Por Marcelo Pertille e Sérgio Aquino – 19/08/2015
O Direito Penal, desde sua construção a partir da proteção do indivíduo frente à liberdade de atuação do Estado, tem se caracterizado ao longo das décadas como instrumento de limitação do poder punitivo. Von Liszt, penalista e idealizador das primeiras teorias sobre o conceito analítico de crime (final do século XIX e início do século XX), enfatizou que esse ramo do saber humano devia ser entendido como a “carta magna do delinquente” porque passou a servir mais como garantia do indivíduo contra os excessos do Estado organizado do que como fator revanchista, fruto de conceitos pouco sólidos de Justiça[1]. O Princípio da Legalidade, consubstanciado na impossibilidade de haver resposta penal diante de fatos que não estivessem narrados como infrações antes da conduta ser externada, consolidou-se como diretriz que caracteriza o Direito Penal de Primeira Geração[2], visto como aquele que foi concebido para homenagear os direitos constitucionais clássicos.
Não é difícil compreender que com o constitucionalismo sendo difundido no ocidente e pregando a concepção de estados de direito, houve a necessidade de se adaptar as normas penais ao respeito à valorização do indivíduo como sujeito de proteção estatal, pois o vetor de orientação das ações estatais surge a partir de uma Constituição apta a expressar os principais valores de convivência comunitária, mas, também, tendentes a limitar o agir arbitrário[3] dessa entidade contra os cidadãos. Passa-se a garantir direitos tidos como fundamentais para a existência digna dos indivíduos.
O princípio da legalidade é o mais importante instrumento de proteção individual no moderno Estado Democrático de Direito porque proíbe (a) a retroatividade como criminalização ou agravação da pena de fato anterior, (b) o costume como fundamento ou agravação de crimes e penas, (c) a analogia como método de criminalização ou de punição de condutas, e (d) a indeterminação dos tipos legais (art. 5º, XXXIX, CR).[4]
O Direito Penal passou a ser visto, então, para além de uma resposta estatal frente a ataques contra bens jurídicos importantes da sociedade, porém como fator de instrumentalização de uma Justiça que permeou o autor do crime como sujeito de direitos. Logo, a harmonização do Direito Penal com os anseios constitucionais que passaram a dominar os modelos políticos da modernidade pediu que a existência de tipos penais e suas punições, assim como as regras de concepção de seu processo, encontrassem equilíbrio com os direitos universais do homem e do cidadão (1789)[5].
Eis aqui o nó górdio do Direito Penal de estados de direito, o qual precisa ser desfeito: definir os bens a serem protegidos e a proporcional punição de seus agressores a considerar os direitos fundamentais dos indivíduos (vítima e criminoso) como partes indissociáveis do conceito de Justiça (para todos). É a partir dessa premissa (tipicamente jusnaturalista no seu sentido racionalista: o direito como expressão de Justiça[6]) que a Dignidade da Pessoa Humana[7] é assegurada como conquista contra as possíveis barbáries estatais e humana as quais possam ocorrer numa verdadeira imagem cinematográfica de uma guerra de todos contra todos.
Essa percepção de Estado Penal, fruto de muitas manifestações sociais que impuseram limites ao punitivismo, deve ser vista como conquista, devendo gerar insegurança coletiva o alargamento injustificado do âmbito de incidência dos reflexos penais. Ocorre que, na atualidade, políticas de segurança pública desencontradas, somadas à midiatização da violência como forma de entretenimento, fazem com que o coletivo, que por lógica democrática devesse valorizar as liberdades, almeje a mão de ferro do Estado em troca (fraude!?) da paz social.
Num primeiro olhar não se desconhece o quanto se mostra sedutora a ideia de uma tutela penal que reflita no agente criminoso, o quanto antes, toda a desaprovação social raivosa fruto da vitimização. Do uso indiscriminado das algemas até a possibilidade de condenações sumárias, o processo penal vai instrumentaliza um Direito Penal que reflete vingança imediata, mostrando-se repulsivo aos direitos humanos em nome da paradoxal necessidade de vingar e externar a fúria coletiva, como se o desejo de direitos mínimos ao outro (ainda que criminoso) não pudesse retornar numa espécie de ciclo vicioso.
