Direitos dos animais: Humanos e não humanos (Parte 2)

12/05/2015

Por Atahualpa Fernandez - 12/05/2015

“El hombre es un chimpancé que se da aires.” Bert Keizer

Leia a Parte I

Parte II

Tratemos de mirar aos antecessores de Jeremy Bentham, isto é, a Adam Smith e David Hume, ou a qualquer dos filósofos escoceses da escola da “sympathy” (“empatia natural”), para buscar as raízes da teoria de Singer acerca dos direitos dos animais, a qual implica a necessidade de estabelecer uma cadeia simpática entre o agente e o ser que sofre, com a única precisão de que agora se estende o campo da solidariedade até os animais que tem capacidade de sofrimento.

Em realidade, é um passo pequeno e autorizado, desde meu ponto de vista, pela própria forma como os filósofos escoceses analisam o mecanismo da “simpatia”. Como se sabe, Hume trata de fundamentar a ética no naturalismo, baseando na existência de uma emoção simpática a capacidade de entender e valorar os problemas alheios.[1]

Essa linha emotiva se pode estender sem distorção alguma até os animais, porque se trata, na verdade, de uma questão empírica: a de estabelecer se aparecem  ou não emoções desse tipo quando vemos sofrer a um animal. E são poucas as dúvidas de que, em maior ou menor medida, essa classe de simpatia ocorre com certa frequência.  De fato, a empatia estendida aos animais se move de forma muito fluída e difusa em um mundo tão turvo e complexo como o das emoções humanas.

O problema aparece agora por outro lado. Até onde deve levar-se a tarefa de evitar sofrimento aos animais? À medida que os etólogos proporcionam maiores conhecimentos acerca da atividade cognitiva de certos animais, a capacidade de sofrimento se estende crescentemente mais além do terreno puramente físico para alcançar o psicológico. E entramos assim, por essa porta, em um terreno especialmente resvaladiço.

A consciência, o sofrimento e a presença da angústia implicam algo muito mais complexo e difícil de avaliar do que a mera dor física. Os gatos, os cachorros e os cavalos dão mostras de que têm consciência de seu entorno; se experimentam a si mesmos atuando ou não atuando; têm pensamentos e sensações. E segundo demonstram os primatólogos, nossos parentes evolutivos mais próximos entre os símios têm muitas das capacidades mentais que costumamos pensar que são exclusivamente nossas. Apesar da antiga tradição que nos diz o contrário, a consciência não tem nada de especificamente humano. No que outros animais parecem diferir dos seres humanos é a ausência da sensação de um “eu individual”... “E não é que isso seja algo tão desafortunado para eles” (J. Gray).[2]

Deste modo, não haveria que incluir aqui as expectativas frustradas que se produzem a um animal com o qual se experimenta sob anestesia? Inclusive garantindo-lhe a ausência de sofrimentos, não se está atropelando seus direitos a um bem estar futuro que desaparece claramente enquanto entram em um laboratório?

À primeira vista, pode-se pensar que estas objeções são exageradamente extravagantes e alheias ao debate em si. Mas o certo é que as discussões acerca dos direitos morais vêm acentuando-se e sofisticando-se ao longo de muitos séculos de análise da moralidade humana, até fazer-nos entender que não se trata em absoluto de um assunto que se possa despachar com quatro banalidades. Se tivermos que tomar em sério as propostas acerca dos direitos dos animais (e parece que a qualidade dos pensadores implicados no debate exige, como mínimo, essa seriedade) não podemos deixar de lado tais dificuldades.

O próprio termo “direito dos animais” tem merecido, em sua já larga história, certas considerações. O que significa “ter um direito”? Um autor tão empenhado na precisão dos conceitos como R. Dworkin dedica um capítulo inteiro de seu “Talking Rights Seriously” precisamente às respostas, pelo geral contraditórias, que podem dar-se a essa pergunta. No caso mais extremo, a pergunta careceria inclusive de sentido: para um empirista convencido como Bentham não existem mais direitos que os explicitamente reconhecidos pela lei. Um “direito moral” (ou “natural”) para Bentham seria, simplesmente, um disparate.[3]

Inclusive os teóricos de índole mais kantiana propõem profundas dúvidas acerca do alcance que podem ter determinados direitos: o direito à liberdade, à  igualdade, à educação, ao trabalho, etc., que formam parte da grande maioria das cartas constitucionais, resultam ser, uma vez analisados com o devido rigor, muito mais conflitivos do que poderia parecer em um primeiro momento.

Por outro lado, a atual “sobredose retórica” de direitos ameaça constantemente com deixá-los todos em papel molhado. Pretender ter direito a tudo vem a ser como não ter a nada. Fazer efetivos a todos e cada um dos direitos que se nos ocorram, do modo que seja, tem uns custos e acarreta uns sacrifícios sociais que resultarão insuportáveis e se restará de todos e quaisquer direitos por igual, os importantes e os banais, os fundados e os que se inventam “ad hoc”. Portanto, dizer que ter direito é boa coisa, tem custos: os direitos custam.

Assim que não resulta estranho que se tenha que advertir acerca do abuso frívolo do termo “direito”, se é que pretendemos qualificar com ele algo mais que um catálogo de boas intenções. Desde os tempos de H. L. A. Hart se reclama a necessidade de entender que os possuidores de direitos são somente os seres humanos; os animais, em todo caso, seriam sujeitos passivos (“pacientes morais”) com os que mantemos certas obrigações: somente nossa espécie se caracteriza como possuidora de direitos e de deveres, somente os seres humanos têm consciência do que é ser injustamente tratado, da capacidade -atual ou virtual- para reconhecer o que é um direito e para apreciar que forma parte de uma vida digna. A argumentação de Hart, mais de cinquenta anos depois, segue mantendo toda sua evidência.

Por quê? Pois porque sustentar em um sentido forte que os animais têm direitos morais (ou jurídicos) produz profundas implicações dentro de uma teoria ampliada de justiça. Por exemplo, que direitos dessa natureza se possuem, certamente à margem de quem quer que pretenda vulnerá-los ou conculcá-los, implica que não são unicamente os seres humanos quem deve respeitá-los. Por essa via chegamos rapidamente à conclusão de que as vítimas dos predadores têm direitos morais a morrer sem sofrimento e, em última instância, inclusive a viver indefinidamente sem ser acossadas e caçadas pelo homem ou por qualquer outro animal. A ação do gato jogando com um rato antes de acabar com sua vida deveria ser considerada, nessa linha de raciocínio, como moral e juridicamente indigna. E a lista pode ampliar-se de forma quase indefinida até alcançar os limites mais grotescos.

Singer elide de forma implícita esse perigoso terreno, substituindo o termo positivo “direitos dos animais” pelo negativo de “especismo”. Um “especista”  (paralelamente a um machista ou racista) é quem exige vantagens para sua própria espécie, isto é, os que negam aos membros de outras espécies o que se merecem. E isto, para Singer, é algo claramente injusto e está mal: nasce do fato de ter unicamente em conta a perspectiva da própria espécie ou estar claramente predisposto a seu favor. Os animais podem sofrer, e seu sofrimento deveria ter-se em conta.

Sobra dizer que Singer não estende esse pecado mais além de nossa própria espécie, porque, do contrário, muitas das estratégias adaptativas do reino animal deveriam ser consideradas como “imorais” ou  “ilícitas” (nos veríamos obrigados, por exemplo, a falar de «patos violadores»[4]). Esse tipo de prudência parece ser de grande utilidade, na medida em que se pretenda que o rigor alcançado nas discussões acerca do comportamento moral possa estender-se às propostas, evidentes desde logo, de universalização mais além de nossa própria espécie.

Embora a moralidade animal não se trate de uma questão simples de resolver, excluir as criaturas das considerações morais por causa de suas espécies não é mais justificável do que excluí-las por causa da raça, nacionalidade ou sexo. Entre os seres humanos e os animais há pelo menos uma medida comum que permite comparar os males que os fazemos padecer e, eventualmente, escolher entre eles. Essa medida comum é o “sofrimento”. E este é o fundamento último do direito  que deve ser conferido aos animais não humanos: o direito a não ser submetido a um sofrimento (ou dor) atroz de um modo deliberado e inecessário[5].

E uma vez que nenhum ser está desenhado para sofrer inutilmente, a mesma fórmula poderia ser aplicada a todos os animais de todas as espécies. Mas como todas as espécies animais são distintas, não teria sentido “reclamar los mismos derechos para todas ellas. No tiene sentido pedir la libertad de prensa para las gallinas, que no escriben, ni el derecho a estirar las alas para los humanos, que carecen de alas. Lo razonable serí­a conferir derechos especí­ficos a los diversos animales, en función de la especie a la que pertenecen.” (J. Mosterín)

O fundamento dos direitos concretos que seja razoável atribuir aos animais de certa espécie estriba na natureza dessa espécie, codificada em seu genoma. Cada animal tem uma natureza e há que respeitar-lhe proporcionalmente ao grau de “consciência” de que dispõe e deixar-lhe viver conforme a sua natureza. Não há contradição alguma entre os direitos dos animais (em geral) e os direitos dos animais humanos em particular. Porque não é o mesmo conceder um direito, coisa que poderia fazer-se ou não, que  ter que reconhecê-lo. E como “os direitos não existem, se criam”, nesta diferença apostamos muito.

A isso chamaria de bom grado um “humanismo expandido”; um humanismo verdadeiramente universal que trata de comportar-se humanamente (no sentido em que a humanidade é uma virtude) não com os humanos apenas, mas com tudo o que vive ou, em todo caso, com todo o “ser” que sofre. Este o humanismo da maioria das teorias da justiça contemporâneas: um humanismo destinado a eliminar toda e qualquer forma de sofrimento e miséria; quer dizer, de injustiça.

Recordemos que o objetivo, tal como explica Chomsky,  deve ser sempre o de intentar criar a visão de uma sociedade donde impere a justiça; isto significa criar uma teoria social (normativa) humanista baseada, na medida do possível, em uma concepção humanista e firme do lugar que ocupamos na natureza, de intentar estabelecer as conexões entre um conceito da natureza humana que dê lugar às características e virtudes humanas fundamentais e uma noção de estrutura (e funcionamento) social, moral e jurídica donde estas propriedades possam realizar-se e a vida como um todo (animais não humanos incluídos) adquira um sentido pleno.

Viver bem, eticamente, significa estar e se preocupar com tudo aquilo que seja passível de sofrer, de sentir dor: o ser humano completo, ética e responsavelmente comprometido com um humanismo verdadeiramente universal, é o cidadão virtuoso que combina a procura da felicidade pessoal com a exigência de uma solidariedade que transcende sua própria espécie para abarcar até os não humanos que tem capacidade de sofrimento, sob a égide de instituições justas.

Depois de tudo – e salvo para aqueles que acreditam estar somente um pouco por debaixo dos anjos -, a animalidade constitui o estrato central de nossa natureza: seguimos sendo primatas com celulares e computadores; somos todos animais. Animais falantes, animais éticos, animais que aprendem bastante bem..., mas animais ao fim e ao cabo. E tudo o que seja omitir, ignorar deliberadamente e/ou fazer uma abstração da dimensão natural do ser humano, sua natureza animal e sua origem evolutiva é falso e viola a primeira condição de uma autoconsciência esclarecida do que somos: a assunção serena e sem complexos de nossa própria bestialidade.

Assim as coisas - e parafraseando ao oscarizado ator Colin Firth -, a pergunta ainda pendente de resposta é esta: O que é que “anda mal biologicamente” na gente que não está de acordo com os direitos dos animais não humanos?[6]


Notas e Referências:

[1] Nota bene: Hume empregava o termo “sympathy” (“simpatia”), enquanto autores mais modernos, como Martin L. Hoffman, utilizam “empatia”. Alguns autores fazem uma distinção entre estes dois termos, entendendo a “simpatia” centrada em um interesse pelos demais sem sentir necessariamente as mesmas emoções que os demais sentem, enquanto que a “empatia” se centra explicitamente no estabelecimento de uma correspondência entre as emoções de quem as manifesta e as do observador, isto é, imaginando-se a si mesmo “na pele de outra pessoa”. Simon Baron-Cohen, por exemplo, amplia a definição de “empatia”, sugerindo que requer não somente a capacidade de identificar os sentimentos e os pensamentos da outra pessoa, senão também de responder ante seus pensamentos e sentimentos com uma emoção adequada. Também há autores (Frans de Waal) que concebem a “empatia” como uma capacidade neutra (que pode ser algo negativo) e a “simpatia”, relacionada com a ação, como uma capacidade quase sempre positiva. Para os fins dos argumentos aqui articulados emprego os dois termos indistintamente.

[2] Com exceção, ao parecer, unicamente “de los antropoides, los delfines y los elefantes que poseen algo que se asemeje a la autoconciencia” (J. Gray). Mas sequer esta característica parece ser algo tão peculicar dos humanos, posto que já não são poucos os estudos que denunciam a consciência e o livre-arbítrio, por exemplo, como ilusões fabricadas pelo cérebro humano: “fingimos tão bem não ser autômatos comandados por instintos, genes e vieses que passamos a acreditar na própria autonomia”.

[3] Para que nos entendamos, são  “direitos jurídicos” os direitos que dependem do direito: “Dentro de cada sistema jurídico los ciudadanos tienen aquellos derechos que corresponden a lo que las normas de ese concreto sistema les permiten hacer o no hacer o les facultan para obtener o recibir. Si en el sistema jurídico de un Estado X a las mujeres les está prohibido el aborto voluntario, las ciudadanas de ese Estado no tienen en él un derecho jurídico al aborto voluntario.(…) Un “derecho moral” sería aquel interés o aquella posición de ventaja o beneficio que tiene el respaldo o el fundamento en una norma moral.” (García Amado)

[4] Quando um leão mata a uma zebra, mata a zebra, mas não a assassina. Quando um grande tubarão branco copula pela força com uma fêmea, copula com ela pela força, mas não a viola sexualmente, porque não há dimensão moral nessas ações. Não são nem proibidas nem obrigatórias.

[5] Como sustentavam os adeptos do estóico Zenón de Citio: “Todos los pecados son iguales. […] Todo delito es un crimen abominable y no delinquirá menos quien ahogara un gallo sin necesidad que quien lo hiciera con su [propio] padre.”

[6]  De fato, os que afirmam que “os animais não são pessoas” tendem a olvidar que, muito embora seja certo, é igualmente certo que as pessoas são animais. (F. de Waal)


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: Autoria desconhecida // Sem alterações Disponível em: http://streetstyledogs.com/


 

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