Direito, natureza e cultura (Parte 1)

23/06/2015

Por Atahualpa Fernandez - 23/06/2015

 “La biología susurra muy profundo dentro de nosotros”

David Barash

Parte 1

O debate natureza versus cultura é um dos debates eternos no qual nos enredamos repetidamente em todas as discussões sobre qualquer conduta humana. Como seres intencionais, qualquer ação – quer dizer, qualquer movimento, qualquer pensamento ou qualquer sentimento ou emoção que tenham propósitos intencionais – responde a uma forma específica de como a seleção natural modelou nosso cérebro dotando-lhe de uma vantagem adaptativa. Os objetivos de nossas ações se alcançam por meio de estratégias estritamente vinculadas à natureza humana, sem prejuízo – claro está – de admitir amplas variações resultantes da inserção no entorno sociocultural em que se vive.

Por um lado, a gente de diferentes culturas varia muito em sua conduta, crenças e práticas, desde estratégias de subsistência, forma de cuidar aos filhos, alimentação, decoração corporal, preferências religiosas, etc. Mas, por outro lado, há muitas coisas que são comuns ou universais, como o matrimônio, palavras para designar a familiares, as expressões corporais das emoções, etc. Pensem, por exemplo,  nestas culturas que não existem:

- não existem culturas em que as mulheres façam a guerra para roubar homens à tribo vizinha;

- não existem culturas em que a faixa mais violenta da população sejam as mulheres maiores de 50 anos (em todas são os homens jovens);

- não existem culturas em que os homens se sintam mais atraídos por mulheres de 60 anos que por mulheres jovens de 20;

- não existem culturas onde a gente prefira as imitações aos originais e pague milhões pelas cópias e nada pelos originais;

- não existem culturas em que a gente tempere com fezes a comida para melhorar seu sabor e onde não lhes interesse o sal e o açúcar;

- não existem culturas em que os seres humanos não participem (ou ao menos intentem) em planificar e dirigir suas próprias vidas, fazendo e respondendo perguntas “acerca de lo que es bueno y cómo debería uno vivir”;

 - não existem culturas onde se deixe morrer aos filhos próprios e se dediquem os recursos e o tempo a filhos de outras pessoas;

- não existem culturas onde as normas sociais digam que há que tratar mal aos amigos e fazer-lhes sofrer;

- não existem culturas onde as pessoas não “fofoquem”, não mintam, não julguem[1] moralmente  e  não lhes importe em absoluto o que fazem os demais, etc.... etc.

O que estas culturas que somente existem na imaginação nos ensinam é que por debaixo das variações culturais existe uma psicologia evolucionada humana desenhada para produzir diferentes tipos de conduta segundo as circunstâncias ambientais, e que não a podemos saltar. A cultura poderá introduzir variação, mas não é todo-poderosa e tem umas limitações. A gente pode variar em seu bronzeado segundo o sol ao que esteja exposto em seu ambiente, mas o bronzeado se deve a um mecanismo biológico adaptativo de proteção que está desenhado para responder à luz do sol com melanina. (P. Malo)

Daí que um estudo da conduta humana completo deve ser capaz de explicar tanto as variações como os traços universais que observamos nela[2]. O conteúdo específico e a organização de cada cultura é um produto de uns mecanismos psicológicos evolucionados e dos ambientes específicos aos que está exposto um grupo humano – fenômeno ao que Leda Comides e John Tooby denominam de “cultura evocada”, para referir-se ao fato de que as condições sociais e econômicas são uns inputs ambientais para uma psicologia evolucionada muito rica e que, dessa maneira, evocam diferentes repertórios de condutas, forjando-se assim diferentes culturas. Isto implica que a partir da ideia de “cultura evocada”, útil para entender algumas das formas de variação cultural, é possível inferir que a cultura influi tanto no sentido de acentuar como de rebaixar as tendências mais profundamente enraizadas na natureza humana[3].

Pois bem, esta dupla ação natureza-cultura produziu, durante o largo curso de nosso processo evolutivo, algumas estratégias e mecanismos desenhados com a “intenção” de que servissem para resolver determinados problemas adaptativos a eles associados. Se o propósito se alcança, assumimos e dizemos que tais mecanismos têm valor (que são bons) e, como tal, que são capazes de ir acumulando “tradições” que, não obstante em processo contínuo de renovação (da evolução acumulativa e renovada da cultura pelo efeito “ratchet”, de que nos fala M. Tomasello), se transmitem de geração em geração mediante atuações individuais de pessoas influídas por este triplo conjunto de elementos procedentes da natureza, da cultura e da história, tanto recente como remota, da humanidade.

Ante um panorama assim, de diversidade temporal e cultural tão ampla (embora limitada), a hipótese de que todos os humanos sem exceção significativa tendem a valorar como “boa” uma mesma coisa levaria a afirmar que não pode ser porque nos tenhamos posto todos de acordo sobre sua “bondade”. Tal valor compartido se assentaria na psicologia natural da espécie humana ao dar uma solução efetiva aos problemas adaptativos do momento.

