Direito penal do “mi-mi-mi” e o PL 4.540/21: sobre como um certo professor está completamente equivocado acerca do furto famélico

24/02/2022

Coluna Cautio Criminalis 

Há umas semanas circulou pela Internet a notícia de que uma parlamentar apresentara no Congresso uma proposta para tornar “sem punição pelo Código Penal” (para usar os termos em que a coisa saiu pela IstoÉ) o furto famélico. Trata-se do PL 4.540/21, protocolado na Mesa da Câmara pela Deputada Federal Talíria Petrone, do Rio, e por outros legisladores.[1] Trá-lo-ei aqui para facilitar à leitora e ao leitor.

Art. 155 [...] §1º Para fins do disposto no caput, considera-se:

Furto por necessidade

I – quando a coisa for subtraída pelo agente, em situação de pobreza ou extrema pobreza, para saciar sua fome ou necessidade básica imediata sua ou de sua família;

[...]

§8º Não há crime quando o agente, ainda que reincidente, pratica o fato nas situações caracterizadas como furto por necessidade e furto insignificante, sem prejuízo da responsabilização civil.

Num desses lapsos momentâneos em que falha o sistema da gente, vai ver é falta de amor-próprio, e não conseguimos conter o impulso de responder a uns aqui e acolá, me enfiei a meter o bedelho no post de um rapaz a quem nomearei somente por “meu interlocutor”, não deixando, entretanto, de assinalar que é um professor de direito (desses aí) e uma autoridade pública estatal. Em poucas palavras, a postagem dava em letras garrafais vermelhas e amarelas: “SURREAL!”; aparecia uma foto irônica da parlamentar autora do PL e a manchete do Projeto. No seu texto (de menos de 140 caracteres), meu interlocutor dissera que estava “esperando os mimizentos” para “defender essa loucura” e que estávamos fechando o ano de 2021 com uma “aberração jurídica”.

Ou seja, temos aí à disposição a opinião de meu interlocutor: inserir no Código Penal uma norma jurídica que impeça a punição do furto famélico é uma aberração jurídica, um mi-mi-mi e uma loucura.

Quando eu o questionei, ele se limitou a dizer que o PL 4.540 “abre espaço para mais problemas e já estamos cheios”, que “tudo o que eu achar absurdo eu vou postar aqui sim” e alguma outra coisa qualquer, que já não me lembro, defendendo o atual Presidente da República – de que ataque eu não sei, pois até então esse indivíduo não havia aparecido na conversa, tampouco eu o mencionei e até agora sabe-se lá de onde saiu a menção. Por fim, saudou-me com a abreviação atual daquilo que os antigos conheceram como abraço, uma prática que transcende a própria espécie humana (o reconhecidíssimo primatólogo holandês Frans de Waal percebera na década de 70, em um baita estudo, que grandes primatas têm o hábito de se abraçarem)[2] e que a pandemia proscreveu: “Abs.” – disse. Então, em resumo, suas ideias são essas: (i) o PL abre espaço “para mais problemas e já estamos cheios” e (ii) o que ele achar absurdo ele posta sim. Bacana.

Bom, vamos tentar entender os eixos teóricos de meu interlocutor e, posteriormente, submetê-los a discussão. Eu creio – porque, novamente, tudo o que ele me deu foram essas duas ou três frases aí de cima, nada mais - haver três possibilidades:

1) Ele crê que a inserção de uma norma específica sobre as consequências jurídicas do furto famélico é uma aberração jurídica, um mi-mi-mi e uma loucura porque (i) a Parte Geral do Código já contempla o esquadro geral sobre o estado de necessidade (art. 23, I; art. 24, CP) e/ou (ii) a literatura e a práxis já são bastante familiarizadas tanto com esse instituto quanto com o princípio da insignificância, que eventualmente se aplicaria, e com a exculpação por inexigência de conduta conformada, que também poderia ter papel.

