Direito e metageografia: pela virada espacial na sociologia jurídica – Por Norberto Knebel

21/07/2017

Coordenador: Marcos Catalan

Em seu texto nesta coluna, publicado no dia 16/04/2017, o professor Marcos Catalan adiantou como é possível identificar a expansão do direito penal – expressa no conteúdo de sua seletividade e controle social – na repressão do fenômeno espontâneo chamado “rolezinho”[1]. É visto a semelhança entre as práticas da criminalização e do controle exercido nos espaços dos shoppings centers, por isso que esse processo possui consequências, ou braços do direito, alargados ao direito do consumidor, por exemplo – ao passo que os criminalizados sequer são considerados consumidores dentro desse ambiente.

Ainda, além dos “rolezinhos”, esses modos privados de tratamento penal, também são identificados na tecnologia de vigilância e controle da segurança privatizada – que já fora tratado nesta coluna. Fora o desafeto a tantos direitos fundamentais, ao fim de garantir o “funcionamento habitual da cidade”, como diria uma juíza de direito ao determinar uma reintegração de posse em ocupação por moradia[1].

Neste texto, abordo de forma incipiente uma questão metodológica fundamental para o estudo das cidades na criminologia e na sociologia do Direito: o estudo da produção do espaço. É a “virada espacial” que a geógrafa Ana Fani Carlos – nossa principal referência hoje[2] – intitula no estudo da metageografia. Essa é a forma crítica do estudo da geografia que compreende a realidade urbana a partir do conceito central de “produção do espaço”[3]. Essa concepção permite superar a ideia de espaço como local da atividade humana, sendo o espaço uma dimensão social produzida por uma sociedade estratificada em classes. A práxis social que constitui o mundo objetivamente visto é, necessariamente, sua dimensão socioespacial.

E em um sistema econômico capitalista o processo de produção e reprodução do capital transforma o espaço em mercadoria. Bingo! Parece algo notório, mas só é possível se entendermos o espaço como algo produzido de forma distinta, não um lócus, mas um processo. A partir daí podemos enxergar o espaço a partir da teoria do valor marxista, que condiciona o espaço a propriedade privada – e o mercado imobiliário, portanto.

Nessa ideia de uma concepção marxista de espaço, a professora Ana Fani Carlos, indica que a manifestação de uma teoria dialética do espaço urbano - enquanto produto, condição e meio para a reprodução das relações sociais – é a realização do ser social nos planos (a) econômico; (b) político; (c) social, tendo como plano de fundo o contexto da globalização promovido pela globalização, reforçando o papel da produção do espaço frente os processos de desterritorialização e reterritorialização promovidos na geopolítica internacional. Ou seja, é ver o espaço através de sua produção/reprodução enquanto face da realidade social, sem dimensão ontológica.

Ao nível do materialismo histórico, a metageografia articula a teoria e a prática:

A práxis revela-se contraditória, isto é, a contradição entre o processo de produção social do espaço e sua apropriação privada está na base do entendimento do processo de reprodução espacial que determina todos os momentos da vida. O processo de produção do espaço se submete à lógica capitalista que o tornou mercadoria, subsumindo a vida. A produção do espaço enquanto mercadoria liga-se, cada vez mais, à forma mercadoria, servindo às necessidades da acumulação, através das metamorfoses dos usos e funções dos lugares que também se reproduzem sob a lei do reprodutível, a partir de estratégias da reprodução (em cada momento da história do capitalismo).[4]

A partir da geografia econômica crítica/radical que o espaço passou a ser estudado como um processo produzido e reproduzido sob ditames capitalistas e as particularidades (da regra) que é a forma mercadoria. Por isso, nossas análises jurídicas podem passar a conceber o espaço urbano de forma espacial – correspondendo a dialética inerente ao seu processo de produção e reprodução. O espaço possui dimensões. O shopping center, ao reprimir os “rolezeiros” e ignorar direitos fundamentais não é somente um local do fato- implicado por classes sociais, seu padrão de consumo e a relação de trabalho-, mas sim a síntese dessas questões que produz o espaço. A criação de enclaves fortificados responsáveis pela homogeneidade fictícia do espaço é um processo contínuo, submisso ao valor de troca, a reprodução ampliada do capital e a fetichismo da mercadoria.

O espaço na globalização compreende as tendências de privatização e esfacelamento do espaço público. O “direito à cidade” nos termos de Lefebvre passa pelo enfrentamento da sociedade submetida à economia e à política, somente superável por meio da extinção da contradição na produção do espaço, entre valor de uso e troca. Na “cidade como mercadoria”, conforme identificado pela metageografia, ficamos com algumas obrigações anteriores às análises localizadas, é o contato entre local e global, e vice-versa.

Nesse sentido que já foram abordadas nesta coluna a mercantilização do direito à segurança nos instrumentos de segurança privatizada, alimentado pela força dos processos de gentrificação – na qual as classes médias aderem aos padrões de fechamento e autossegregação, aderindo aos meios da seletividade e controle penal, servindo à expansão do Direito Penal[2]. E é como os shopping centers serão reflexos de todas as dimensões espaciais, sendo, em exemplos, a distinção de classes integrante de uma delas (social), o rentismo do solo outra (econômica) e o Plano Diretor que favorece esses investimentos outra (político). Mas que não são lados, mas sim dimensões que produzem uma mesma unidade: o espaço.