Existem, à parte das variações, universais assim, já sejam positivos ou negativos?

Todos os humanos parecem valorar, por exemplo, a cooperação intragrupal, mas desconfiam ao mesmo tempo da cooperação intergrupal quando é proposta desde fora. Valoramos a coesão de grupo, as relações de parentesco, a submissão ou obediência a um líder, a capacidade de ascender na hierarquia social, a conduta altruísta, a proteção à infância e o aprendizado dos mais pequenos, as alianças estratégicas, a amizade, o sexo, o alvoroço moderado, as relações de intercâmbio, o risco controlado; valoramos a sinceridade, mas também a reciprocidade e a segurança, e abominamos o engano e a injustiça – ao menos quando nos afeta pessoalmente. Por que é assim cabe ser explicado somente de uma forma: porque a evolução por seleção natural produziu uma mente humana com os parâmetros necessários para comportar-se desse modo típico de nossa espécie.

Na verdade, parece razoável admitir que nossas valorações são, em boa medida, o resultado de dois domínios em permanente estado de interação: i) um conjunto de determinações genéticas e neurobiológicas que nos estimulam a manter atitudes morais, a avaliar e preferir, e que pertence ao genoma comum de nossa espécie; e ii) um conjunto de valores morais do grupo que é uma construção cultural, de tal forma que dita construção (e transmissão) dos valores tem lugar de maneira histórica em cada sociedade e em cada época. Desta interação resulta um universo de preferências que não é livre de tomar qualquer caminho. Nossas valorações são dirigidas e estão condicionadas a grandes traços pela tendência inata a determinadas condutas, que pode considerar-se a verdadeira fonte dos valores humanos.[4]

A seleção natural desenhou e modelou nosso cérebro com o resultado de que nos importam mais umas coisas e menos outras (um sistema de “saliências inatas” e “culturais” que funciona como mecanismo de filtragem de um mundo repleto de informação e que determinam também nossa maneira de perceber a realidade compartida atendendo mais facilmente a certos estímulos ou a outros). Dito de outro modo, os limites observados na diversidade dos enunciados éticos e normativos são os reflexos da estrutura e funcionamento de nossa arquitetura cognitiva. Como seres neuronais, as características biológicas de nosso cérebro estabelecem o espaço das normas de conduta que nos são possíveis aprender e seguir. [5]

Este princípio, defendido na chamada  “segunda sociobiologia”, segue de perto outras propostas anteriores ao estilo da de Waddington das paisagens epigenéticas (C. J. Lumsden; E. O. Wilson). Significa que, se bem as soluções culturais são contingentes e têm caráter histórico, se movem dentro de uns limites estreitos de possibilidades marcadas pela natureza humana. Todos tendemos a valorar certas coisas em detrimento de outras e os valores assegurados por meio de nossas normas de conduta descrevem (em grande medida) nossas atitudes morais naturais: valoramos aquilo que admite a margem de nossa limitada capacidade para aprender a valorá-lo.

Em contra do estabelecido pelo modelo do Homo oeconomicus, o que nos incita a comportar-nos moral e juridicamente não é o cálculo deliberado que duvida entre as possibilidades de obter certo beneficio ao incumprir uma norma estabelecida e o risco que se corre ao ser descobertos e castigados por nosso ato. Tampouco funcionamos mediante uma adesão consciente a normas racionalmente analisadas e aceitadas. Entram em jogo mais bem certas intuições ou sentimentos morais, e o fazem de um modo sub-reptício, espontâneo, sem dar-nos apenas conta dele: empatia, remordimento, vergonha, humildade, sentido de honra, prestígio, compaixão, companheirismo, etc[6].

Mais que uma simples coleção de preferências e convenções utilitárias ou arbitrárias impostas às pessoas pela sociedade, tais intuições se assentam em predisposições inatas de nossa arquitetura cognitiva para o aprendizado e manipulação de determinadas capacidades sociais inerentes à biologia do cérebro, capacidades que foram aparecendo ao longo da evolução de nossos antepassados hominídeos para evitar ou prevenir os inevitáveis conflitos de interesses que surgem da vida em grupo. São estes traços, que poderíamos chamar tendências mais que características, o que melhor pode ilustrar as origens e a atualidade do comportamento moral e jurídico do homem.

De fato, se os homens se juntam e vivem em sociedade é porque somente por esse modo podem sobreviver. Desenvolveram-se por tal via valores sociais específicos: o sentimento de pertença e lealdade para com o grupo e os seus membros, o respeito pela vida e propriedade alheias, o altruísmo, a trapaça, a empatia, o sentido da reputação, o respeito recíproco, a antecipação das consequências das ações... Trata-se de práticas que aparecem de maneira necessária no transcurso de uma vida compartilhada dando mais tarde lugar aos conceitos de justiça, de moral, de direito, de dever, de responsabilidade, de liberdade, de dignidade, de igualdade, de fraternidade, de culpa, de segurança e de traição, entre tantos outros.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: Pôr do Sol - Itacorubi - Florianópolis // Foto de: Ricardo Ghisi Tobaldini // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/rghisi/17268747781/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


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