e/ou

2) Ele crê que a inserção de uma norma específica sobre as consequências jurídicas do furto famélico é uma aberração jurídica, um mi-mi-mi e uma loucura porque, na sua opinião, um tratamento penal menos drástico oferecido pelo Estado a esse comportamento é um estímulo mais forte ao furto do que a fome. Além disso, já que essa discussão envolve o questionamento da hipótese penal preventiva (“criminalizar/punir = prevenir; não criminalizar/não punir = estimular”), possivelmente meu interlocutor crê que tirar o furto famélico do espectro do poder punitivo é coisa de garantista hiperbólico monocular (recentemente lançaram essa), de defensor de bandido, de eleitor do Lula, de abolicionista, de marxista, de esquerdista, de comunista, de artista patrocinado pela Lei Rouanet etc.

e/ou

3) Ele crê que a inserção de uma norma específica sobre as consequências jurídicas do furto famélico é uma aberração jurídica, um mi-mi-mi e uma loucura porque, na sua opinião, quem furta deve ser criminalizado, mesmo que a res furtiva seja resto podre de comida e que o furtador seja um pobre diabo esfomeado catando lixo e alimento na rua para enfiar goela abaixo do jeito que der.

 Vejamos se as suas ideias estão corretas ou incorretas.

2. Discussão

I. Sobre o primeiro eixo teórico de meu interlocutor

Comecemos por alguns dados.

Em 2019, um levantamento da Agência Pública mapeou ao menos 32 casos de subtração de comida pesquisando a palavra-chave “furto-famélico” na busca jurisprudencial do STJ em alguns meses de 2018 e 2019.[3] Nesses precedentes, encontram-se furtos de pacote de milho, caixa de fósforo, salsicha, café, mini-pizzas, legumes, pacotes de biscoito, peixe, dentre outros itens. Os valores variam de R$7,00 a R$250,00. Há nas fundamentações um chorrilho de bordões como “furtar para alimentar a prole não dá direito de cometer crime” (TJSP) – mas quem disse que esse é o debate? Tudo o que não é permitido atrai a incidência do poder punitivo? Que conversa é essa? -, “inclinação ao desfalque do patrimônio alheio” (TJRO) – e juiz é psicólogo? -, “não há prova de que o acusado não possuía outro meio de saciar a fome” (STJ) – como é que se prova isso, aliás? -, “reconhecimento da insignificância incentiva furtos” (STJ) – cadê a comprovação científica disso? -, dentre outros. Num desses precedentes, consta que o indivíduo “já se encontrava há três dias sem comer” (TJDFT), mas foi condenado a três anos de reclusão em regime fechado por entrar numa loja, comer salgado e beber refrigerante. Em outro levantamento, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC),[4] percebeu-se que, no TJSP, de 201 mulheres acompanhadas em audiências de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda em 2018, 39% foram detidas por furto simples ou qualificado, majoritariamente de objetos de primeira necessidade, como alimentos, em supermercados. Isso indica que a insignificância e/ou o estado de necessidade não foram considerados pela autoridade policial, que lavrou a prisão em flagrante e encaminhou as imputadas à presença de um(a) juiz(a).

Um recente estudo da BBC News dá conta de outras pessoas concretamente criminalizadas (i) por furto de picanha, (ii) furto de lixo a ser vendido para comprar comida (sim, furto de lixo) e (iii) furto de uns fios, também para trocar por alimento.[5] Outro, do O Povo, percebeu, com base em dados compilados pela Defensoria Pública da Bahia (DPE-BA), que, naquele Estado, foram 58 prisões por furto famélico em 2019, 54 em 2020 e 48 até outubro de 2021.[6] Outras criminalizações concretas por furto famélico as percebeu o Correio Braziliense.[7]

Esses dados dão evidência direta e imediata de que o tratamento dado pelo sistema criminal a comportamentos dessa natureza são drásticos e rígidos e produzem encarceramento real e concreto.