Percebe-se que nenhuma dessas práticas mencionadas é expressão de segurança para todos, tampouco de convivialidade, muito menos de paz e democracia. Essa maximização prática do Estado Penal como forma repulsiva à violência, em contraponto ao seu estreitamento teórico em respeito aos preceitos do Estado de Direito, nos últimos tempos, irradia, também, efeitos ao próprio modelo de governabilidade da nossa democracia.
A democracia, “pior forma de governo depois de todas as outras” (Winston Churchill) representa o ideal de uma gerência do coletivo praticada pelo povo, o que, numa visão mais possível de ser concretizada, passa a ser definida como a opção da maioria acerca dos modelos e práticas sociais representadas por grupos denominados partidos políticos. Mesmo que os modelos de escolha dessa maioria possam gerar coerentes reflexões sobre a real existência de um padrão capaz de refletir a opção da maior parte da população[8], tem-se necessário que as escolhas populares (insiste-se: mesmo que discutíveis quanto à forma) possam ter efetividade no que diz respeito à implementação de seus projetos vencedores nas urnas.
A governabilidade e administração dos próprios conflitos aparece aqui como o esclarecimento acerca das condições aptas a viabilizar as estratégias políticas do modelo democrático de escolha. Evidencia-se, a partir desse cenário, não apenas uma percepção radical (no seu sentido de raiz, de se buscar as causas primeiras) acerca de uma responsabilidade de todos com todos, mas, ainda, a necessidade dos diversos atores políticos participarem na elaboração, gerência e efetivação das políticas públicas eleitas como necessárias à manutenção da paz e organização social. Nessa linha de pensamento, Foucault destaca:
[...] a governabilidade implica a relação de si consigo mesmo, o que significa justamente que, nessa noção de governabilidade, viso ao conjunto das práticas pelas quais é possível constituir, definir, organizar, instrumentalizar as estratégias que os indivíduos, em sua liberdade, podem ter uns em relação aos outros.[9]
Os partidos políticos, grupos imediatamente ligados a esse sentido de governabilidade, devem desenvolver, aplicar e fiscalizar os propósitos constitucionais do Estado, não criando e fomentando meras disputas pelo poder como se não reconhecessem seu real papel no contexto representativo que se vive. Mezzaroba explica:
A constitucionalização dos partidos políticos no Brasil, sem dúvida, foi uma aquisição tardia, porém significativa, resta ainda seu reconhecimento formal como instância política vital para a Democracia brasileira. Isso porque, no Brasil, os partidos políticos ainda não foram reconhecidos como cooperadores no processo de formação da vontade do Estado.[10]
Ocorre que não apenas partidos políticos desconsideram a necessidade de colaborar com a governabilidade, mas, também, as demais funções de Estado, como o Judiciário e o Legislativo. Essa circunstância revela-se em práticas judiciais que desconsideram as escolhas populares em julgamentos nos quais a representatividade conquistada nas urnas não é levada ao grau de hermenêutica, ou em produções legislativas que engessam e tornam pouco possível a liberdade de gerir o interesse público tal qual pretendido (e juridicamente possível) pelos modelos vencedores.
É nesse território que o Direito Penal se intersecciona com a governabilidade ou, ainda, reproduz um quadro que, por vezes, a limita. Nos últimos tempos, o Direito Penal, reconhecidamente tido pela criminologia crítica como ramo seletivo e, portanto, corriqueiramente imposto àqueles marginalizados pelo poder do capital, pouco (ou nada) tem contribuído para compreender a complexidade das relações humanas no seu cotidiano. Por esse motivo, reduz essa interação complexa em informações binárias, as quais descarta essa totalidade de significados escondidos nas estórias do réu ao juiz.