A criminologia, por exemplo, ainda analisa o espaço do ponto de vista da concepção da Escola de Chicago, na análise dos comportamentos locais, das pesquisas empíricas de bairros, territórios e ambientes. Seriam pesquisas diferentes, com objetivos distintos e objetos que não conflitam, mas serve para demonstrar que a criminologia não passou pela “virada espacial”. A pesquisa sócio-espacial é essencialmente multidisciplinar[5], a dialética do espaço não serve somente aos geógrafos, nem será o fundamento teórico de uma pesquisa da sociologia jurídica, porém, a geografia crítica mais próxima das ciências sociais e jurídicas não consegue mais enxergar o espaço de forma banal. O objetivo é que os estudos da sociologia do Direito possam também.

Por exemplo, teorias como a criminologia radical[6] – fundamentada no materialismo histórico – ao falar da criminalidade urbana, encontra na metageografia um par teórico adequado: uma visão do espaço propriamente dialética. Portanto, a sociologia jurídica ao estudar fenômenos como a gentrificação, os “rolezinhos”, o direito à moradia ou a política fundiária, tem na concepção de uma produção capitalista do espaço uma visão mais complexa das narrativas econômicas e sociais do global ao local, que, talvez, seja mais digna a certas pesquisas.

Por isso, que uma visão crítica no Direito, principalmente na seara marxista do materialismo histórico, passa por uma “virada espacial” nas pesquisas. Entendendo-a não como o rompimento às fontes conhecidas como marco teóricos, mas adendo importante a abordagem das cidades. A utilização do termo “espaço urbano” ao nível metodológico.[7][8]


Notas e Referências:

[1] Ver: http://www.sul21.com.br/jornal/lanceiros-negros-brigada-faz-operacao-de-guerra-para-garantir-funcionamento-habitual-da-cidade/

[2] Ver em: http://emporiododireito.com.br/gentrificacao-e-seguranca-privatizada-por-norberto-knebel/

[1] Coluna disponível em: http://emporiododireito.com.br/a-mao-que-afaga-e-a-mesma-que-apedreja-por-marcos-catalan/; ver, também: CATALAN, Marcos. Rolezinho: a negação de direitos fundamentais nas fronteiras da sociedade de consumo. In: VI Encontro Internacional do CONPEDI, Costa Rica, 2017, San Jose. Cátedra Unesco de Direitos Humanos ULASALLE-CEDE. Florianópolis: Conpedi, 2017.

[2] Ver:  CARLOS, Ana Fani Alessandri. A tragédia urbana. A cidade como negócio. São Paulo: Contexto, p. 50, 2015; CARLOS, Ana Fani Alessandri. A (re)produção do espaço urbano. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2008; CARLOS, Ana Fani Alessandri. A condição espacial. 1. ed. São Paulo-SP: Contexto, 2011; CARLOS, Ana Fani Alessandri. O Espaço Urbano: Novos escritos sobre a Cidade. São Paulo: FFLCH, 2007.

[3] Nesta coluna falei sobre a teoria da produção social do espaço em Lefebvre, um dos precursores da crítica à Escola do Chicago, inaugurando a visão marxista sobre o espaço. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/tag/henri-lefevbre/. Também, recomendo a leitura de CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 6ª edição. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2014; SMITH, Neil. Desenvolvimento Desigual: Natureza, Capital e Produção do Espaço. Tradução: Eduardo de Almeida Navarro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988; HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. Tradução: Carlos Szlak. São Paulo: Annablume, 2005.

[4] CARLOS, Ana Fani Alessandri. A VIRADA ESPACIAL. Mercator-Revista de Geografia da UFC, v. 14, n. 4, p. 7-16, 2015.

[5] Ver: SOUZA, Marcelo Lopes. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013; e SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2008.

[6] Ver: CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2002; e CHIARI, Vanessa. A repressão penal no Brasil Contemporâneo pelo olhar da criminologia radical. Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, RS , v. 3, n. 1, p. 223-238, 2015. Disponível em: <http://revistas.unilasalle.edu.br/index.php/redes/article/view/2103/1360>.

[7] Por exemplo, n sociologia do direito, um autor que adota uma concepção de espaço produzido (de Lefebvre) é o pesquisador da Griffith Law School na Austrália, Chris Butler, ver : BUTLER, Chris. Law and the social production of space. Queensland. 302 p. 2003. Tese de Doutorado - Faculty of Law, Griffith University; BUTLER, Chris. Henri Lefebvre: Spatial politics, everyday life and the right to the city. Routledge, 2012; e BUTLER, Chris. Critical legal studies and the politics of space. Social & Legal Studies, v. 18, n. 3, p. 313-332, 2009.

[8] Ver: KNEBEL, Norberto; COSTA, Renata Almeida. Gentrificação e criminalidade urbana: uma abordagem a partir da sociologia urbana e da criminologia crítica. In: V encontro internacional do Conpedi, 2016, Montevidéu, Uruguai. Criminologias e política criminal I, 2016.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Ocupação Lanceiros Negros, em Porto Alegre (RS), resiste à reintegração de posse • 24/05/2016 // Foto de: Mídia NINJA // Sem alterações

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