Direito e Interdisciplinariedade: um “cemitério de ideias mortas

31/03/2015

Por Atahualpa Fernandez - 31/03/2015

Como muitas correntes e movimentos filosóficos, muitos juristas, absolutamente seguros de si mesmos e convencidos que sabem mais que ninguém, escrevem em um momento determinado suas teorias, uma «poética» para adultos completamente ignorante do domínio de qualquer conhecimento ou técnica científica: uma província do imaginário que linda com um continente meramente especulativo.

Nos últimos tempos se impôs no mundo acadêmico o «desideratum» da interdisciplinaridade, entendida em um sentido mínimo como a interação, coordenação e conexão de disciplinas distintas com o fim de melhorar as explicações fragmentárias sobre partes do mundo. Nesse sentido, a interdisciplinaridade se caracteriza pela busca sistemática de integração das teorias, métodos, instrumentos e, em geral, fórmulas de ação científica de diferentes disciplinas, a partir de uma concepção multidimensional dos fenômenos, e do reconhecimento do caráter relativo dos enfoques científicos por separado. Que dúvida cabe que é esta uma aspiração estimável que se compadece com o bom sentido epistêmico de mitigar ou eliminar a prática da ciência em compartimentos estancos.

Nada obstante, muito do que se afirma neste campo de cooperação entre disciplinas não passa de ser “propaganda gremial disfarçada de alguma teminologia confusa ou de algum arabesco metodológico inecessário”(M. E. Salas). De fato, a realidade de sua utilização demonstra que seu uso ainda é muito escasso e que quando se efetua muitas vezes se realiza baixo formas teóricas limitadas, pelo que é frequente que se restrinja a meras intenções ou a logros muito por debaixo das possibilidades que suas características oferece. Quero dizer, se trata mais bem de algo que todos falam e ninguém pratica, que todos elogiam mas ninguém realiza.

E não é distinto o atual discurso interdisciplinar no âmbito da filosofia e da ciência do direito: é tacanho e precário ao mesmo tempo. Um tipo interdisciplinaridade restrita (prioritariamente) ao âmbito das ciências sociais normativas que acabou transformando-se em um “mainstream” do pensamento jurídico-científico atual e que vem sendo posta em causa (continuamente) pelos novos descobrimentos procedentes das ciências dedicadas ao estudo científico da natureza humana e dos esforços por compreender a condição humana baseados em estudos empíricos.[1] Dito de forma um pouco grossa, como muitas correntes e movimentos filosóficos, muitos juristas, absolutamente seguros de si mesmos e convencidos que sabem mais que ninguém, escrevem em um momento determinado suas teorias, uma «poética» para adultos completamente ignorante do domínio de qualquer conhecimento ou técnica científica: uma província do imaginário que linda com um continente meramente especulativo.

Como afeta o isolamento teórico-dogmático do conhecimento jurídico a estrutura e a função do direito? Em que medida o frenesi endêmico da ciência jurídica constitui um grave obstáculo para averiguar o que podemos saber e, a partir daí, decidir o que devemos e o que queremos fazer no âmbito do direito? Por que os juristas, “cientistas” e/ou filósofos do direito continuam ilhados das demais ciências e se resistem a evolucionar ou, se o fazem, seus câmbios não provêm de nenhuma investigação científica séria? Por acaso não sabem que o isolamento  disciplinar é um indicador fiável da falta de cientificidade e honradez intelectual? Quanto tempo os juristas tardarão para entender que não podem existir sorrisos (ou pensamentos) sem cabeça?  Até quando seguirão banhando-se nas águas estancadas dos labirintos de uma erudição acadêmica que não conta com o certificado de legitimidade das ciências dedicadas a aportar uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana?

Existe uma evidente paisagem teoricamente anfibológica, hermeticamente cerrada e cognitivamente hostil à realidade por parte da cultura jurídica em que os juristas, fiéis à “pureza do direito”, parecem estar sempre imunes a toda argumentação que não se ajuste ao seu intransigente e quase místico sistema de crenças. Uma classe de resistência construída durante anos de condicionamento e «domesticação» (essa constelação de todos os prejuízos e ideias preconcebidas que vamos acumulando ao longo da existência), e cujo resultado é a incapacidade de ver o que não estão acostumados a ver ou que não têm de antemão na cabeça, isto é, de recordar, insistir e atentar somente aos fatos que confirmam suas respectivas crenças e olvidar aqueles que as desafiam.