Quanto a isso, inclusive, uma pesquisa empírica de Carolina Costa Ferreira apontou, por exemplo, que, nos cinco Tribunais Regionais Federais do país, o tratamento penal dispensado pelos juízes e desembargadores aos crimes contra o patrimônio é muito mais drástico do que o oferecido aos crimes contra a Administração Pública. No período interessado, os primeiros foram 65,4% do total de decisões encontradas em sua metodologia; os outros, 27,8%. Nos primeiros, as sentenças, em sua maioria condenatórias, são mantidas em 58,4% dos casos; nos outros, ao contrário, são reformadas em 61,7% deles. Nos primeiros, o índice de absolvições não alcança 9%; nos outros, é de 31,2%. Nos primeiros, o índice de manejo de Habeas Corpus é de 96,4% dos casos, sendo que o percentual de concessão da ordem não chega a 10%. Nos primeiros, o percentual de aplicação da pena-base no mínimo legal é de 57%; nos outros, 66%. Nos primeiros, o regime inicial de cumprimento de pena é, geralmente, o fechado (51,6% dos casos); nos outros, de regra, o aberto é o preferido pelos juízes (74,8% deles). Nos primeiros, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos não chega a 30%; nos outros, é de 64%.[8] E isso tudo se deve ler em conjunto com a corrente ideia de que, nos crimes contra a Administração, “o bem jurídico é público” e, logo, as ofensas são mais “reprováveis”,[9] tanto é que, teoricamente, nem cabe a insignificância (Súmula 599, STJ)[10] etc. Bom, isso dá um ultimato a meu interlocutor: será mesmo que o refinamento teórico das categorias da parte geral é suficiente para driblar os vícios políticos da criminalização secundária? Eu creio que meu interlocutor não vai ter a descompostura de pensar que os furtos famélicos se cometem geralmente por quem não é pobre e negro e sem trabalho etc. – as vítimas por excelência da seletividade criminalizante -, ou vai?[11]

Diante desses dados, parece-me possível afirmar: sim, existem as categorias da parte geral para dar conta do problema na teoria do delito. Mas os atores do sistema de justiça não estão nem aí pra isso. Em palavras mais simples, delegados e juízes e promotores estão trancafiando na cadeia gente esfomeada que furta comida e a teoria do delito, como quis sugerir um ex-ministro da justiça, fica para “os professores de direito penal”.[12] Termino esse ponto lembrando que, de acordo com o Inquérito Nacional Sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, há 116,8 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar.[13] Nesse levantamento, constata-se que em dois anos de governo Bolsonaro – agora sim eu o coloquei na conversa -, o número de pessoas passando fome salta de 10,3 milhões para 19,1 milhões. Nele também se constata que a situação da fome piorou em absolutamente todas as regiões do Brasil. Ou seja: o povo está passando fome. E também está indo em cana.

Há um outro assunto. Meu interlocutor parece se cegar deliberadamente (com o perdão da piada) para um dado evidente à maioria dos olhos: a legislação penal dos crimes em espécie é cheia de repetições do que a parte geral já contém, e isso, salvo em caso de contradição dogmática, não é um problema, mas uma garantia do legislador à população de que as coisas devem, sem margem de dúvida para os juízes, se suceder como prescreve a teoria. As justificantes da injúria, pela emissão de opinião artística (art. 142, II, CP), e da divulgação condicional de cena sexual em publicação jornalística (art. 218-C, § 2º, CP), por exemplo, já estariam abrangidas pelo exercício regular de direito de expressão e de imprensa (art. 23, III, CP). A improscrição do comportamento de agente infiltrado que oculta a identidade na investigação (art. 10-C, Lei 12.850/13) já caberia na fórmula genérica do estrito cumprimento de um dever legal (art. 23, III, CP). O aborto necessário (art. 128, I, CP) já estaria englobado na fórmula geral do estado de necessidade (art. 23, I, CP). A isenção de pena do favorecimento pessoal de cônjuge já a abrangeria, no caso a caso, a teoria geral da exculpação. E por aí vai.

Em síntese: não há evidências de que a inserção do dispositivo do PL 4.540/21 seja inútil e, bem ao contrário, há indícios relevantes de que as categorias gerais da teoria do delito, por si mesmas, não constrangem o suficientemente os delegados, juízes e promotores nesse tema. Ao revés, para alguns, “a tese do crime de bagatela nada mais representa [...] que a camuflagem teórica de uma distorção ideológica”[14] e um “assistencialismo – coitadismo”.[15] Além disso, também não parece haver indícios de que a ordem jurídico-penal conviva mal com repetições ou detalhamentos, na parte especial ou nas leis fora do Código, das categorias da parte geral.

II. Sobre o segundo eixo teórico de meu interlocutor

Como disse, a hipótese de meu interlocutor, aqui, provavelmente é a de que um tratamento penal menos drástico oferecido pelo Estado a esse comportamento é um estímulo mais forte ao furto do que a fome. Quero debatê-la a partir de duas matrizes científicas: (i) a comportamental e (ii) a criminológica.

