Por Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC / CNPq) - 21/03/2016
Na última sexta-feira, o Min. Gilmar Mendes proferiu uma decisão no Mandado de Segurança (MS) n. 34070/DF, anulando a posse do ex-Presidente Lula para o cargo de Ministro de Estado Chefe da Casa Civil. A decisão suspendeu a posse analisando a matéria à luz das normas de regência, destacando que deve haver, nessa ordem, (a) nomeação e (b) posse – que pode ocorrer até 30 dias depois da nomeação.
Segundo o Min. Gilmar Mendes, “se Luiz Inácio Lula da Silva não estivesse presente na cerimônia de posse, duas consequências poderiam ocorrer: ou ele não tomaria posse – podendo fazê-lo a qualquer momento, no intervalo de trinta dias contados da publicação da nomeação – ou tomaria posse por procuração – caso enviasse mandatário com poderes específicos. Em nenhuma hipótese, a posse poderia ocorrer pela aposição, pela Presidente, de sua assinatura, em termo adredemente assinado pelo nomeado.”
Dessa premissa, podemos suscitar o seguinte questionamento: se a posse não poderia se perfazer com a mera assinatura do seu termo no dia anterior, mas sim apenas após a nomeação publicada no Diário Oficial (com posterior posse presencial ou por procuração), então como se poderia entender que o envio do documento tinha o propósito de estabelecer a prerrogativa de foro do ex-Presidente, funcionando como uma espécie de “salvo conduto”? Em outras palavras, o Min. Gilmar Mendes afirma que houve irregularidade no envio do termo de posse, pois teria sido destinado a gerar um “salvo conduto” ao ex-Presidente, mas ele próprio reconhece que o mero envio do citado documento não poderia gerar esse efeito, já que a prerrogativa de foro só incidiria após a nomeação com posterior posse (presencial ou por procuração).
Além disso, sustentou o Min. Gilmar Mendes que “o objetivo da falsidade é claro: impedir o cumprimento de ordem de prisão de juiz de primeira instância.”. Nesse ponto, deve-se perguntar: cumprimento de qual ordem de prisão? Havia alguma? E para arrematar, diz ainda o Min. Gilmar Mendes: “como mencionado, há investigações em andamento, para apuração de crimes graves, que podem ser tumultuadas pelo ato questionado.” Ora, a decisão anota que a posse pode “tumultuar” investigações em andamento, mas não especifica qual(is) tumulto(s), a não ser o transcurso do tempo necessário para transferir para a instância competente os autos investigativos.
Convém destacar que o simples deslocamento de competência em razão da prerrogativa de foro é fato usual. Não raro, por exemplo, tramita ação penal nas instâncias ordinárias contra réu que, posteriormente, assume o cargo de deputado federal ou senador, o que provoca o encaminhamento do feito para a Suprema Corte, onde o congressista tem foro privilegiado. Desse modo, caberá aos ministros desse Tribunal a condução do processo judicial daí em diante, inclusive podendo tomar decisões cautelares que julgarem necessárias.
Nesse particular, a decisão apresenta frágil fundamentação, contrariando diretrizes do novo Código de Processo Civil (art. 489), que determina que as decisões judiciais devem ser devidamente fundamentadas. Cuida-se de um dever de justificar adequadamente os provimentos judiciais, evitando-se, de um lado, subjetivismos e, de outro, elevando o controle das decisões judiciais. Especulações em decisões judiciais são vedadas e contrariam o direito a uma prestação jurisdicional fundada no devido processo legal.
Um outro ponto relevante, sob o aspecto processual, seria a aplicação da teoria do “fruto das árvores envenenadas”. Sabe-se que uma prova ilícita ou ilegítima termina contaminando o desenrolar processual e todas as outras decisões. No presente caso, observa-se que a decisão monocrática do Min. Gilmar Mendes apresenta uma conversa entre a Presidente Dilma e o ex-Presidente Lula como um indício de prova de desvio de finalidade. Ocorre que o próprio juiz Sérgio Moro, que teria autorizado a interceptação telefônica, já afirmou que a referida conversa foi captada em momento posterior à suspensão da decisão de interceptação, reconhecendo a “irregularidade” da prova colhida (ver aqui: http://www.conjur.com.br/2016-mar-17/moro-reconhece-erro-grampo-dilma-lula-nao-recua). Em outros termos, quando foi captada a conversa com a Presidente, não havia mais autorização judicial que lhe daria suporte. Sendo assim, a sua utilização nos autos seria vedada, pois contraria a garantia constitucional da vedação de prova ilícita.