Um tipo de cultura atravessada por certezas endógenas alheias às implicações jurídicas da natureza humana e que mais se parece – para utilizar a gráfica expressão de Unamuno – a “um cemitério de ideias mortas”. Ali crescem, se reproduzem e morrem a diário distintas e muito heterogêneas concepções sobre o que “é”, sobre o que “deve ser” e sobre “como” aplicar o direito. Cada uma das correntes, cada um dos autores, defende seu próprio conceito do jurídico, de interpretação e aplicação do direito, de argumentação jurídica, de racionalidade, de justiça, etc. Surgem assim as “Escolas”, com seus discípulos e mestres (e não poucas vezes com seus lacaios e mentores). Não sem razão já se disse – com ironia – que a disciplina jurídica é um templo com sacerdotes e Bíblias muito distintas e com credos contraditórios: um templo donde os sacerdotes elaboram e enunciam suas teorias propondo fórmulas e técnicas, conceitos e postulados, critérios e métodos para fazer do direito uma disciplina (ou “ciência”) cada vez mais limpa ou descontaminada. Um templo em que a identidade triunfa sobre os fatos. E isto existe mais cerca de casa do que imaginamos.

Opino que esta tendência a reduzir o estudo do direito a apenas «disciplinas formais sobre o direito» e de restringir o «método jurídico» essencialmente a uma técnica de interpretação e aplicação judiciária ou administrativa de normas (ainda que ornada em uma aura - pseudo - interdisciplinar), constitui um indicador fundamental e fiável de um elemento tipicamente religioso do fenômeno jurídico: o pensamento mágico da pureza e a magia por contágio. Ilustro.

Na religião há uma obsessão pela pureza, daí os rituais de purificação de tantas religiões (o próprio batismo é um deles). A magia por contágio é a crença em que qualquer coisa em contato com outra impura se contamina dessa impureza. O impuro deve ser exterminado totalmente (A. Carmona). Isso explicaria todos os esforços dos juristas por apresentar-se e manter-se de modo imaculado. Pureza que implica não somente estar imersos unicamente no âmbito do “jurídico”, senão estar separados e distantes de qualquer elemento contaminado, mesmo que seja minimamente, como seriam todas as demais ciências da vida, da mente e da natureza humana como objeto de investigação empírico-científica.

O “prestígio” do direito está em sua novidade e caráter puro (ou virginal): qualquier vínculo com algo externo deve ser cortado e eliminado de raiz. A pureza implica nenhuma relação com o exterior e o estranho. Não está permitido intentar utilizar algo de outras ciências existentes para reformar ou regenerar suas crenças e teorias; é um imperativo começar de zero, reforçar a sensação de novidade absoluta e enclausurar-se para manter a pureza e a genuinidade: etéreo «adamismo». Um «adamismo» e purismo demasiado peculiar de alguns juristas profissionais, «esos especialistas en todo y en nada que, sin dominar ninguna técnica científica, tienen la insolencia de atreverse a hablar de todo lo divino y lo humano» (Manuel Sacristán).

Trata-se, sobra dizer, de um posicionamento teórico-acadêmico de uma impostura insofrível e cuja única vantagem consiste em que não conduz a nada: se aplica mais quantidade da mesma «solução » e se colhe mais quantidade das mesmas sandices (P. Watzlawick). Um mito, denuncia Daniel Kahneman, já que a “ciencia es una empresa humana afectada por sombríos sesgos emocionales, cognitivos e ideológicos, incluyendo rasgos propios de mente de colmena y por el tipo de presiones sociales «conservadoras» y «progresistas» descritas por Thomas Kuhn”. E se nos aprofundamos um pouco mais nesta espécie de espírito anti-intelectual, de dano autoinfligido, aparece um quadro muito mais enganoso, estrafalário e tenebroso, de sinistra competência, seleção despiedada e traiçoeiras correntes jurídicas.