Uma pesquisa dos criminólogos Natalie Gately e James McCue (Edith Cowan University, Austrália) estudou casos de 87 crianças entre 11 e 17 anos levadas à justiça na primeira metade de 2017 por invasão domiciliar. Após entrevistas pessoais, eles concluíram que 20% desses imputados invadiam porque não tinham comida em casa. Os outros subtraíam dinheiro, joias, brinquedos e mais coisas, mas não comida. Esse percentual de crianças era motivado pela fome e, para os criminólogos, as abordagens punitivas não tiveram impacto positivo.[16] Em outro estudo, de Jonathan Randel Caughron (da Clemson University, EUA),[17] percebeu-se uma relação direta bastante significativa entre taxas de insegurança alimentar em populações de uma determinada renda per capita e taxas de crimes (i) violentos e (ii) patrimoniais e de invasão de domicílio/arrombamento a cada 100.000 residentes. Daqui podemos tirar uma conclusão simples: se a fome pode aumentar o quantitativo de conflitos violentos, é óbvio que também pode aumentar os não violentos. E, além disso, esses crimes violentos continuam proibidos por lei. Em outras palavras: a proibição penal da violência, ante a insegurança alimentar das pessoas de um determinado patamar econômico, não parece suficiente para impedir a violência. Lembremos ainda que o PL 4.540/21 se refere a furtos famélicos e não a roubos famélicos. Isso é importante, pois, obviamente, se a fome pode ser um fator determinante para um fato de maior gravidade (como arrombar uma casa à procura de alimento ou agredir outrem para consegui-lo), situações por natureza conflituosas e com alta probabilidade de retorsão e/ou exposição, é certo que também o pode para outros de menor (como subtrair uns pacotes de biscoito sorrateiramente no mercado ou sair sem pagar disfarçadamente de um açougue). Aqui em nossa vizinha Venezuela, a percepção de que o aumento brutal da fome (consequência direta da hiperinflação no país) tem relação direta com uma subsequente elevação das taxas de violência também nos tem muito a dizer.[18]

Também podemos consultar uma pesquisa empírica de Alex Piquero, criminólogo professor da Universidade de Miami, e de outros pesquisadores. Nela, eles conduziram um experimento para verificar a (in)existência de uma correlação entre exposição frequente à fome (sobretudo na infância) e comportamentos agressivos e violações das regras. A sua conclusão foi no sentido de que “participantes que experimentaram fome frequente durante a infância possuem impulsividade significativamente maior, pior autocontrole e grande envolvimento em várias formas de violência interpessoal”.[19] Conclusões semelhantes (com resultados numericamente surpreendentes de redução de comportamentos agressivos no grupo sob experimento) foram atingidas por uma pesquisa conduzida por cientistas capitaneados por Bernard Gesch, da Oxford University.[20] As investigações de um grupo de pesquisadores holandeses com pessoas encarceradas, embora não tenham alcançado resultados definitivos, desenham possibilidades parecidas.[21] Aparentemente há, relacionada à privação de alimentos e nutrientes, uma baixa significativa na capacidade cerebral de controlar os próprios impulsos violentos (e percebamos: a coisa se desenvolve no campo do autocontrole, e não da vontade, menos ainda no da cognição ou no da valoração do permitido-proibido). Portanto, pouco importa que o furto de comida seja justificado ou proscrito: a tomada de decisão nos mecanismos neurais do indivíduo exposto à fome vai se importar bem pouco com essa discussão e deixá-la para quem, como eu, consiga escrever umas páginas de estômago cheio.

Bom, até aqui, então, percebo que a relação que meu interlocutor parece deduzir sabe-se lá de onde entre criminalizar/punir o furto por fome e impedi-lo é, provavelmente, empiricamente insustentável. Robert Sapolsky, neurobiólogo de Stanford, recentemente reclamou em seu livro Behave[22] dessa coisa de termos de falar em ciência para confirmar obviedades. Mas ainda há mais um ponto a discutir.

