Direito Administrativo em Tempos de Constitucionalismo: administrar é loucura? – Por Leonel Pires Ohlweiler

28/01/2016

Projeto de Debate com os Leitores:

Hoje é um dia importante para mim! Gostaria de agradecer o convite do Alexandre Morais da Rosa, brilhante magistrado e professor, para escrever semanalmente neste site. Sem qualquer dúvida, de pronto aceitei o imenso desafio. Sim, prazerosa tarefa, mas de grande responsabilidade, não apenas pela qualidade dos textos aqui publicados e dos colunistas que integram o www.emporiododireito.com.br, mas por despertar o contínuo diálogo com os leitores. Creio que escrever é muito mais do que enumerar fatos, situações, questões pitorescas do dia a dia. De algum modo, trata-se da atividade de mostrar-se e desvelar sentidos encobertos pelo senso comum, ao menos a escrita autêntica. Escrever é a constante tarefa de abrir caminhos. Pretendo, ao longo dos textos, debater questões relacionadas com o Direito Administrativo, Hermenêutica Jurídica, Direito Constitucional e temas do cotidiano envolvendo nossa tão falada República brasileira. Assunto é o que não falta!

Mas, afinal, o que é isto o Direito Administrativo?           

A pergunta, a princípio, parece óbvia ou acadêmica demais para iniciar o diálogo com todos vocês. No entanto, diversos problemas de nossa Administração Pública decorrem da falta de reflexão sobre isso e o ilegítimo distanciamento do point (expressão utilizada por Ronald Dworkin[1]) do Direito Administrativo. Se cada agente público, no cotidiano de sua prática, refletisse um pouco mais sobre o tema, certamente teríamos gestões mais democráticas e republicanas. Ainda hoje muitos juristas acreditam na possibilidade de os conceitos jurídicos transmitirem a essência das coisas. Trata-se da relação que estabelecem com a linguagem, como debatido há muito e exaustivamente por Lenio Luiz Streck[2], prisioneiros da metafísica do sentido, olvidando que a linguagem é imprescindível para a compreensão. A questão do que se entende por Direito Administrativo exige tal reflexão hermenêutica, com o pressuposto colocado pelo autor acima referido segundo o qual “a linguagem não pode constituir-se como uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto, veiculando a essência do mundo, como se houvesse um mundo-em-si, independente da linguagem.” Trata-se de afirmação crucial para vislumbrar de modo crítico a concepção de Administração Pública vigente em nosso país. Primeiro, de acordo com aquilo que se diz sobre a res pública surgirão as possibilidade de interpretação dos poderes conferidos aos administradores públicos, dos processos de licitações e celebração de contratos administrativos. Segundo, a comunidade política é responsável pelo que se estrutura como Administração Pública, até porque como mencionado não há essências flutuando no ar! Portanto, os diversos problemas de gestão pública, e que paulatinamente serão abordados nesta coluna, relacionam-se (a)com o alto grau de patrimonialismo do exercício das competências administrativas; (b)a construção de zonas de imunidades de poder, como referia Eduardo Garcia de Enterría[3], (c)dificuldades para materializar a efetividade e a eficiência no serviço público e (d)tudo alimentado pelo alto índice de práticas não republicanas.

O Direito Administrativo, assim, também pode ser indicado como o campo de conhecimento que estuda as condições de possibilidade da decisão administrativa, na linha do que propõe Lenio Luiz Streck quando sustenta a sua Teoria da Decisão Jurídica[4], entendida na órbita do Direito Administrativo como o agir da Administração Pública, seja por meio de seus órgãos específicos ou de pessoas jurídicas criadas para determinadas finalidades e em coordenação com particulares, com o propósito de realizar os objetivos constitucionais dos artigos 1º e 3º da Constituição Federal, sempre com a preocupação de evitar decisões arbitrárias e práticas corruptivas. Sonho? Com certeza, mas é mais, é defender a concepção de Administração por virtudes constitucionais. Qualquer decisão administrativa, seja em Cacimbinhas ou na Petrobrás, deve ser tomada a partir do horizonte de sentido do Estado Democrático de Direito – e creio que temos indicações suficientes no texto constitucional para construirmos uma concepção de democracia – fundando-se no conjunto de direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e a promoção do bem estar da comunidade, por exemplo, a partir da integridade do artigo 37, “caput”, da Constituição Federal. No entanto, parece que a história institucional da Administração Pública brasileira foi olvidada. É sempre útil a referência de Prosper Weil: “o direito administrativo não pode, pois, ser desligado da história, e especialmente da história política; é nela que encontra o seu fundamento, é a ela que deve a sua filosofia e os seus traços mais íntimos. Não se trata de relembrar o passado, mas sim de conhecer o próprio solo do qual o direito administrativo extraiu a seiva que ainda hoje o alimenta.[5]