Casos de corrupção têm sido alvos constantes dos holofotes do Estado Penal e da mídia vitimizadora. É certo que não se defende que a camada política esteja isenta das responsabilidades penais, mas o problema ganha contornos especiais quando a irresponsabilidade cotidiana no trato com o Direito Penal e seu processo se manifesta nas escolhas democráticas, inviabilizando suas ações numa espécie de denuncismo que se utiliza dos ramos penais para a desconstrução de figuras que personificam o modelo político eleito.
A troca de acusações praticada nos meios de comunicação de massa por parte dos agentes que integram partidos políticos cria uma espécie de nuvem capaz de ofuscar a realidade, invocando movimentos populares, instados pela mesma ira antes comentada, a postar-se em contraposição ao exercício legítimo do poder político. A própria Constituição Federal prevê mecanismos de imunização de determinados agentes políticos (art. 53) e reconhece a importância do Direito Penal. Por esse motivo, o compatibiliza com o exercício daquele poder, mas, ainda assim, não se evita a manipulação das informações que, inseridas no contexto marginalizante do Estado Penal, bloqueiam ou desvirtuam a democracia.
Repisa-se que o Direito Penal não pode e não deve ficar alheio ao contexto político e social, sobretudo porque os bens jurídicos em jogo apresentam elevado valor social, mas o tema merece atenção. Se a partir da construção evolutiva do Direito Penal conclui-se que sua função converge para o exercício da reprimenda quando necessária, em regra, seus reflexos não podem ser demasiadamente agressivos, pois banalizá-lo no contexto que aqui se discute também impede a efetivação da democracia.
Nesse aspecto reforça-se a responsabilidade dos personagens judiciais, pois é certo que a banalização no trato das consequências penais estigmatiza personagens e faz do Direito Penal instrumento de manobra política a embaraçar os anseios da maioria (democracia). Esse ramo do conhecimento não encontrará lugar na isonomia constitucional se entender que a mesma irresponsabilidade constitucional desenvolvida sobre os grupos até então escolhidos (marginalizados economicamente) deve incidir no âmbito político. Não é a punição desmedida ou a provocação de estigmas que se produzirá igualdade judicial de tratamento, muito menos a preservação da Dignidade da Pessoa Humana, em função dos reflexos democráticos que essa prática produz. Jacinto Coutinho, ao reforçar o necessário tratamento igualitário da seara penal, ao referir-se às penitenciárias, ensina:
Ora, venho insistindo — num grito de desespero — que tais estabelecimentos, se vale de fato a Constituição, a dignidade da pessoa humana e a isonomia, não foram feitos para os pobres, nem para os ricos, mas para culpados, sejam pobres ou ricos.[11]
O Direito Penal deve ser concebido como limitador do poder de punir, estabilizado na relação custo/benefício de seus reflexos sob a perspectiva democrática e garantidora de direitos fundamentais, não se podendo negar que seu uso irresponsável no contexto político enfatiza injustiças e corrompe o ideal democrático, inviabilizando a necessária governabilidade.
Notas e Referências:
[1] "[...] a justiça não diz respeito à argumentação racional; que se trata de ser adequadamente sensível e de ter o faro certo para a injustiça. É fácil ficar tentado a pensar nessa linha. Quando deparamos, por exemplo, com uma alastrada fome coletiva, parece natural protestar em ver de raciocinar de forma elaborada sobre a justiça e a injustiça. [...] Qualquer que seja o raciocínio argumentativo, ele só pode intervir partindo da observação de uma tragédia e chegando ao diagnóstico da injustiça. Além disso, casos de injustiça podem ser muito mais complexos e sutis que a estimação de uma calamidade observável. Poderia haver diferentes argumentos sugerindo diversas conclusões, e as avaliações sobre injustiças podem ser nada óbvias". SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 34.