Provavelmente meu interlocutor também pensa que levantar vozes contra essa coisa sacrossanta que o punitivismo elegeu como resposta para todas as reclamações chamada pena é coisa de garantista, de defensor de bandido, de abolicionista, de marxista, de esquerdista etc. Bom, eu lembraria que mesmo o mais antissemita dos intelectuais do integralismo brasileiro (meu interlocutor não vai precisar que eu o relembre de que esse foi um movimento de extrema direita, ou vai?), a quem já se dirigiu o doce elogio[23] de Führer brasileiro,[24] viu com olhos menos reprovadores o furto por fome: ele reclamara, num livro em que, pelo nazifascismo do qual era um cultor,  atribuía aos judeus a culpa pela desgraça do mundo, de que “se mete na prisão o desgraçado que furtou um níquel para matar a fome dos filhos”.[25] Nós agora vamos chamar Gustavo Barroso, o intelectual de Plínio Salgado – sobre quem são desnecessárias apresentações, certo? -, de esquerdista, abolicionista, garantista, marxista, do quê? Desse personagem, se fosse o caso, meu interlocutor deveria buscar semelhanças com Gottfried Feder,[26] não com Marx[27] (não, meu interlocutor, surpreendentemente, nazismo e comunismo não são duas coisas equivalentes)[28]. Eu também lembraria ao meu interlocutor sobre a benevolência do direito penal canônico com o furto de comida e de roupas[29] muito tempo antes do surgimento político (i) dos termos “esquerda” e “direita” e (ii) da junção entre poder punitivo e capitalismo.[30]

Mas... vá lá. Vamos assumir aqui a correção das hipóteses punitivas às quais meu interlocutor sem sombra de dúvidas se filia, assim como o faz qualquer desavisado sem mínimo aporte criminológico: (i) teoria preventiva e (ii) teoria retributiva. Para a primeira, a pena é legítima quando dela exsurge um bem maior ao grupo social do que exsurgiria da não-pena; para a segunda, o será quando seja capaz de retribuir ao infrator o mal que ele causou. Vamos ver se, mesmo adotando um desses modelões propagandistas, mais velhos que andar para a frente, que Anton Bauer já sistematizara lá há muito tempo e há muitas léguas de distância,[31] conseguimos justificar a criminalização do furto famélico.

Um estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estimou recentemente que cada preso no Brasil custa, em média, R$1.800,00 por mês. Há Estados, como o Tocantins, em que custam R$4.200,00. No Piauí e na Bahia, mais de R$3.200,00.[32] Podemos pegar de parâmetro aquele furto famélico mais expressivo encontrado no levantamento da Agência Pública, no valor de R$250,00. O cálculo é simples. Um indivíduo dá um prejuízo concreto de R$250,00 a uma empresa privada. O Estado transforma isso num prejuízo mensal à sociedade de, em média, R$1.800,00. Não é preciso qualquer discussão elaborada: pela teoria utilitarista da pena, o punir, aqui, não é legítimo, pois simplesmente não exsurgem mais vantagens à sociedade pela criminalização do que exsurgiriam pela não criminalização. Claro que alguém pode dizer: “há, sim, um benefício que transcende esse dado econômico: é o desestímulo sistemático a novos furtos famélicos pela prevenção geral”. Sobre isso, remeto aos estudos criminológicos e comportamentais no início do tópico: a fome motiva mais o furto desesperado do que o desmotiva a atuação do sistema penal.

Sobra ainda um último fiapo de argumento: a teoria absoluta. Aqui o desatendimento do seu pressuposto também é evidente. (1) Indivíduo furta para come porque está sem alimento em casa; (2) é preciso retribuir o mal que ele causou; (3) vamos colocá-lo na prisão, onde deveremos fornecer três refeições completas a ele por dia durante o tempo em que estiver privado da liberdade às custas do Estado. Que retribuição é essa?

Em síntese: não há evidência que comprove (i) uma relação direta entre criminalizar a subtração famélica de comida e preveni-la; e (ii) que defender a blindagem do furto famélico do poder punitivo seja coisa de esquerdista, eleitor do Lula, garantista, abolicionista, globalista, psolista etc. Ainda, nem mesmo as teorias legitimadoras da pena conseguem justificar essa criminalização – e esses devaneios geralmente conseguem justificar qualquer coisa -, sejam preventivas ou retributivas.