Ainda que muitos sustentem a legalidade da interceptação telefônica em si, é incontestável que a divulgação ao público do teor das conversas gravadas contraria preceito expresso da Lei n. 9.296/1996, que, em seu art. 8º , impõe o dever de sigilo da autoridade judicial: “A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas”. Esses elementos revelam que a decisão judicial proferida pelo juiz Sérgio Moro não apresenta simples “irregularidades”, sugerindo, com tal expressão, falhas de menor significado jurídico, senão vícios insanáveis que tornam imprestáveis os conteúdos gravados e expostos indevidamente ao público como provas em processos judiciais.
Por outro lado, poder-se-ia analisar a legitimidade do uso do conteúdo do referido diálogo nos autos do MS n. 34070/DF sob o argumento de que, em entrevista coletiva, a Presidente Dilma Rousseff teria reconhecido como verdadeira a conversa travada entre ela e o ex-Presidente Lula, tendo, inclusive, elaborado nota oficial a esse respeito. Assim, sendo uma informação de conhecimento público, poderia ser utilizada em qualquer processo já que classificada como “fato notório”.
Todavia, é indiscutível que a Presidente apenas elaborou nota oficial e concedeu entrevista, explicando a finalidade sobre o teor da conversa entre ela e o ex-Presidente, justamente porque houve a liberação irregular do áudio pelo juiz Sérgio Moro. Disto, conclui-se que o fato foi reconhecido em público em razão de ter sido capturado sem ordem judicial e tornado público por aquele magistrado. A pergunta que deve ser feita é: se não houvesse ocorrido a captura irregular da conversa, e, especialmente, sua ilegal divulgação pelo juiz da causa, teria a Presidente tornado público o tema e emitido nota oficial a respeito do assunto? A resposta é negativa. Só falou à imprensa porque a conversa tinha sido ilegalmente disponibilizada para os meios de comunicação. Por isso, uma decisão não pode considerar a tal conversa como prova no processo.
Outro aspecto merecedor de análise consiste no argumento de que a finalidade da decisão do Min. Gilmar Mendes não foi a de propriamente impedir que o ex-Presidente Lula viesse a ser Ministro de Estado, mas sim o de fazer com que o processo de investigação que corre contra ele seja julgado pelo juiz Sérgio Moro. Essa, inclusive, é a conclusão da parte final de sua decisão, ao determinar que sejam devolvidos os autos de eventuais processos criminais à Vara Federal de Curitiba. Todavia, ao considerar uma fraude processual com vistas a burlar a regra do foro competente, não precisaria o STF anular o ato de nomeação de Ministro, que é uma prerrogativa própria da Presidente da República. É preciso lembrar que, no caso “Donadon”, citado na própria decisão em análise, o argumento da fraude processual não fez o STF invalidar o ato de renúncia do parlamentar prestes a ser submetido a julgamento por esta Corte, mas apenas dizer que, mesmo não sendo mais parlamentar, o seu processo continuaria a ser julgado naquela Corte. Portanto, o STF, para manter a coerência no uso de seu precedente, ao defender a existência de fraude processual, poderia dizer que o ex-Presidente Lula, mesmo sendo Ministro de Estado, teria eventual investigação e/ou processo judicial sob a competência do juiz Sérgio Moro (assim como Natan Donadon, mesmo não sendo mais Deputado Federal, teve seu caso julgado pelo STF). Não seria, portanto, necessário suspender ou anular o próprio ato de nomeação adotado pela Presidente.