[2] “A primeira geração de direitos dominou o século XIX e é composta dos direitos de liberdade, que correspondem aos direitos civis e políticos. Tendo como titular o indivíduo, os direitos de primeira geração são oponíveis ao Estado, sendo traduzidos como faculdades ou atributos da pessoa humana, ostentando uma subjetividade que é seu traço marcante. São os direitos de resistência face ao Estado”. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 517.
[3] "[...] Quem controla o Direito que controla a vida? O Direito não pode imperar como simples força coercitiva, mas deve existir como garantia da realização da humanidade dos homens". DIAS, Maria da Graça dos Santos. A justiça e o imaginário social. Florianópolis: Momento Atual, 2003, p. 43.
[4] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 5 ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.
[5] 1789 proporciona la sociedad abierta en el sentido de Popper como modelo de esperanza, del mismo modo que, con ésta (y frente al marxismo-leninismo) reconoce y emprende la Historia como abierta o incierta. En particular, resulta decisiva la imagem moderamente optimista del hombre (por ejemplo, en los fines educativos de las Constituciones de los Länder alemanes, pero también en la ejecución penal. Uma mirada a los programas de los partidos políticos alemanes resulta alentadora: si ya el socialdemócrata SPD en su programa de Godesberg de 1959 formuló como ‘valores fundamentales de socialismo libertad, justicia y solidariedade, el liberal FDP, en su Tesis de Friburgo de 1971, citó y postuló incluso directamente 1789, o sea ‘libertad, igualdad y fraternidad’. HÄBERLE, Peter. Libertad, igualdad y fraternidade: 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado constitucional. Traducción de Ignácio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Trotta, 1998, p. 89.
[6] “A idéia do direito não pode ser outra senão a justiça. [...] Estamos portanto autorizados a nos determos na justiça como num último ponto de partida, visto que o justo, tal qual o bom, o verdadeiro e o belo, é um absoluto, isto é, um valor não derivado de nenhum outro”. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 47/48.
[7] “A dignitas é um atributo que se confere ao indivíduo desde fora e desde dentro. A dignidade tem a ver com o que se confere ao outro (experiência desde fora), bem como com o que se confere a si mesmo (experiência desde dentro). A primeira tem a ver com o que se faz, o que se confere, o que se oferta [...] para que a pessoa seja dignificada. A segunda tem a ver com o que se percebe como sendo a dignidade pessoal, com uma certa auto-aceitação ou valorização-de-si, com um desejo de expansão de si, para que as potencialidade de sua personalidade despontem, floresçam, emergindo em direção à superfície. Mas, independentemente do conceito de dignidade própria que cada um possua (dignidade desde dentro), todo indivíduo é, germinalmente, dela merecedor, bem como agente qualificado para demandá-lo do Estado e do outro (dignidade desde fora), pelo simples fato de ser pessoa, independente de condicionamentos sociais, políticos,étnicos, raciais etc. [...] Só há dignidade, portanto, quando a própria condição humana é entendida, compreendida e respeitada, em suas diversas dimensões, o que impõe, necessariamente, a expansão da consciência ética como pratica diuturna de respeito à pessoa humana”. BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade: e reflexões frankfurtianas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 301/302.
[8] http://emporiododireito.com.br/os-para-doxa-da-democracia-por-piergiorgio-odifreddi/
[9] Foucault, M. (2004). A ética do cuidado de si como prática de liberdade. In: M. B. Motta (Ed.), Ética, sexualidade, política (p. 286). Rio de Janeiro: Forense Universitária. REFERÊNCIA CONFUSA.
[10]A reforma política e a crise de representatividade do sistema partidário brasileiro, em www.egov.ufsc.br/portal/sites/.../direito_governanca_e_tecnologia_pdf.pdf
[11] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O núcleo do problema no sistema processual penal brasileiro. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 15, n. 175, p. 11-13, jun. 2007.
Marcelo Pertille é Especialista em Direito Processual Penal e Direito Público pela Universidade do Vale do Itajaí, Advogado e Professor de Direito Penal de cursos de graduação em Direito e da Escola do Ministério Público de Santa Catarina. .
Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino é Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) – Mestrado – do Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED.
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