Desde meu ponto de vista, dado que a valoração do fenômeno jurídico está diretamente relacionada com dinâmicas profundamente enraizadas na natureza humana, minha postura é que devemos ter em conta o «é» à hora de decidir o que «deve ser», quero dizer, que devemos ter em conta a natureza humana à hora de elaborar, interpretar e aplicar o direito e que não podemos eleger de forma arbitrária qualquer «dever ser»: as normas jurídicas (e morais) evolucionaram para adaptar-se à mente humana. Esta, em minha opinião, constitui a melhor trajetória para distanciar-nos das crenças e opiniões de longa data não baseadas na evidência, ademais de ajudar-nos a buscar as raízes de nossa conduta ético-jurídica em como somos, no que nos ocupa e o que nos preocupa, em nossa natureza, em definitiva.

Como recorda Steven Pinker, “cuando leo a Descartes, Spinoza, Hobbes, Locke, Hume, Rousseau, Leibniz, Kant, Smith, me asalta a menudo la tentación de viajar hacia atrás en el tiempo para ofrecerles alguna pieza de ciencia fresca del siglo XXI que pudiera llenar algún hiato en sus argumentos o servirles para dar un rodeo y salvar algún obstáculo atravesado en su camino. ¿Qué no habrían dado estos Faustos por disponer de ese conocimiento? ¿Qué no podrían haber logrado, muñidos y pertrechados con el mismo? No es necesario fantasear con ese escenario, porque nosotros vivimos en él. Tenemos las obras de los grandes pensadores y sus herederos, y disponemos del conocimiento científico con el que ellos ni siquiera se habrían avilantado a soñar. La nuestra es una época extraordinaria para la comprensión de la condición humana. Problemas intelectuales que proceden de la antigüedad resultan ahora iluminados por los fogonazos procedentes de las ciencias de la mente, del cerebro, de los genes y de la evolución”.

Parece que entre os propósitos da atitude anti-interdisciplinar adotada pela maioria dos juristas não está a busca da verdade senão a mera persuasão ou prática retórica (“l´art du bavardage”, como diria J. Lacan): “simular chegadas, sem saídas e sem viagens”. O problema é que uma ciência que não adverte os signos de sua própria estagnação e potencial embrutecimento, porque seu “fundamento” e  ideologia é um mito continuo de justiça, interpretações e/ou normas, se separa da realidade e se corrompe em uma ilusão. Tal como sentencia Robert Trivers, quando eliminamos a biologia da vida social, só nos resta “palavras” e qualquer ciência ou filosofia fica reduzida a um de tantos sistemas arbitrários de pensamento.

Nem sequer a linguagem (que, desde logo, é profundamente biológica), senão só palavras que têm um poder mágico de dominar a realidade e são capazes de inclinar nosso pensamento. E dado que o grau de crença em algo se transforma na medida de seu valor de verdade, quando alguém vende um produto péssimo com argumentos débeis ou meramente especulativos, não quer saber nada das consequências. Assim choca a idiossincrasia com a realidade: a negação do direito (e da justiça) como «propriedade emergente» da natureza humana.

E não se trata, a interdisciplinaridade, de um problema de pouca importância ou de um mero exercício mental para os juristas e os filósofos acadêmicos, já que todo esforço intelectual, seja autêntico ou falso, não somente possui uma filosofia subjacente, senão que a avaliação da filosofia subjacente a um campo do saber é uma reveladora maneira de efetuar distinções e julgar seu valor (M. Bunge). O que implica que a eleição da forma de abordar o direito (e sua respectiva filosofia subjacente) supõe uma diferença importante no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, condiciona as estratégias que adotamos para regular nossas instituições e práticas sociais, e determina, em última instância, o repertório de ideias e teorias acerca do sentido e da finalidade do raciocínio prático ético-jurídico.

A aplicação da ciência ao direito não somente enriquece nosso acervo de ideias, senão que proporciona também instrumentos para averiguar quais têm maiores probabilidades de ser corretas. Estabelecer conceitos, valores e normas que não têm nada que ver com a natureza humana é o mesmo que condená-los ao fracasso. E ainda quando os fatos científicos não ditam por si mesmos valores e normas, não cabe dúvida de que “limitan las posibilidades de ellos” (S. Pinker).

Por dizê-lo de alguma maneira: já não mais parece legítimo e razoável construir castelos “no ar” acerca da boa ontologia, da boa metodologia, da boa hermenêutica, da boa sociedade ou do direito justo. Há que insistir na busca honrada do saber jurídico autêntico sobre o mundo real, com a ajuda de meios tanto teóricos como empíricos (em concreto, o método científico). Teorizar sobre o direito depreciando ou ignorando a necessidade de se levar em consideração as aportações decorrentes das ciências adjacentes desde uma radical perspectiva interdisciplinar é o mesmo que pretender calcular ou medir o tempo necessário para voar de um lugar a outro empregando a definição do tempo de Heidegger como “maduração da temporalidade”. Uma estafa ou um impulso de mediocridade.

Quanto mais de ciência os juristas sejam capazes de aprender, mais se darão conta do que ainda não sabem, e da natureza defeituosa do que afirmam saber. Além disso, uma das características distintivas em toda boa e genuína ciência, cujo ensino é inseparável do ensino da dúvida (informada), é a mutabilidade: a ciência se vai modificando, é eminentemente mutável. Pelo contrário, um aglomerado de teorias com viso de cientificidade e suas ideologias de fundo se acham estancadas ou somente cambiam baixo a pressão de grupos de poder ou por efeito de disputas entre facções (M. Bunge).

Em resumo, ou bem optamos por considerar que a ciência jurídica é um âmbito gnosiológico autocontido que não requer fazer explícitos os princípios nem a metodologia da investigação procedente de outras disciplinas (uma sorte de reino causal insulado), de modo que não nos resta outra saída que a via de uma exploração hermenêutica arbitrária, abstrata e especulativa; ou bem consideramos epistêmicamente irrenunciável a necessidade de encontrar explicações empiricamente contrastáveis e consideramos, ademais, que o verdadeiro conhecimento do humano consiste em decifrar a rede de conexões causais entre as dimensões do natural e do cultural, do inato e do adquirido.

A visão que do mundo deve ter todo jurista cientificamente cultivado – e não obnubilada por qualquer espécie de fundamentalismo – exige uma drástica ruptura  com as concepções religiosas do fenômeno jurídico, que insistem em meter em quarentena às ciências da natureza humana e excluí-las do esforço por compreender a importância das explicações (realistas, factíveis e aceitáveis) da condição humana no contexto do direito. Uma coisa é certa: se não promovermos honesta e explicitamente o princípio central da ciência —que nada é sagrado e que ilumina com novas interpretações os velhos problemas que até agora permanecem no limbo da filosofia e da ciência do direito — então continuaremos animando a que o mito sobreviva.

O realmente novo já está aí fora e negá-lo parece ser de um cinismo atroz e/ou de uma estupidez imperdoável e irredimível. E posto que a ciência trata todo o tempo de estender os limites do que se conhece, os juristas que se negam  intolerantemente a admitir sua relevância para o âmbito do direito estão continuamente sendo empurrados contra uma barreira de ignorância.

Tudo está contaminado.


Notas e referências:

[1] Por exemplo: biologia evolutiva, psicologia evolucionista, primatologia, antropologia evolutiva, neurociência, ciências cognitivas, genética comportamental, etc. Claro que dizer que existe uma natureza humana é algo que não está admitido por todo mundo (filósofos e cientistas). Muita gente (especialmente das ciências sociais) segue pensando que o ser humano é uma «tabula rasa» na qual que se pode escrever qualquer coisa, que sua maleabilidade é infinita e que é somente produto da cultura. Mas para os que não compartem dessa ideia, dizer que existe a natureza humana significa dizer que existem uma série de disposições de conduta e psicológicas que foram modeladas e refinadas pela seleção natural e que são evocadas pelo ambiente em que se vive. O comportamento moral e o sentido da justiça não são criados a partir de zero em cada indivíduo unicamente pelas forças da cultura, a educação ou as boas e más experiências vitais, senão que formam parte de nossa herança como espécie. Existe uma anatomia humana universal (com variações) e existe uma psicologia humana universal (também com variações). O importante, aqui, é ter em conta que não se pode utilizar a cultura como explicação de qualquer fenômeno, senão que a cultura é algo que em si mesmo requer explicação: Por que se estendem umas ideias ou práticas e não outras? Por que triunfam certas condutas e normas em um sítio e outras em um lugar não muito distante? Pretender “explicar” a cultura com a cultura é, em última instância, «redescrever» um fenômeno, não é uma explicação. Em resumo, a cultura não é independente da biologia e a cultura como explicação causal é um mito: a cultura e a variação cultural é um fenômeno que necessita explicação por si mesmo.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


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