Por fim, um último aspecto que merece uma consideração. É que a questão ora apreciada pelo Tribunal tem a mais alta significação política, jurídica e institucional. Envolve ato político, editado pela Presidente da República, de nomeação do ex-Presidente para cargo de Ministro de Estado, sobre quem pesam indícios de prática de condutas ilícitas, no contexto atual de grande clamor social e político. Em tais circunstâncias, o Min. Gilmar Mendes, na última quarta-feira, por ocasião do julgamento dos embargos de declaração a respeito do rito do processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, fez considerações sobre a legalidade do ato de nomeação do ex-Presidente Lula, expondo, antecipadamente, sua visão sobre o tema. Ademais, é fato público e notório que o Min. Gilmar Mendes tem tecido severas críticas ao atual Governo, o que justificaria, na atual conjuntura, uma atitude de cautela e parcimônia.
Desse modo, a preservação da imparcialidade e da independência do Tribunal em uma situação dessa magnitude, cuja capacidade para melindrar ainda mais o já sensível quadro politico atual é indiscutível, demandaria, por parte do juiz relator, a submissão da decisão diretamente ao colegiado, por prudência, por integridade (dworkiniana, evidentemente) e por responsabilidade institucional. Isso não representaria qualquer cerceamento de sua liberdade de decidir, tampouco uma inovação no âmbito da jurisprudência do STF ou, ainda, o risco de um prejuízo irreparável ou de difícil reparação, mas, certamente, traria maior legitimidade e institucionalidade à eventual decisão (do Supremo, e não de um único ministro) de suspensão do ato de nomeação do ex-Presidente Lula ao cargo de ministro da Casa Civil.
Nesse contexto, seria interessante recordar que, no MS n. 25.579, impetrado pelo então Dep. José Dirceu com o objetivo de anular o processo disciplinar em curso na Câmara dos Deputados, cuja relatoria final recomendava sua cassação, o então relator, Min. Sepúlveda Pertence, em face do pedido de liminar, deixou de decidir monocraticamente para submeter o caso ao órgão plenário do STF, ante à sensibilidade política e repercussão social do caso na vida política do país, tentando, dessa forma, evitar qualquer identificação entre seu envolvimento pessoal/político com o conteúdo da decisão.
Com efeito, o relator adotou o seguinte posicionamento, em sua decisão de 10 de outubro de 2005:
"Assim como tem sido admitido (v.g., MS 21564-QO, 10.9.92, Gallotti, RTJ 169/45; MS 22864-QO, 4.6.97, Sidney, RTJ 182/148; MS 23047-MC, 11.2.98, Pertence, DJ 11.2.98), atendo à relevância institucional da questão versada, submeto ao plenário do Tribunal o pedido de liminar deste mandado de segurança".
Conclui-se, assim, que, sob o ponto de vista estritamente jurídico e processual, a decisão apresenta fundamentação contraditória (considera que houve desvio de finalidade no envio de documento – termo de posse – não assinado para servir como salvo conduto, quando, ao contrário dessa premissa, considera que o documento enviado não valeria para essa finalidade); está também carente de fundamentação (informa que a posse do ex-Presidente no cargo de Ministro de Estado tumultuaria as investigações, mas não revela adequadamente qual(is) tumulto(s) seriam esses, permanecendo no plano da especulação; utiliza-se de provas contaminadas (a conversa entre Lula e Dilma foi colhida quando já ausente a autorização judicial e exposta, indevidamente, ao público em geral) e, por fim, foi tomada monocraticamente destoando da jurisprudência da Corte que, em casos de grande repercussão que possam causar instabilidade, tem encaminhado os autos para decisão colegiada.
Artigo produzido pelo grupo Recife Estudos Constitucionais (REC / CNPq), formado pelos professores Adriana Rocha de Holanda Coutinho, Flávia Danielle Santiago Lima, Glauco Salomão Leite, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira, José Mário Wanderley Gomes Neto, Luiz Henrique Diniz, Marcelo Casseb Continentino e Marcelo Labanca Corrêa de Araujo.
Imagem Ilustrativa do Post: paper // Foto de: Helen Cook // Sem alterações
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