularem o negócio jurídico da transação.
Mas há quem discorde deste posicionamento.
A título exemplificativo, destaca-se o posicionamento de Homero Batista Mateus da Silva que, em comentários sobre a inovação legislativa, assim ponderou:
[...] Ninguém duvide do poder de persuasão que o empregador exercerá, durante o contrato de trabalho ou ao seu término, por ocasião do pagamento das verbas rescisórias, para influenciar o empregado a aceitar que a homologação rescisória ocorra via “acordo extrajudicial”.[11]
Não se pode olvidar, de fato, que há discrepância de poderes entre empregador e empregado, tanto na vigência da relação contratual, quanto no momento de seu término. Todavia, com todas as vênias ao entendimento do ilustre jurista, não se pode fechar as portas para os métodos de resolução alternativos à judicialização na mesma medida em que não se pode bloquear o acesso à jurisdição.
Com efeito, o Judiciário sempre estará de portas abertas para deliberar sobre situações de coação ou quaisquer vícios na manifestação de vontade, reconhecendo e anulando fraudes. Não se revogaram os artigos de lei, sobretudo o artigo 9º, da CLT[12], que visam combater toda prática de desvirtuamento de direitos trabalhistas.
A bem da verdade, a inovação legislativa buscou oferecer caminho seguro para se evitar práticas fraudulentas, já que, mesmo antes da previsão do procedimento de jurisdição voluntária, muitos interessados utilizavam-se do processo judicial como meio para obter seu desiderato de maneira fraudulenta, arranjando situações processuais que se travestiam em lides simuladas. a fim de possibilitar a efetivação do acordo com a respectiva obtenção de quitação.
Neste sentido, relembra-se que, nem mesmo o argumento de que os direitos trabalhistas são indisponíveis e, portanto, não transacionáveis, encontra substância quando confrontado com a prática forense, já que acordos judiciais no curso de processos trabalhistas sempre foram celebrados, aos montes, havendo, inclusive, metas institucionais de celebração de acordos que motivam calendários especiais na rotina da Justiça do Trabalho.
Bem por isso, se os direitos trabalhistas fossem, de fato, indisponíveis, irrenunciáveis e não passíveis de transação, as próprias políticas conciliatórias incentivadas pela Justiça do Trabalho estariam em cheque. Os números cada vez mais impressionantes de arrecadação do órgão estatal via acordos judiciais também deveriam ser repugnados, ao invés de aplaudidos.
O que se percebe, portanto, é que os possíveis fundamentos para a negativa de homologação de acordos extrajudiciais, ou homologação parcial destes, partem da premissa de má-fé, de fraude, ou que desrespeitam o próprio instituto da transação e a sistemática dos procedimentos de jurisdição voluntária.
Mas não é só, há ainda uma importante característica que tem passado despercebida perante os estudiosos do assunto, que consiste num velado descrédito imputado à classe da advocacia, já que se ignora o fato de que as partes estão assistidas por advogados, detentores de conhecimento jurídico e capazes de orientar seus clientes sobre a melhor forma de negociar seus direitos.
Da advocacia enquanto múnus público. Fé pública que decorre dos atos do advogado
Como já destacado, o artigo 855-B, em seu “caput” e §1º, exige que as partes interessadas, ao dar início ao procedimento de jurisdição voluntária para homologação da transação extrajudicial, estejam assistidas por advogados distintos.
Interpretação finalística da norma permite concluir, sem maiores dificuldades, que a intenção do legislador é justamente a de permitir que a parte interessada, ao negociar seus direitos e condições para o acordo, possa estar devidamente orientada e manifestar livremente sua vontade.
Ocorre que, ao se recusar a homologar a avença, ou homologá-la parcialmente, o juiz parte da premissa de má-fé não apenas do empregador em face do empregado, mas, também, da má-fé dos causídicos que representam os interessados.
Com efeito, vale sempre lembrar que o magistrado, sem a quebra do respeito que merece, não é o único ator na administração da justiça. A Constituição Federal e o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) enumeram, em muitos de seus dispositivos[13], a importância do papel do advogado enquanto representante dos interesses de seu cliente, na busca pela efetividade do processo.
Mais do que isso, a Lei nº 11.925/2009 reconheceu, especificamente para fins de condução do processo trabalhista, a fé-pública nas declarações do advogado, sob pena de responsabilização pessoal, tendo alterado diretamente o artigo 830, da CLT, para autorizar que o advogado ateste a autenticidade de documentos.
Ora, se o ordenamento jurídico reconhece a importância do papel do advogado na administração da justiça, não pode o magistrado, em sua análise conscienciosa quando da homologação do acordo, ignorar a presença do referido profissional no contexto da transação extrajudicial.
Pensar de maneira contrária significaria, mais uma vez, partir da premissa da má-fé deliberada e, além disso, depreciar o relevante papel desempenhado pelos advogados dos interessados em procedimento dessa natureza.
Negativa de homologação e homologação parcial - risco de esvaziamento do instituto
Não se contesta, por todo o aqui discutido, que a finalidade da inovação legislativa foi a de evitar a judicialização descontrolada no âmbito trabalhista, propiciando o reconhecimento e a concessão de validade aos termos negociados livremente pelas partes, devidamente assessoradas por seus advogados.
Neste aspecto, tratou-se, portanto, de ótima iniciativa.
Todavia, o tratamento que vem sendo dado pelo Judiciário ao instituto tende a esvaziá-lo ou, até mesmo, provocar efeito contrário, qual seja, a multiplicação de demandas a serem resolvidas no âmbito dos Tribunais, os quais ficam obrigados a julgar os recursos decorrentes da negativa de homologação ou da homologação parcial das transações.
Ao ensejo, registramos que há ferrenha controvérsia doutrinária sobre a possiblidade de o magistrado homologar parcialmente este tipo de avença.
Ricardo Pereira de Freitas Guimarães, por exemplo, entende que:
[...] Ressalte-se que, sendo esta solução proposta um processo das partes, cabe ao Juízo apenas homologar ou não pela via da sentença de forma completa o ajuste apresentado, não lhe sendo permitido eventual homologação parcial, salvo se as partes entenderem deslocar eixos do pacto firmado.[14]
Em entendimento oposto, pondera Homero Batista Mateus da Silva:
[...] Sentença, como se sabe, envolve juízo de valor, apreciação dos elementos dos autos e, sobretudo, exposição da livre convicção motivada do magistrado. Logo, ele pode, sim, recusar a homologação ou a fazer parcialmente ou, ainda, com efeitos restritos (por exemplo, a homologação apenas do objeto do processo, tal como acima se apontou para a época das lides simuladas. Com efeito, o juiz pode não se sentir à vontade para quitar 5, 10, 15 ou 20 anos de contrato de trabalho diante de um acordo de R$2.000,00 calculados sobre o valor das verbas rescisórias. Ou, ainda, pode homologar as verbas rescisórias, mas não as pendências que foram acrescidas.[15]
Guardado o devido respeito a ambos os posicionamentos, parece-nos que o primeiro é o mais acertado. Ora, se a avença constitui a representação máxima dos entendimentos das partes, corolário da livre manifestação de vontade, todas as condições previstas no instrumento do acordo devem ser, integralmente, acolhidas ou rejeitadas. Não se admite meio-termo.
Do contrário, ter-se-á um “acordo” que não representa a vontade de uma das partes, ou mesmo de ambas.
Com todas as vênias, quem deve se sentir plenamente confortável com os termos da avença são as partes nela interessadas e não o magistrado, incumbido de apreciar o documento a fim de conferir-lhe validade. Aqui, reforça-se a máxima de que as relações devem ser interpretadas sob a ótica da boa-fé objetiva, cabendo a prova do contrário, ou seja, de eventual má-fé.
Ao magistrado, incumbe avaliar se a transação preenche os requisitos da lei civil, essencialmente se as manifestações de vontade são feitas de forma livre e desimpedida, no intuito de respeitar a intenção dos interessados na busca pela pacificação social.
Assim, se um acordo contempla, dentre suas cláusulas, a previsão de quitação plena a ser outorgada pelo trabalhador em troca do pagamento a ser feito pela empresa, ou este acordo necessita ser integralmente homologado, por representar a vontade das partes, decorrente de concessões recíprocas, ou integralmente rejeitado, por eventualmente afrontar contra quaisquer dos elementos legais de validade em sua constituição.
Outrossim, em caso de recusa, a decisão precisa ser fundamentada estritamente no que concerne aos aspectos formais de validade, a fim de expor o fundado receio de fraude à legislação ou inadequação da medida.
Data maxima venia, não se trata aqui de tratar a Justiça do Trabalho como mero “órgão homologador de verbas rescisórias”[16], mas, sim, de privilegiar a autonomia privada dos interessados na transação, privilegiando seu aspecto de servir como alternativa à judicialização.