III. Sobre o terceiro eixo teórico de meu interlocutor

Faltou ainda discutirmos aquela última possibilidade a que meu interlocutor talvez tenha se filiado: ele acredita que quem furta uns restos de comida porque está passando fome deve ser criminalizado mesmo e pegar uma cana e é isso aí. Bom, faltou e vai continuar faltando, porque eu me recuso a ter que debater essa obscenidade imoral e hedionda. Esse é o tipo de coisa que, como disseram ao Harry Potter lá pelas tantas do último filme, se você souber, basta perguntar, mas, se tiver que perguntar... jamais saberá.[33]

 

Conclusão

O PL 4.540/21 é bom e devia virar lei.

meu interlocutor está mal e suas ideias não deviam virar lei.

Abs.

 

Notas e Referências

[1] Pode-se consultar o texto do Projeto de Lei na íntegra em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2127591&filename=Tramitacao-PL+4540/2021 >. Acesso em: 05/02/2022 às 23:01.

[2] WAAL, Frans de. Eu, primata: por que somos como somos. Companhia das Letras.

[3] DOLCE, Julia; PINA, Rute. Famélicos: a fome que o Judiciário não vê. Mar./2019. Disponível em: < https://apublica.org/2019/03/famelicos-a-fome-que-o-judiciario-nao-ve/ >. Acesso em: 20/02/2022 às 00:29.

[4] Cf. em DOLCE, Julia; PINA, Rute. A... (op. cit.).

[5] MACHADO, Leandro. Os brasileiros presos por furto de comida na pandemia de covid. Jun./2021. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57477601 >. Acesso em: 20/02/2022 às 01:00.

[6] Disponível em: < https://www.opovo.com.br/noticias/brasil/2021/11/28/fome-92-pessoas-foram-presas-por-furto-de-comida-na-bahia-desde-o-inicio-da-pandemia.html >. Acesso em: 20/02/2022 às 01:06.

[7] Disponível em: < https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/10/4955522-acoes-de-furto-famelico-nao-sao-incomuns-na-justica-brasileira.html >. Acesso em: 20/02/2022 às 01:10.

[8] A pesquisa é FERREIRA, Carolina Costa. Discursos do sistema penal: a seletividade nos julgamentos dos crimes de furto, roubo e peculato nos Tribunais Regionais Federais do Brasil. 2010. 244f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2010.

[9] Para compreender o motivo pelo qual essa ideia de reprovabilidade deve ser extirpada da teoria jurídico-penal, é indispensável a leitura de meu MACHADO, Rodrigo Barcellos de Oliveira. Culpabilidade: uma investigação sobre a história da responsabilidade no direito penal brasileiro e discussão de princípios para um modelo dogmático funcional teleológico redutor do poder punitivo. Dissertação (Mestrado em direito penal) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.

[10] Para uma crítica, cf. meu MACHADO, Rodrigo Barcellos de Oliveira. “Meu crime é imperdoável, apliquem o direito!” – disse o delinquente. Sobre como, para os juízes brasileiros, o princípio da insignificância nada tem a ver com tipicidade material. Jan./2022. Disponível em: < https://emporiododireito.com.br/leitura/meu-crime-e-imperdoavel-apliquem-o-direito-disse-o-delinquente-sobre-como-para-os-juizes-brasileiros-o-principio-da-insignificancia-nada-tem-a-ver-com-tipicidade-material >. Acesso em: 24/02/2022 às 01:20.

[11] Se sim, faça-se o favor, por exemplo, de consultar, ao menos, algumas sequências históricas dos dados de prisionalização do INFOPEN, do Fórum de Segurança Pública etc., pois a coisa está feia.

[12] KADANUS, Kelli. Como os Estados Unidos inspiram o pacote contra o crime de Sergio Moro. Fev./2019. Disponível em: < https://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/como-os-estados-unidos-inspiram-o-pacote-contra-o-crime-de-sergio-moro-2mqyqjya3bisi7emjrmohe8f6/ >. Acesso em: 06/02/2022 às 16:56.

[13] Cf. < https://www.brasildefato.com.br/2021/10/13/inseguranca-alimentar-voltou-a-crescer-e-fome-atinge-19-1-milhoes >. Acesso em: 24/02/2022 às 01:47.

[14] Fala do Desembargador Corrêa de Moraes, TJSP, na Apelação 985.657. Cf. em DOLCE, Julia; PINA, Rute. A... (op. cit.).