A Administração Pública como Casa de Orates?

Conforme publicado no jornal Folha de São Paulo deste sábado, dia 23 de janeiro de 2016, a Presidente da República afirmou que não acha correta algumas coisas na Operação Lava Jato, como os vazamentos de trechos das delações premiadas e que “há pontos fora da curva” na investigação “que têm de ser colocados dentro da curva.” Não há dúvida sobre a necessidade de quaisquer dos poderes da República exercerem suas atividades no e a partir do texto da Constituição Federal, mas nos últimos tempos cada vez mais integridade e coerência (Ronald Dworkin) passam longe do modo de ser de alguns gestores públicos. É inacreditável que com todas as investigações realizadas nos mais diversos setores públicos, ainda surgem notícias de práticas não republicanas em licitações, distribuição de merendas escolares, pagamentos de diárias, funcionários fantasmas e fraudes recentes em concursos públicos, só para elencar alguns exemplos e, certamente, cada caso merece a devida análise e investigação dentro dos parâmetros constitucionais do devido processo legal.

De qualquer modo, nunca foi tão atual frases como “o que ocorre no Estado é uma loucura.”, indicando que de fato são incontáveis os pontos “fora da curva”.

A fim de não ser taxado de radical ou laborar com enunciados imprecisos, creio oportuno situar o referido no famoso e sempre debatido[6] conto/novela de Machado de Assis O Alienista, pois permite algumas reflexões sobre o que é/ou deveria ser o Direito Administrativo e o modo de construir decisões administrativas “dentro dos pontos da estrada”. Andar em estradas com muitas curvas é sempre perigoso... A história, como todos recordam, gira em torno de Simão Bacamarte, figura proeminente da cidade de Itaguaí, dedicado ao estudo científico da medicina, cujo trabalho voltou-se não apenas para a construção de teses sobre sanidade e loucura, mas a realização de experiências para comprová-las. Após conseguir a autorização, iniciou o projeto de construção da Casa Verde, a Casa de Orátes, local de sua prática da medicina. Mas como conhecimento e poder possuem íntimas relações, logo a pequena Itaguaí sentiu os horrores das decisões do Alienista sobre quem era louco ou não e deveria ser internado. Ele agiu como todo poderoso e, sob o manto da racionalidade, decidiu quem ficaria fora ou dentro! Após abusos científicos, revoltas populares, cujos detalhes não serão aqui expostos, e a circunstância de quase toda a cidade estar internada, o raciocínio pareceu natural: os que estão fora é que são os verdadeiros loucos de Itaguaí e dentro da Casa de Orátes só havia pessoas normais! Como alguns gestores públicos possuem esse dom, a grande capacidade de fazer com que os cidadãos pareçam pacientes da Casa Verde.

Diversos aspectos do conto/novelo poderiam ser explorados, mas destaco somente alguns para constatar que realmente, em determinados cenários, como da nossa atual Administração Pública brasileira, é bastante complicado saber afinal de contas quais pontos estão fora da curva e quais estão dentro.

