DIREITO, GÉNERO E EMANCIPAÇÃO

13/03/2021

Coluna Por Supuesto

Na contemporaneidade os nexos epistemológicos entre Direito e género suscitam amplos debates. Os pensamentos jurídicos mais avançados sobre o tema constituem um esforço valioso na tentativa de normatizar realidades efetivando a equidade de género. Reflete-se, assim, a transcendental resistência e persistência não só das organizações feministas, mas também de outros setores que desafiam visões míopes sobre a relação entre sexo biológico e modelos comportamentais.

No que tange às mulheres, os movimentos feministas cumulam uma experencia diversificada e criativa que constitui hoje uma força de grande capacidade e incidência em vários cenários da vida social e especialmente na política.  Essa presença importante é resultado de uma batalha constante, expressiva e histórica, cujos momentos de pioneirismo se encontram no tempo da corajosa Clara Zetkin, anunciantes da necessidade de vincular a reflexão feminista ao exercício do poder como fenômeno sócio-político nos marcos do sistema em que predomina o capital sobre o trabalho.  

No plano normativo, ainda que não de maneira suficiente, existem doses jurídicas de amparo e proteção pela via de convenções internacionais, diplomas constitucionais e leis que incidem em vários campos como o trabalhista, o penal ou o previdenciário. Não pretendemos fazer uma análise da positividade, senão lembrar que a consigna da igualdade substancial e suas manifestações, de maneira a avançar decididamente superando a retórica tradicional da fórmula todos são iguais perante a lei, também foi e continua a ser o resultado de ações e mobilizações de setores discriminados.

Vou me referir brevemente a três aspectos que considero fundamentais e que tem a ver com os atuais debates sobre os direitos, o feminismo e a equidade de género, em perspectiva histórica, jurídica e política.  

O primeiro deles se refere, in concreto, à questão “género”, considerada como referência conceitual muito mais ampla que aquela que se desprende da expressão “mulher” e que conduz ao campo das identidades, contradizendo e rebatendo as “acabadas convicções da modernidade”.

Com efeito, se algo tem de singular a caracterização dessa etapa tão estudada por David Harvey é a rigidez de uma certa soberba e ostentação no pensar, própria de um sistema económico e social autoconsiderado infalível e eterno, responsável pela justificação de relações de poder por setores e, portanto, grupal, estigmatizante e rotuladora. No mundo das verdades iluminadas, os seres humanos foram e são ainda, pelo pensamento mais conservador, classificados na lógica binária homens e mulheres cujo ser e dever ser é modelado, aguardado e reproduzido a partir da aparência.

A consequência nos vários cenários da nossa vida é o estereotipo, o machismo e o fascismo que muitas vezes paira nas nossas cabeças, e que faz que devamos permanentemente fazer exercícios de autorreconhecimento crítico, ainda que não nos impeça de denunciar com contundência as políticas destinadas a justificar ou reproduzir a ideia da culpabilização da mulher após o assédio ou o abuso sofrido, os feminicídios e assassinatos fruto da homofobia.   

A doutrina já em notado que o discurso do “poder localizado” que Harvey resgata incluso do pensamento de M. Foucault, para identificar as formas mais aberrantes, porém cotidianas de opressão, também detecta as formas de resistência que fortalecem os movimentos feministas, das comunidades e setores LGBTs, étnicos, de refugiados e em geral das minorias. E é precisamente nessa desconstrução ou desfragmentação de identidades que podem se conquistar os novos espaços jurídicos para a liberdade e autonomia do ser humano, da pessoa, é dizer, do sujeito num Estado de Direito.

O segundo tema se relaciona com a necessidade de compreender que a questão da proteção da mulher é transversal quando se ausculta o panorama da Constituição de 1988. É dizer, o constituinte não destinou um campo específico à maneira de Título ou Capítulo para amparar a mulher, senão que optou por uma transversalização, que origina a obrigação para o Poder Público de avaliar, quando se trata de fazer leis, elaborar políticas públicas, tomar decisões judiciais, ou qualquer tipo de medida por parte daquele que age com autoridade estatal, o impacto que pode ter sobre as mulheres.

Entretanto, ainda falta fazer ênfase em termos jurídicos e políticos na transversalização de género, é dizer, nas consequências que tem cada uma dessas ações estatais sobre a pluralidade numa dimensão mais integral, que foge da exclusiva questão binária – homem mulher –. Parece-nos que um enfoque renovado e incisivo da questão, à luz do conceito “género”, originaria na prática um tratamento mais plural, que negaria que sexo biológico é destino e opção acabada e conclusiva da vida e então, avançaria partindo da premissa de que a categoria género representa algo socialmente construído por processos sociais e culturais. É dizer, que a masculinidade e a feminilidade são categorias variáveis, sujeitas a tempo e espaço.

Logicamente, este raciocínio pretende quebrar, ainda com maior força, a sempiterna estruturalidade do machismo e do patriarcalismo, fornecendo maiores e melhores possibilidades de socialização, de reconhecimento da diversidade. Começar a interpretar e aplicar o Direito, em perspectiva de género complementa, nesse sentido, as visões de 1995 quando da realização da Conferência da ONU Mulheres em Pekin. Não se pretende dizer, de forma alguma, que não existam já manifestações, especialmente jurisprudenciais, sobre a transversalidade de género, porém, ainda não temos um exercício de interpretação e aplicação do Direito mais frequente em tal sentido. O debate está ainda em cernes.   

Finalmente, o terceiro aspecto é a questão emancipatória, que diferencia os feminismos e coloca no centro o “fator classe”, que implica uma compreensão da realidade a partir do lugar que cada pessoa ocupa dentro do processo produtivo, numa escala social profundamente opressiva e sistémica. Emancipação e género se entrelaçam na medida em que a discriminação negativa é instrumento para impedir o pensar e a ação em favor de uma sociedade transformada. Nesse sentido, a transversalização de género adquire importância cumulativa de direitos, sempre na perspectiva daquela transformação sistémica. Por isso, identificar as atitudes de cerceamento de direitos contra qualquer pessoa por razão de género ou orientação sexual é uma práxis política com sentido estratégico.  

Daí que o tema se relacione com a identificação antidemocrática do regime que impede a participação de amplos setores da população por razões de género; com o diagnóstico do caráter dos governos de turno, que embora exista a proteção constitucional e convencional,  podem manter, em detrimento de entender a equidade de género como uma política de Estado, uma postura profundamente reacionária e avessa à possibilidade de ações inclusivas e de respeito pelas minorias e a dignidade de género, como acontece no Brasil de nossos dias; se relaciona com o grau de organização e unidade do movimento feminista e dos setores LGBTs, da identificação de aliados individuais, setoriais e institucionais que possibilitem avançar e especialmente, com a disposição para enfrentar o cotidiano opressor das relações fundadas no patriarcalismo e o machismo.  

O centro da proteção jurídica é o ser humano, cuja escrita não é conformista senão transformadora. O ser humano cujo pensamento rejeita dogmatismos e que perante as injustiças históricas tem de ser, por supuesto, desobediente. 

 

Imagem Ilustrativa do Post: silhouette of person // Foto de: Miguel Bruna // Sem alterações

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