[15] Fala do juiz Wellington Marinho Urbano, da Comarca de Suzano, que decretou a prisão provisória de uma mulher grávida de nove meses, já mãe de dois filhos pequenos, detida por furtar queijo e carne de um atacadista. Cf. em DOLCE, Julia; PINA, Rute. A... (op. cit.).

[16] “The kids who stole food were only going in for food and the implication was that no, they are not getting it at home”. Cf. um resumo em < https://www.theguardian.com/australia-news/2017/dec/12/western-australia-children-stealing-food-because-they-are-not-being-fed-at-home >. Acesso em: 05/02/2022 às 21:16.

[17] CAUCHRON, Randel. An Examination of Food Insecurity and It’s Impact on Violent Crime in American Communities. All theses. 2565. Disponível em: < https://tigerprints.clemson.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3571&context=all_theses#:~:text=The%20model%20shows%20that%20food,crime%20in%20any%20given%20community. >. Acesso em: 05/02/2022 às 22:04.

[18] Cf. NUGENT, Ciara. How Hunger Fuels Crime and Violence in Venezuela. Oct./2018. Disponível em: < https://time.com/longform/hunger-crime-violence-venezuela/ >. Acesso em: 05/02/2022 às 22:52.

[19] VAUGHN, Michael G.; SALAS-WRIGHT, Christopher; NAEGER, Sandra; HUANG, Jin; PIQUERO, Alex R. Childhood reports of food neglect and impulse control problems and violence in adulthood. In: Int. J. Environ. Res. Public Health. 2016, 13, 389. 17p. Disponível em: < https://www.mdpi.com/1660-4601/13/4/389 >. Acesso em: 23/02/2022 às 01:59.

[20] GESCH, Bernardo; HAMMOND, Sean M.; HAMPSON, Sarah E.; EVES, Anita; CROWDER, Martin J. Influence of supplementary vitamins, minerals and essential fatty acids on the antisocial behaviour of young adult prisioners. In: British journal of psychiatry. (2002), 181. pp. 22 – 28. Disponível em: < https://www.cambridge.org/core/journals/the-british-journal-of-psychiatry/article/influence-of-supplementary-vitamins-minerals-and-essential-fatty-acids-on-the-antisocial-behaviour-of-young-adult-prisoners/04CAABE56D2DE74F69460D035764A498 >. Acesso em: 23/02/2022 às 02:31.

[21] ZAALBERG, Ap; NIJMAN, Henk; BULTEN, Erik; STROOSMA, Luwe; VAN DER STAAK, Cees. Effects of nutritional supplements on aggression, rule-breaking, and psychopathology among young adult prisioners. In: Aggressive behavior. Vol. 36. 2010. pp. 117 – 126. Disponível em: < https://sci-hub.se/10.1002/ab.20335 >. Acesso em: 23/02/2022 às 02:25.

[22] Há edição brasileira. SAPOLSKY, Robert. Comporte-se: a biologia humana em nosso melhor e pior. Trad. Giovane Salimena e Vanessa Barbara. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

[23] “Aos alunos e demais juristas que não conseguem entender minimamente o que diz um texto e àqueles que não conseguem entender minimamente ironias, metáforas e sarcasmos, sugiro mergulharem nos livros (cuidado: isto tem um sentido metafórico – não mergulhe de verdade; há livros com capa dura que podem causar ferimentos)”. STRECK, Lenio Luiz. Jurista Nutella não consegue interpretar textos e não entende ironias. Conjur. Fev./2017. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2017-fev-16/senso-incomum-jurista-nutella-nao-interpretar-textos-nao-entende-ironias >. Acesso em: 05/02/2022 às 17:08.

[24] DANTAS, Elynaldo Gonçalves. Gustavo Barroso, o Führer brasileiro: nação e identidade no discurso integralista barrosiano de 1933 – 1937. 154f. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.

[25] BARROSO, Gustavo. Brasil: colônia de banqueiros (história dos empréstimos de 1824 a 1934). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S/A, 1934. p. 28.

