Discurso de justificação da pena - Introdução (Parte 1)

12/05/2015

Por Salah Khaled Jr - 12/05/2015

(Leia aqui: Parte 2 / Parte 2.1 / Parte 3 / Parte 4)

Praticamente todos os penalistas contemporâneos são reféns de discursos de justificação da pena e, logo, de legitimação do poder punitivo. Com isso digo que procuram responder ao "por que punir?", sustentando que a pena cumpre um dado propósito e que por isso é desejável a sua aplicação. São infinitas as leituras e releituras sobre a questão, expressadas através de variantes isoladas e combinatórias da prevenção geral (+) e (-), prevenção especial (+) e (-) e retribuição.

Minha compreensão da questão tem como postulado a assunção de um horizonte que não é apenas jurídico, mas também político: não vejo como uma estratégia de contenção do poder punitivo – condição necessária para o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito – possa se beneficiar de um exercício de adivinhação sobre a sua essência. Como disse Zaffaroni, "se o saber jurídico-penal decidisse ignorar a função do poder punitivo, reconhecendo sua irracionalidade e sua existência como mero factum, assumiria diante dele a nobre função de projetar normativamente sua contenção para preservar o estado de direito e prevenir os massacres, e recuperaria a dignidade que, em boa medida, perdeu ao longo da história, ao justificar os mais horrorosos crimes de Estado"[i]

Todo discurso que responde ao "por que punir?" inevitavelmente assume um horizonte de crença na bondade do poder punitivo, fazendo com que a interrogação original deslize para a justificação: para intimidar, para ressocializar, para pura e simplesmente castigar, para neutralizar e assim por diante. Com isso são esfaceladas as promessas de rejeição da irracionalidade e os penalistas acabam servindo a um triste – e indigno – papel: a reprodução ideológica do poder punitivo.

Os resultados são verdadeiramente catastróficos, particularmente na América Latina, terra de jardins devastados e com condições muito peculiares, que a diferenciam dos jardins floridos que originaram uma dogmática jurídico-penal que não pode ser tida como universal. O Direito Penal precisa ser confrontado com a realidade e pensado a partir dela, ainda que por séculos os penalistas tenham se preocupado muito mais com a construção de um sistema complexo de conceitos do que com a forma com que tais conceitos dialogam com a realidade. É preciso abandonar a abstração e enxergar a coisa: como disse recentemente Amilton Bueno de Carvalho, enxergar a prisão e não o discurso sobre a prisão.[ii]

Como é possível que um intelectual enojado com as práticas punitivas brasileiras tenha a ingenuidade de aderir a qualquer teoria da pena? Diante da catástrofe que conforma a realidade operativa do sistema penal, como participar de uma profissão de fé que atribui finalidades nobres ao poder punitivo? Finalidades que ele não tem como cumprir e que integram um devaneio jurídico divorciado da realidade concreta da sua manifestação?

Como demonstrou Zaffaroni, as teorias da pena servem a um propósito político de justificação do poder punitivo, estranho ao âmbito de um Direito Penal comprometido com o avanço do Estado Constitucional de Direito. Portanto, como não interessa aos penalistas – ao menos aos que estão comprometidos com a contenção do poder punitivo – legitimar a pena, resta a conclusão de que todas as leituras legitimantes do discurso penológico devem ser rechaçadas.[iii] Todas as teorias que respondem positivamente ao “por que punir?” conformam construções narrativas que – mesmo indiretamente – produzem continuamente catástrofes, visto que suas funções latentes garantem o espaço necessário para a prosperidade irrestrita do poder punitivo e afirmação do totalitarismo: promovem o Estado de Polícia e fragilizam o Estado Constitucional de Direito. Quem não enxerga isso só pode estar sofrendo de cegueira normativa, que obstaculiza a percepção dos cadáveres produzidos pelo direito penal.[iv]

Diante dessas conclusões, fica claro que qualquer discurso verdadeiramente crítico ao arbítrio do poder punitivo no âmbito da aplicação da pena privativa de liberdade deve rechaçar todos os vetores das teorias legitimantes da pena.[v] Não é através de um lamento pela não realização ou realização parcial de uma dada teoria a que se professa aderência que avançaremos. É urgente o rompimento com o sonambulismo dogmático que nega a agonia experimentada pelos recolhidos aos calabouços ilegais que chamamos de presídios. É preciso lutar pela minimização da dor, aceitando que inevitavelmente a pena produzirá sofrimento, algo do qual podemos ter certeza, diferentemente dos devaneios que ocuparam a mente dos penalistas nos últimos séculos. Temos que romper com a síndrome do que Zaffaroni referiu como revelação do penalista: será que o teórico penal recebe a visita de alguma entidade misteriosa ou nos sonhos esta o faz chegar a uma revelação acerca do fim, sentido, objeto ou essência do poder punitivo?[vi]

Não é possível que enquanto a realidade desmente de forma escandalosa todas as funções atribuídas a pena – ignoradas pelo texto constitucional – , os penalistas permaneçam fazendo desse tópico objeto de fetiche, continuando a indagar qual a resposta mais apropriada à singela pergunta “por que punir?”, quando o que interessa é limitar os níveis de dor intencional que são impostos aos que são tragados pelo sistema penal.[vii]

Minha intenção nesta série de colunas consiste em apresentar ao leitor apertadas sínteses e problematizações das teorias da pena de autores contemporâneos que normalmente não são lidos na fonte.  Enfrentaremos as teorias de autores como Faria Costa, Ferrajoli, Roxin, Jakobs e Hassemer. Todas elas justificam – ainda que a seu modo – o poder punitivo, como veremos a seu tempo. São mais do que teorias: são artifícios discursivos de legitimação e como tais, devem ser objeto de uma desconstrução.

Um grande abraço e até a próxima semana.


Veja a Parte 2 na semana que vem!


Notas e referências:

[i] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2013. p.404.

[ii] No Seminário Tolerante Contra a Redução da Maioridade Penal, realizado no dia 05/05 no Foro Central II, em Porto Alegre.

[iii] Como percebeu Carvalho, o “[...] discurso jurídico, em particular jurídico-penal, em razão de sua tradição metafísica, acaba neutralizando as formas de enfrentamento da situação, pois, invariavelmente, remete a discussão de problemas reais ao plano dos fundamentos da punição, dos critérios de definição das penas, do grau de lesão da conduta ao bem jurídico entre outros temas extremamente caros aos teóricos da pena e do delito”. CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre, Editora PUCRS, 2010. p.162.

[iv] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2013. p.39.

[v] O penalista comprometido com a contenção do poder punitivo deve ter como horizonte de ação o combate sem trégua contra toda e qualquer teoria justificante da pena. Essa rejeição deve abarcar necessariamente todas as respostas positivas ao “por que punir?”, o que inclui todas as variantes clássicas e contemporâneas da questão e, logo, vale também para as construções discursivas de autores contemporâneos como Ferrajoli, Faria Costa, Roxin, Hassemer e Jakobs, que não ultrapassam os limites narrativos do justificacionismo.

[vi] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2013. p.403.

[vii] Como observou Christie, “Despues de la muerte, el encarcelamiento es el ejercicio de poder mas severo que el Estado tiene a su disposicion. Todos nosotros tenemos la libertad limitada de alguna manera: forzados a trabajar para subsistir, obligados a subordinamos a nuestros superiores, encerrados en clases sociales o aulas, prisioneros del nucleo familiar . Pero a excepcion de la pena de muerte y la tortura fisica -medidas de uso limitado en la mayoria de lós paises de los que trata este libro-, nada es tan extremo en cuanto a restricciones, degradacion y despliegue de poder como la carcel”. CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p.33.


                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      


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