Há que se ter em mente que a transação pressupõe “res dubia". Nenhuma das partes interessadas tem absoluta certeza de seu direito e, por isso, ambas optam pelo caminho da composição, mediante renúncias recíprocas. Este ato precisa ser reconhecido e valorizado pelo Judiciário, na condição de representante estatal.
Frisa-se: se o fundamento para a rejeição dos acordos ou homologações parciais fosse, de fato, a preocupação com a natureza dos direitos transacionados (indisponíveis), nem mesmo acordos judiciais, firmados no bojo das ações trabalhistas e homologados judicialmente, poderiam ter lugar nesta seara laboral.
O fato é que, no atual contexto, há grande confusão entre os intentos da Reforma Trabalhista, sendo certo que a Justiça do Trabalho, órgão que mais sentiu as alterações provenientes do legislativo, tende a preservar sua histórica função de resolver o conflito por meio da jurisdição, ao invés de reconhecer nos métodos de autocomposição uma alternativa para a pacificação social.
Uma das questões que fica é a seguinte: até que ponto insistir exclusivamente na jurisdição estatal, desprestigiando as formas de pacificação via negociação direta entre os interessados, irá contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária, livre de abusos e de riscos de falha na entrega da justiça?
Notas e Referências
[1] CLT. Art. 855-B. O processo de homologação de acordo extrajudicial terá início por petição conjunta, sendo obrigatória a representação das partes por advogado.
- 1º As partes não poderão ser representadas por advogado comum.
- 2º Faculta-se ao trabalhador ser assistido pelo advogado do sindicato de sua categoria.
Art. 855-C. O disposto neste Capítulo não prejudica o prazo estabelecido no §6º do art. 477 desta Consolidação e não afasta a aplicação da multa prevista no §8º do art. 477 desta Consolidação
Art. 855-D. No prazo de quinze dias a contar da distribuição da petição, o juiz analisará o acordo, designará audiência se entender necessário e proferirá sentença.
Art. 855-E. A petição de homologação de acordo extrajudicial suspende o prazo prescricional da ação quanto aos direitos nela especificados.
Parágrafo único. O prazo prescricional voltará a fluir no dia útil seguinte ao do trânsito em julgado da decisão que negar a homologação do acordo.
[2] Alguns exemplos dessas discussões podem ser acessados pelos links a seguir transcritos:
[3] Link para a notícia: https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2017/06/27/brasil-e-campeao-de-acoes-trabalhistas-no-mundo-dados-sao-inconclusivos.htm
[4] Link para a notícia: https://g1.globo.com/economia/noticia/desemprego-fica-em-12-no-4-trimestre-de-2016.ghtml
[5] LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho – 16. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 154.
[6] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito processual do trabalho – 16. Ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 6 in LEITE, Carlos Henrique Bezerra, op. cit., p. 155.
[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil – teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. v. I, 52 Ed, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011, p. 51-52.
[8] Súmula 418, TST: MANDADO DE SEGURANÇA VISANDO À HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO. A homologação de acordo constitui faculdade do juiz, inexistindo direito líquido e certo tutelável pela via do mandado de segurança.
[9] Art. 4º, CDC. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
(omissis);
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
Art. 51, CDC. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(omissis);
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;
[10] Art. 113, CC. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Art. 422, CC. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
[11] SILVA, Homero Mateus da. Comentários à reforma trabalhista – 2 ed. rev. e atual – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 189-190.
[12] Art. 9º, CLT - Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.
[13] Art. 133, CF - O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei
Art. 2º, EOAB. O advogado é indispensável à administração da justiça.
- 1º No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social.
- 2º No processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público.
- 3º No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei.
[14] GUIMARÃES, Ricardo Pereira de Freitas. A reforma trabalhista, a jurisdição voluntária e a homologação de acordo extrajudicial. in Reforma trabalhista - Aspectos jurídicos relevantes. Antonio Carlos Aguiar (Coord.) – São Paulo: Quartier Latin, 2017. p. 320.
[15] SILVA, Homero Mateus da. op. cit, p. 190-191.
[16] SILVA, Homero Mateus da. op. cit, p. 191.
Imagem Ilustrativa do Post: Pequeno mosaico de cubos ou prédios vistos do alto. // Foto de: Cícero R. C. Omena // Sem alterações
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