Por Aderlan Crespo - 21/09/2017
1 - O período humanitário na chamada “Evolução Histórica” do Direito Penal
Provavelmente, todo estudo analítico do Direito, a partir de suas áreas temáticas, está relacionado às suas características anteriores, constituintes do sistema de cada época, o que nos leva a reconhecer a importância das experiências passadas reveladas pela história, como um retrovisor nos permite ver o que não está ao nosso lado ou à nossa frente, mas que sabemos existir ou ter existido e que, portanto, pode ser sim importante para entender a caminhada em curso. Todavia, é preciso duvidar do termo “evolução” já que este sugere um progressivo processo de desenvolvimento, tanto sob o aspecto formal como de material, ou seja, no caso do Direito seria o processo de mudança nas leis e a própria política executada.
Neste diapasão, o período humanitário é aquele que representa a transição entre a Idade Média e a Modernidade, sob o foco de uma perspectiva positiva relacionada a condição humana, isto é, o ser humano passa a ser concebido como sujeito de direitos e o Estado, como manifestação do poder político, deve respeitar os direitos naturais, não podendo o direito positivo proteger práticas desumanas, considerando ser uma nova Era (do Renascimento para o Iluminismo), baseada nas novas idéias, na ciência na vontade popular.
Mas, o que representou de fato, e concretamente, a conquista desse paradigma histórico, em paralelo a conquista do modelo republicano-democrático, que elevou a condição do súdito ocidental-europeu à condição de cidadão?
Em um primeiro momento podemos afirmar que este cenário na Europa, a partir do século XVII, significou uma vitória das massas sobre o poder político centralizado no Rei e no Papa, além de todas as sutilezas negativas presentes no exercício do poder da Igreja como instituição de poder. Mas, em um segundo momento, é possível admitir que as classes superiores não se afastaram do novo modelo político, muito pelo contrário. Foram elas que assumiram o papel de condução da transição, e por isso mesmo se mantiveram nas camadas superiores. Esta situação, de afastamento ou achatamento da “existência” política do povo, fez com que o novo Direito também servisse para exercer o controle sobre os inferiores, porém sob o discurso do bem comum e da vontade popular, resultando, pois, na indiferença existencial do povo, enquanto carecedores de necessidades sociais mediatas e imediatas. A prisão, portanto, tornou-se o lugar privilegiado para os incômodos seres criminosos, basicamente pobres e de raças consideradas inferiores. O denominado período humanitário tornou-se uma pérola nos escritos históricos encontrados nos manuais e artigos de Direito Penal e até de Criminologia. Mas, no que pese todo o destaque positivo feito a este rótulo histórico, nada mais representou, para a massa de despossuídos, que por sinal sempre foi o maior contingente, que uma troca de atores e existência de uma grande máquina punitiva.
2 - A subversividade do sistema penalizante no Estado de Direito
Um possível diagnóstico crítico do atual sistema punitivo, tendo como referência a transição histórica abordada anteriormente, pode denunciar um aperfeiçoamento das técnicas de controle social, ditas de justiça, por meio do ordenamento penal, que produzem exclusão existencial do sujeito já excluído socialmente. Sob um aspecto crítico, baseado na Criminologia Crítica, representa uma grande dicotomia, na medida em que este processo criminalizante das massas se consolidou durante o desenvolvimento do modelo jurídico e político do Estado de Direito. Neste ambiente inovador, que avançou aceleradamente a partir do século XIX, rompeu-se, teoricamente, com a idéia de prevalência de poder político totalizante e desumano. Contudo, na prática, o que mais se percebeu ao longo do século XX foram exemplos de governos arbitrários e de Exceção, especificamente na luta contra as organizações populares de resistência.
Desta forma, o sistema penal ocidental, originado nos países europeus, amadureceu-se com uma dupla face: uma que sorria e acenava favoravelmente aos direitos populares e outra que oprimia, e ainda oprime, severamente todos aqueles que se insurgiram contra os governos autoritários e contra aqueles que estão nas camadas de baixo, quando autores de pequenos delitos. Tornou-se fundamental para a manutenção deste sistema a existência de um Direito Penal violador das garantias individuais. Este Direito Penal de emergência social é um Direito que promove a subversão política e histórica, já que visceralmente submetido aos interesses das classes dominantes.
Considerações finais
O Direito Penal como existe está emoldurado por uma ânsia punitiva que exige produções encarceradoras cada vez mais vingativas, cuja ânsia se retroalimenta do medo propagado contra os mesmos que causavam medo ao longo da história: os de baixo, os diferentes, os pobres, os perigosos inferiores, os de cor, e aproveitando as criativas locuções dos roteiros de filmes e séries, os mutantes, já que são imperfeições humanas que insistentemente convivem com os ditos normais.
Embora seja razoável a elaboração desta reflexão crítica, de cunho político sobre o Direito Penal, e o próprio Sistema de Justiça Criminal brasileiro (postura adotada pela Criminologia Crítica), é necessário que se registre o nítido contraste que se apresenta neste modelo adotado pelos governos ditos democráticos e republicanos ocidentais: o discurso é o do Direito Penal imparcial e impessoal, vinculado ao princípio do Estado Constitucional de Direito; e a prática é a de um Direito Penal Seletivo e Excludente, que se revela como verdadeiramente é: subversivo e elitizado. Eis, portanto, um dos motivos do grande encarceramento dos mesmos e mesmos de sempre!
Notas e Referências:
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica do Direito Penal. Revan. Rio de Janeiro. 1990
CRESPO, Aderlan. Reflexões sobre o uso da linguagem no Direito Penal. Revisitando a retórica. In: Temas para uma perspectiva crítica do Direito. Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2010
MALAGUTI, Vera. Introdução Crítica da Criminologia. Revan. Rio de Janeiro. 2011
MALAGUTI, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Dois tempos de uma História. Revan. Rio de Janeiro. 2003
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. Revan. Rio de Janeiro. 1991
YOUNG, JOCK. A sociedade excludente. Revan. Rio de Janeiro. 2002.
..Aderlan Crespo é Criminólogo e Professor. Mestre em Ciências Penais....
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