DISCRIMINAÇÃO NEGATIVA: NEM DIREITO SUBJETIVO, NEM LIBERDADE PÚBLICA, O DEVER DE NÃO DISCRIMINAR

15/03/2018

Assola o cenário nacional uma espécie de incompreensão generalizada nas mídias, redes sociais[i] e mesmo instituições ditas democráticas.

Tal problema se apresenta em torno a um esgarçamento da liberdade de expressão (e de decisão) segundo o qual “a discriminação” (ou seja, as práticas discriminatórias) seriam um ato disponível, ou uma opção legítima, à opinião pública e política no ordenamento jurídico e na ordem social.

Expressão equivocada do pluralismo, da diversidade, da diferença ou simplesmente o mascaramento das mais cruas posturas excludentes, discriminatórias, desumanas e degradantes, a confusão conceitual, conscientemente perversa ou não, atravessa todo o cenário da brutalidade contemporânea.

As influências, ao certo, se dão no comportamento das pessoas e na hermenêutica das instituições – com graus baixíssimos de resistência ante múltiplos retrocessos e baixa capacidade de argumentação e convencimento em termos de filosofia moral e mesmo jurídica.

Cortes constitucionais, quando proferem decisões tal como a que compreende indevido o corpo de corretores zerarem provas do exame nacional do ensino médio quando diante da evidente proposta de soluções com violação de direitos humanos, corrobora esta cultura que tateia totalitarismos, autoritarismos, arbitrariedade e os fascismos na cultura brasileira.

Sem pretender, aqui, instaurar mais uma demanda pela dimensão de judicialização da vida social, mas antes, no intuito de se buscar, nas práticas morais, alguns sentidos problemáticos, apresenta-se como exercício racional indispensável o questionamento desta “naturalização do discriminar”. 

O problema da falsa pretensão de uma liberdade pública de discriminar negativamente

É imperativo questionar a disseminada suposta liberdade – embutida formalmente em outras liberdades públicas – de se ser preconceituoso em nome de algumas bandeiras como, por exemplo, alguma espécie indistinta de conservadorismo ou posicionamento político, ou, ainda, o “politicamente correto”[ii].

Tal  problema foi apresentado e debatido, em dimensão filosófica, por Vladmir Safatle[iii], e certamente é urgente sua projeção na Filosofia do Direito. Para Safatle, apresenta-se por completo intolerável dizer “que a discriminação é legítima na esfera social”, assim como “compreender o exercício do preconceito como um ‘direito’, e não como uma patologia social a ser combatida”.

Para o pensador, no âmbito filosófico, o erro que subsidia tais interpretações reside em uma visão (simplista) da liberdade como possibilidade de afirmação do indivíduo em termo de interesses e escolhas. De modo decisivo, pergunta-se o filósofo: "[...] poderia dizer que, se escolhi ter uma vida sem negros por perto, quem poderia me obrigar ao contrário?".

Ora, se na reflexão filosófica, proposta por Safatle, inúmeros são os aportes para objeção da tal reflexão simplória (mas recorrente), da liberdade, quanto mais se deslocar o questionamento à esfera da Filosofia do Direito.

Nesta, a pergunta-exemplo proposta seria facilmente combatida nos âmbitos da legalidade, da constitucionalidade e da convencionalidade; diversos seriam os planos interpretativos em que tal propositura não seria aceita. O racismo, para ficar no exemplo do pensador, é intolerável e antijurídico e não subsiste em todos aqueles planos, incluindo, ainda, o da Filosofia e Teoria do Direito pós Segunda Guerra Mundial.

A liberdade aparente contida no questionamento de Safatle, referindo-se à concepção equivocada de liberdade, assim, não se sustenta diante da normatividade, da filosofia moral e das condições básicas de convivência coletiva.

É importante ressaltar, portanto, neste contexto, que a toda evidência as práticas discriminatórias negativas[iv], excludentes, preconceituosas, desumanas, degradantes e crueis estão fora do escopo das opiniões políticas, isto por força da Filosofia Política contemporânea, do constitucionalismo contemporâneo e da hermenêutica jurídica e do Direito Internacional dos Direitos Humanos. 

A intolerabilidade moral e jurídica da discriminação negativa

Discriminar negativamente, ou seja, promover “[...] a instrumentalização da alteridade, constituída em favor da exclusão” (CASTEL, 2008, p. 14), portanto, não é nem um direito subjetivo que uma pessoa possa regularmente reclamar – ainda que mascarado por detrás de qualquer outro direito legítimo – nem, tampouco, uma liberdade pública.

Não há igual razão jurídica para se camuflar a intenção discriminatória nas liberdades de consciência, de pensamento, de expressão e outras liberdades públicas.

Novamente, é preciso insistir: sem investir em uma postura punitivista ou maximalista do direito (penal) – em um primeiro momento importa menos identificar crimes envolvidos nas práticas de discriminação do que se fomentar uma cultura da convivência – tem-se que a discriminação configura um ato de ilegalidade, antijuridicidade, inconstitucionalidade e inconvencionalidade, além de sua intolerabilidade moral diante do estado da arte do tema da “discriminação” nas democracias contemporâneas[v].

No plano das mentalidades e das práticas, atualmente, por uma vasta fonte de informações disponíveis em mídias de massa, é possível ter uma boa clareza, mesmo no plano do senso comum, do que efetivamente pode vir a ser ofensivo, depreciativo e que, portanto, deve ser evitado, antes de mais nada, no exercício autocrítico.

É comumente atingível a noção de que há formas vazias circulantes e estereotipadas que não necessariamente correspondem a uma realidade específica da vida de alguém e que, ademais, não justificam uma reificação desta pessoa, seus interesses e seus direitos.

Pode-se aferir, salvo pela obnubilação de algum dogmatismo muito arraigado ou por algum intenso acobertamento ideológico, o que subjuga o outro e pode-se, ademais, controlar a conduta ofensiva.

Se não se aderiu ao costume da autocrítica, talvez essa seja a maior evidência do grau da falta de consciência da não existência da liberdade de discriminar. Parece que insistir na heteronomia seja menos frutífero do que acreditar no desenvolvimento das autonomias. 

A educação formal, não formal e informal para a convivência

O desenvolvimento da prática educativa formal, não formal e informal[vi], deve-se ressaltar, tem sido objeto de diversos ataques de movimentações políticas anti-democráticas, repercutindo seus dogmatismos em decisões legislativas completamente dessintonizadas com os fundamentos cívicos e republicanos da condução dos assuntos coletivos sob uma perspectiva laica e social.

A despeito destes cerceamentos democráticos, em nada se elide o estado da arte das expectativas das práticas educativas no sentido do debate sobre as noções da diversidade e o alargamento destes exercícios críticos da convivência, o que aproximaria em muito a construção efetiva de uma democracia substancial e integral, tolerante, múltipla, pluralista e diversa, garantista e inclusiva, emancipadora e promotora de direitos.

Uma educação e práticas culturais em que se fomentem, entre outras virtudes cívicas, o cuidado e o apreço com a linguagem, com a destinação das palavras em uma ética comunicacional[vii], em apreço aos sentidos com os quais se pode atingir o outro – uma vez que as palavras não são inertes e que são necessárias práticas de algumas formalidades, que não redundem em pensamento formalista, tenderia a assumir uma substância democrática.

Uma educação, ainda, ampla, da qual não se espere vir a constituir obrigações de amor ao outro, nem tampouco obrigações (mas faculdades) de praticar nas vidas individuais tudo o que é possível ou que venha a ser possível num espaço de liberdades públicas e privadas, mas, antes, em que se estimulem diversos níveis de liberdade de coexistência e de viver, observadas segundo o respeito juridicamente indispensável (ante o livre desenvolvimento da personalidade[viii] de cada um), tendo a tolerância como virtude democrática da convivência[ix]

As máscaras da discriminação negativa e a consciência jurídica universal

Mesmo uma pessoa que comprovadamente realizou uma conduta tida por criminosa tem direito a uma esfera de respeito (que não é uma noção subjetiva, mas uma postura de todos diante daquela pessoa), então não se pode desconsiderar a esfera pública[x], que não opera apenas segundos preceitos retributivos, mas executa valores morais e não vingativos ou restaurativos.

Vários discursos, de modo irresponsável, se arrogam da ilícita possibilidade de deliberadamente discriminar, achando regular falar em "gayzismo" e expressões pejorativas afins relacionadas a situações minoritárias, como se houvesse uma superioridade moral nisso. Não há, pelo contrário.

Não se deveria se orgulhar de ser deletério, de formar uma realidade mental alienada que autorize à perfídia, sobre a qual de modo invariavelmente pesa uma reprovação moral decorrente de uma indiferença jurídica basilar que é intolerável: intolerável diante do estado da arte das discussões, do momento dos direitos humanos, das noções do que Cançado Trindade chama de "consciência jurídica universal"[xi].

A toda evidência, tal reprovabilidade jurídico-moral advém de que, quando alguém é preconceituoso, está expondo a toda crueza sua insensibilidade, seu desconhecimento, sua incapacidade de compreensão, seu desapreço pelo outro, sua inabilidade de entender o mundo, sua desabilitação para a diferença e para a convivência; mais longe, sua limitação do amor.

O ato discriminatório é um parecer sobre a condição mental intelectual e a desqualificação de julgamento: da inaptidão para a alteridade, que é um esforço contínuo, é uma construção de estudos, percepções, sensibilidades.

Some-se a este contexto dos pretensos "direitos à discriminação" e as "liberdades do preconceito", a nefasta moda irresponsável de criticar um "politicamente correto" (aliás, bem pouco elaborado), que é totalmente reducionista e, sim, quer garantir um delicioso espaço de gozo do prazer de discriminar, reduzir, eliminar.

O riso contém em si um sabor de superioridade e um alívio de não se estar na situação daquele que é diminuído. Isto é um fato que o “bullying” ensina e que várias linhagens de comediantes atuais expõem em todo o seu ridículo (ridículo para eles e seus espectadores). 

Maturidade democrática e devir minoritário

A assunção de que todos temos internalizados muitos preconceitos e formas de discriminação possíveis parece um primeiro passo de autocrítica: preconceitos decorrentes de gênero (e que prejudicam todas as identidades), de práticas e orientações sexuais, de forma física, de usos linguísticos, de status social, de idade, em uma extensa lista possível que envolve diferenças, singularidades e particularidades identitárias e individuais.

Trabalhar esta realidade com maturidade, assimilando essa abrangência, é um compromisso democrático, ou a ação individual se reduzirá aos elos de uma corrente de preconceitos que nos arrebatou e vai arrebatar outros.

Outros que são desconhecidos, ou nossos pais, nossos irmãos, nossos filhos, nós mesmos – todos nos relacionamos com minorias e podemos nos encaixar em algumas delas, cedo ou tarde.

Para muito mais além, o devir minoritário, ínsito à fragilidade da condição humana, mas também relacional com a liberdade e com a abertura da nomadização, da multiplicidade, da experimentação do viver[xii].

Novas maneiras de relação com as diferenças são urgentes, posto que em termos de identidade, ao humano, nada está definitivo, e a hermenêutica jurídica necessita criar os espaços em que tais liberdades sejam exequíveis, valorosas e protegidas. 

Direito, ética e política: o dever de não discriminar

Hoje a construção dos horizontes de sentido normativo conta com teorias jurídicas tais como a responsabilidade socioambiental pública e empresarial, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e uma consolidada noção de que os direitos humanos não obrigam apenas entes públicos, mas também os privados e, ainda mais: os indivíduos[xiii].

Há, também, um amplíssimo universo da bioética laica[xiv] ao dispor e uma vasta história para informar de práticas mal sucedidas e rearranjos necessários. Sem o recurso à laicidade como mediação interpretativa a democracia resulta inviável.

O Direito (que é potencial e mais e para além do que os juízes ou o Estado fazem) é, sim, mais sofisticado em termos de responsabilidade, de conteúdos morais (não moralistas), de valores e de possibilidades de valorações e discernimento. Tais referências não podem ser descartadas.

Ainda que se objete o caráter prestacional dos direitos humanos, que se adote, então, a dimensão negativa, ou seja: respeitar, não violar, não atacar direitos. Se não se pode realizar um direito com uma prestação material, que não o viole com um ataque, uma ação irresponsável, uma ação antijurídica.

Há, sim, um evidente dever jurídico de não discriminar. Isto é evidente como objetivo constitucional: art. 3, " IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação", que reitera a regulamentação proposta pelos direitos humanos. Eis o compromisso democrático e republicano, jurídico, ético e político.

A pretensa liberdade ou mesmo direito de discriminação não se sustenta juridicamente nos diversos planos de análise, posto sua contramão no sentido de uma cultura da tolerância, da convivência e da ampliação de espaços e possibilidades de existência segundo o livre desenvolvimento da personalidade no devir minoritário.

Além de violar preceitos básicos do sentido de comunidade e da alteridade, a pretensa liberdade de discriminação reafirma potenciais totalizantes, abusivos e anti-democráticos que apenas reafirmam a construção e fortalecimento de estruturas e instituições vocacionadas a violar direitos subjetivos por meio de retrocessos e ir na contramão de espaços de libertação, emancipação e pluralidade existencial.

 

[i] SILVESTRE, Paulo. Quem aguenta tanta opinião (e intolerância) nas redes sociais? Estadão, 29 jun. 2017. Disponível em: < http://brasil.estadao.com.br/blogs/macaco-eletrico/quem-aguenta-tanta-opiniao-e-intolerancia-nas-redes-sociais/>. Acesso em: 13 out. 2017.

[ii] NEVES, Maria Helena de Moura. Do "politicamente correto" ao incorretamente polido. DELTA, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 137-160, 2014.

[iii] SAFATLE, Vladmir.  O preconceito é um exercício da liberdade? Folha de São Paulo, 13 out. 2017. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2017/10/1926639-o-preconceito-e-um-exercicio-da-liberdade.shtml>. Acesso em: 13 out. 2017.

[iv] CASTEL, Robert. A discriminação negativa. Cidadãos ou autóctones? Petrópolis: Vozes, 2008.

[v] BITTAR, Eduardo. Democracia, intolerancia política y derechos humanos: una visión reflexiva a partir de la realidad brasileira contemporánea. Rev. Derecho, Montevidéu, n. 16, p. 47-65, dez. 2017.

[vi] MARANDINO, Martha. Faz sentido ainda propor a separação entre os termos educação formal, não formal e informal?. Ciência & Educação, Bauru, v. 23, n. 4, p. 811-816, dez. 2017.

[vii] APEL, Karl-Otto; CORTINA, Adela. Ética comunicativa y democracia. Barcelona: Crítica, 1990.

[viii] Artigos 22, 26 e 29 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Disponível em: < http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf>. Acesso em: 15 out. 2017.

[ix] UNESCO. Declaração de princípios sobre a tolerância. Disponível em: < http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001315/131524porb.pdf>. Acesso em: 13 out. 2017.

[x] SILVA, Filipe Carreira da. Habermas e a esfera pública: reconstruindo a história de uma ideia. Sociologia, Problemas e Práticas, Oeiras, n. 35, p. 117-138, abr. 2001.

[xi] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. International law for humankind - towards a new jus gentium (I). Recueil des Cours de l'Académie de Droit International de la Haye, v. 316, 2005.

[xii] TÓTORA, Silvana. Devires minoritários: um incômodo. Verve, Perdizes, n. 6, p. 229-246, 2004.

[xiii] Um importante material sobre as esferas de atuação pública, privada e individual, com indicadores que relacionam técnicas de gestão com tutela de direitos e prevenção de danos: LOUETTE, Anne (Org.). Compêndio para a sustentabilidade. Ferramentas de Gestão de Responsabilidade Socioambiental. São Paulo: Instituto AntaKarana, 2007.

[xiv]  Os fundamentos da bioética laica a partir de uma ética sem verdade podem ser encontrados na obra clássica: SCARPELLI, Uberto. Bioetica laica. Milano: Baldini e Castoldi, 1998.

 

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