[26] Gottfried Feder (1883 – 1941) foi um ideólogo e teórico nazista nascido em Würzburg. Engenheiro, ficou impossibilitado de exercer atividades físicas que demandassem muito esforço, isso em razão de uma lesão que sofrera de um golpe de florete. Aparentemente foi o motivo de não ter servido, como militar, na primeira guerra. Feder iniciara, então, sua jornada na política, na economia e nas questões sociais. Chegou a ser parlamentar no Reichstag alemão. Seu pensamento influenciou fortemente a construção da ideologia nacional-socialista e o estabelecimento do NSDAP – e de sua doutrina econômica - e ele teve papel relevante na ala intelectual do Partido. Já durante o Reich, foi Secretário de Finanças de 1933 a 1937. Também foi chefe de uma editora nazista e, posteriormente, professor universitário. Morreu de tuberculose.

[27] Esse é um trabalho que, inclusive, já está feito. “Apesar de sua retórica inflamada contra o capitalismo, nenhum dos dois autores pode ser considerado anticapitalista no sentido estrito do termo”. Cf. o extenso trabalho comparativo de LIMA, Marcelo Alves de Paula. Em guarda contra as altas finanças: o pensamento de Gottfried Feder e Gustavo Barroso em perspectiva comparada (1919 – 1939). Dissertação (Mestrado em História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. A citação específica à p. 221.

[28] Essa falsa equivalência ganha cada vez mais espaço em nosso país. Ela é provinda de um setor dessa tosca extrema-direita brasileira que saiu recentemente dos esgotos e colonizou as redes sociais. Geralmente, quando nós, da academia, tentamos estabelecer racionalmente as distinções brutais entre nazismo e comunismo, sempre aparece um filhote desse espectro político para dizer: “é a mesma coisa, mataram X milhões!”. Essa equiparação é política e historicamente tão ignóbil e tão imbecil que não haveria espaço neste pequeno texto para discorrer muito sobre isso. Bastaria dizer que o próprio programa do NSDAP era, pelas mãos da formulação de Feder, antimarxista por princípio: “[...] o nacional-socialismo é um convicto inimigo do marxismo, recusando de forma veemente o ensinamento destrutivo da “expropriação de toda propriedade” e vendo no campesinato tradicional, inimigo do internacionalismo marxista, o melhor e mais seguro fundamento do Estado nacional”. In: FEDER, Gottfrid. Das Programm der NSDAP. p. 13. Apud LIMA, Marcelo Alves de Paula. Da “servidão dos juros” à “colônia de banqueiros”: uma análise dos escritos de Gottfried Feder e Gustavo Barroso. In: Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. V. 5, n. 3, set./dez., 2013. Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2013. pp. 202 – 225. Disponível em: < https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/article/view/5535/3465 >. Acesso em: 19/02/2022 às 23:19

[29] BATISTA, Nilo. O advogado criminal como co-construtor da jurisprudência. Aula inaugural do curso de especialização em Advocacia Criminal da OAB e UERJ. Out./2019. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2019-out-02/nilo-batista-advogado-criminal-co-construtor-jurisprudencia >. Acesso em: 19/02/2022 às 21:08.

[30] Cf. VEGH WEIS, Valeria. Marxism and criminology: a history of criminal selectivity. Chicago: Harmarket Books, 2018.

[31] Felizmente Raúl Zaffaroni reeditou em 2019 os escritos em que Bauer, há mais de duzentos anos, laborou. É possível consultar em BAUER, Anton. La teoría de la advertencia y uma exposición y evaluación de todas las teorías del Derecho Penal. 1ª ed. adaptada. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ediar, 2019.

[32] Cf. < https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/custo-medio-de-pessoa-presa-no-brasil-e-de-r-18-mil-por-mes-aponta-cnj/ >. Acesso em: 24/02/2022 às 02:15.

[33] Como um incorrigível desses - dos quais faço parte - cujo tesão por injetar nos textos um caminhão de citações para comprovar tudo o que falamos é muito difícil de controlar, fui atrás dos livros para caçar a referência exata, mas, aparentemente, na obra escrita esse diálogo ou não existe ou não está dessa maneira. Ou eu não o achei. No audiovisual, é o filme As relíquias da morte – Parte 02, quando tem lugar uma guerra de bruxos e o pessoal está lançando raios e despedaçando o castelo todo e salve-se quem puder.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Martelo da justiça // Foto de: Fotografia cnj // Sem alterações

Disponível em: https://flic.kr/p/odEqZz

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura