Direito Administrativo Sanitário (Parte I) – Por Clenio Jair Schulze

11/01/2016

A existência de uma nova visão em relação ao direito à saúde – ainda que se permita compreender como direito não absoluto[1] – e os milhares de processos judiciais sobre o tema[2] são dois fundamentos que ensejam a construção de uma nova área, denominada direito administrativo sanitário[3].

O direito administrativo sanitário nasce, portanto, para permitir uma mudança de postura em relação à atuação do Estado, na perspectiva da administração pública.

Esta nova dimensão do direito administrativo deve tratar de assuntos voltados à tentativa de permitir maior qualificação dos serviços de saúde e apontar – essencialmente – pontos para superar os obstáculos que impedem a redução de processos judiciais sobre saúde no Brasil.

É claro que a nova postura deve mirar, com atenção especial, o funcionamento do Sistema Único de Saúde - SUS.

Quais são, então, os obstáculos que o direito administrativo deve superar para aumentar a eficiência, reduzir a judicialização e permitir o adequado funcionamento do Estado administrador?

Em primeiro lugar, cabe ao direito administrativo sanitário auxiliar na redução do fenômeno da cultura do litígio. O Brasil é campeão mundial de judicialização se observada a proporção entre processos e habitantes[4]. Tudo é levado à porta dos Tribunais, sem qualquer limite ou contenção. Isso decorre, muitas vezes, do burocratismo vigente no Executivo e no Legislativo.

Em segundo lugar, o direito administrativo sanitário deve fomentar a construção de uma governança pública. Com efeito, é muito baixo o controle de resultados da atuação estatal. A governança pública adequada permite maior controle da gestão, com notórios ganhos na execução de políticas públicas de saúde em prol da população. Governar significa dirigir, monitorar e avaliar. A questão envolve, também, a implantação de noções de planejamento estratégico, com auxílio na implantação de rotinas, metas e no respectivo controle do desempenho da atuação estatal.

O Decreto-Lei 200/67 já estabelece no artigo 10 e parágrafo 4º que a execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada e que compete à estrutura central de direção o estabelecimento das normas, critérios, programas e princípios, que os serviços responsáveis pela execução são obrigados a respeitar na solução dos casos individuais e no desempenho de suas atribuições. Tal previsão precisa ser efetivamente concretizada e ampliada a fim de pulverizar a noção de boa governança pública.

Em terceiro lugar, o direito administrativo sanitário precisa fomentar a ocupação adequada dos cargos públicos. A gestão da saúde no Brasil ainda é pouco profissionalizada. A ausência de meritocracia impede a melhoria da qualidade da prestação de serviços em saúde, especialmente do SUS e, principalmente, nos Municípios. Isso reduz a eficácia do Estado-administração e fomenta a judicialização.

A meritocracia prestigia o profissional que reúne melhores condições de aptidão, capacidade, excelência e qualificação para o cargo público[5].

Em quarto lugar, cabe ao direito administrativo sanitário o cumprimento do dever fundamental de exercer a boa administração pública.

Afirma-se, na atual quadra, que o cidadão possui direito fundamental à boa administração, vale dizer, "o direito à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação e à plena responsabilidade por suas condutas comissivas e omissivas" ou "o direito à administração preventiva, precavida e eficaz (não apenas eficiente), vale dizer, comprometida com resultados em sintonia com os objetivos fundamental do Estado Democrático e, nessa medida, redutora dos conflitos intertemporais, que só fazem aumentar os chamados custos de transação[6].

Em quinto lugar, o direito administrativo sanitário exige a melhoria da qualidade de serviços dos médicos do SUS. A despeito da previsão no Código de Ética Médica (Resolução CFM nº1931/2009) da necessidade de observância e respeito à legislação de regência e à adoção da medicina de evidência, é muito comum ver médicos no Brasil prescrevendo medicamentos, tratamentos e tecnologias sem qualquer base científica. É a crise do ensino médico e a crise dos profissionais da área médica. A prática da medicina de experiência ou da medicina da eminência precisa ser exterminada, pois é fomentadora de processos judiciais. Além disso, é muito difícil de controlar a relação dos médicos com a indústria farmacêutica. E a judicialização pode acelerar a entrada - muitas vezes indevida - de novos medicamentos em um mercado que movimenta bilhares de reais ao ano[7].

Portanto, o papel do direito administrativo sanitário é instruir e educar de modo adequado os médicos e profissionais da área da saúde que integram os quadros do serviço público.

Em sexto lugar, o Executivo precisa considerar as consequências das decisões como critério de direito administrativo. Com efeito, se o SUS opta por incorporar determinado tratamento ou medicamento, deve, automaticamente, adotar mecanismos para a imediata concretização desta decisão. O direito administrativo sanitário deve, assim, promover regras adequadas de licitação, tendentes a permitir a aquisição tempestiva dos medicamentos incorporados ao sistema. O novo direito administrativo também deve, v.g., ajustar seu orçamento para fazer frente às novas exigências.

Em sétimo lugar, é missão do direito administrativo sanitário ampliar controle e a concretização do papel da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias – Conitec no SUS. Cabe a tal entidade assessorar o Ministério da Saúde na incorporação, exclusão ou alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, além de auxiliar a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica.

Em oitavo lugar, o direito administrativo sanitário deve fomentar que o agente do SUS informe à autoridade judiciária responsável por conduzir processo em que se postula a concessão de medicamento, tratamento ou tecnologia, o teor das decisões proferidas pela Conitec e de outras entidades com respeitabilidade no cenário mundial, a fim de qualificar o processo judicial e evitar decisões inadequadas.

Em nono lugar, é papel do direito administrativo sanitário auxiliar o juiz na análise do caso judicializado, apresentando a investigação do diagnóstico, quadro clínico e principalmente, a comprovação da melhor prática de evidência científica, além da eficácia, da acurácia, da efetividade e da segurança do medicamento, produto ou procedimento postulado, sem dispensar, também, a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas (observância da relação custo-benefício).

Considerando que o Judiciário tem criado políticas públicas de saúde - ainda que indevidamente, proferindo decisões judiciais de concessão de medicamentos e tratamentos não previstos no âmbito do SUS, é inegável a decisão judicial deverá ser acompanhada pelos agentes de políticas públicas de saúde.

Em décimo lugar, o direito administrativo sanitário exige dos advogados e procuradores que representam os entes públicos em Juízo, uma atuação de forma dialógica, pois na missão de defender o interesse da administração, também devem auxiliar o juízo, prestando informações técnicas adequadas, principalmente na área da saúde. Exige a superação, portanto, do papel comum exercido pelos advogados públicos, de alegar apenas questões jurídicas nos processos sobre direito à saúde. É indispensável avançar para que o processo passe a ser alimentado por informações técnicas e do sistema de saúde.


Notas e Referências:

[1] SCHULZE, Clenio Jair. O direito à saúde é um direito absoluto? Revista Empório do Direito, Florianópolis, 23/11/2015. Disponível em http://emporiododireito.com.br/o-direito-a-saude-e-um-direito-absoluto-por-clenio-jair-schulze/ Acesso em: 10 jan. 2016.

[2] NETO, João Pedro Gebran. SCHULZE, Clenio Jair. Direito à Saúde. Análise à luz da judicialização. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2015.

[3] SCHULZE, Clenio Jair. Direito administrativo sanitário. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n.67, ago. 2015. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao067/Clenio_Schulze.html>

Acesso em: 10 jan. 2016.

[4] BONIFÁCIO, Ivan. SCHULZE, Clenio Jair. Campeão mundial de judicialização. Revista Empório do Direito, Florianópolis, 14/11/2015. Disponível em http://emporiododireito.com.br/campeao-mundial-de-judicializacao-por-clenio-jair-schulze-e-ivan-bonifacio/ Acesso em: 10 jan. 2016.

[5] SCHULZE, Clenio Jair. A meritocracia e os cargos em comissão. In Curso Modular de Direito Administrativo. Paulo Afonso Brum Vaz; Ricardo Teixeira do Valle Pereira; Romeu Felipe Bacellar Filho (org.), Florianópolis: Conceito Editorial, 2009, p. 431/444.

[6] FREITAS, Juarez. Carreiras de Estado e o direito fundamental à boa administração pública. In Interesse Público, n. 53, p. 13/14.

[7] SCHULZE, Clenio Jair. O que é mais importante: pesquisa ou marketing em saúde? Revista Empório do Direito, Florianópolis, 04/01/2016. Disponível em http://emporiododireito.com.br/o-que-e-mais-importante/ Acesso em: 10 jan. 2016.


 

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