Inicialmente, muito embora o que defendi antes sobre a relevância de o Direito Administrativo configurar-se hermeneuticamente por meio de virtudes constitucionais, é certo que não podemos cair no mesmo erro do Alienista e ver a Ciência como remédio universal. Especialmente quando se assume a postura epistemológica de Simão Bacamarte de fazer classificações e divisões metafísicas. Vejam a seguinte referência: “Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; dai passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas.[7]

O episódio da internação de Martin Brito é revelador para o tema que estou discutindo. Após fazer um belo discurso de rasgados elogios para a esposa de Simão Bacamarte, um rapaz de vinte cinco anos, “curtido de namoros e aventuras”, três dias depois foi internado na Casa Verde, sob o discurso da cientificidade. Ora, todos nós já cansamos um pouco do modo como a linguagem dos assuntos da Administração Pública é tratada cotidianamente. Sob o manto do interesse público, da eficiência, e tantas outras pautas, esconde-se a terrível postura de desconsiderar o point do Direito Administrativo. Mas a oficialidade da decisão é uma: “O processo de licitação transcorreu dentro das normas legais”. Fato: é assustador o número crescente de fraudes e práticas corruptivas constatadas nas contratações administrativas. O discurso da cientificidade/racionaliade muitas vezes tem esse problema, completamente divorciado do mundo da vida.

No capítulo sobre A Rebelião a tinta de Machado de Assis sobre as questões do poder é genial. A cidade estava tomada pelo terror, sendo que algumas pessoas capitaneadas pelo Barbeiro dirigiram-se à Câmara de Vereadores; estavam indignados e fizeram uma representação, mas que foi sumariamente rejeitada sob o argumento de que a Casa Verde era uma instituição Pública e “a ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimento de rua”.

É, ao que parece, os ingredientes de Itaguaí perambulam pelas nossas administrações e, mesmo diante de evidentes indícios de caos, é como se “movimento de rua” pouco importasse. Mas, o convite ao debate não para por ai. Todos sabem o que ocorreu após: a rebelião, e o Barbeiro representa a figura de alguns agentes políticos, especialmente por ocasião das “revolucionárias” administrações que se sucedem no poder. Claro que o nosso ambiente democrático é outro, mas o propósito revelado... Vejam só o referido pelo autor: “Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrotando a influencia do alienista, chegaria a apoderar-se da câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se o senhor de Itaguaí.”[8]

Após a rebelião o Barbeiro assumiu o poder, como “Protetor da Cidade” e o diálogo que manteve com o Alienista igualmente aponta característica interessante: a incoerência administrativa. Recordo da indignação dos cidadãos de Itaguai e do Barbeiro quando se dirigiram naquela época antes da rebelião e fizeram uma representação contra a Casa Verde. Mas agora, dono do poder, o discurso era outro: “o governo reconhece que a questão é puramente científica e não cogita em resolver com posturas as questões científicas.”

O texto de Machado de Assis proporciona diversas questões para examinar de modo crítico nossa atual Administração Pública, bem como abre caminhos, com retas e com curvas, para a prevenção contra discursos de cientificidade/racionalidade administrativa, mas que não passam de novas teorias itaguaienses. O problema é quando aqueles que deveriam preservar o patrimônio público, na prática assumem posturas contrárias às virtudes constitucionais, circulam com discursos de último bastião da racionalidade e negam as evidencias dos graves problemas que assolam as administrações, sejam de ordem social, política ou econômica. Em certos momentos deveriam fazer como algumas montadoras de veículos, publicar longas chamadas com recall! Ops, erramos, vamos tentar melhorar nosso desempenho, humm, não sabia o estado das contas públicas, desculpas!

Não assumir responsabilidades ou um modo de ser mais humilde no trato da coisa pública é bem capaz de levar muitos ao triste final do Alienista: “Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjecturar que nunca houve outro louco além dele em Itaguaí.[9]

O conto/novela de Machado de Assis ora examinado, assim como tantos outros brilhantes escritos, possibilitam várias dimensões para compreender as formas de exercício de poder, o que se deve esperar de uma boa administração pública, os autênticos papéis desempenhados por agentes públicos, no caso do Brasil, dentro do contexto histórico representado pela Constituição Federal, e debater concepções de democracia. Desconsiderar isso pode levar ao mesmo destino do Barbeiro: recolhido à Casa Verde e exclamando de forma impiedosa: Preso por ter cão, preso por não ter cão!


Notas e Referências: 

[1] A Justiça de Toga, São Paulo: Martins Fontes, 2010 e Justiça para Ouriços, Coimbra: Almedina, 2011.

[2] Hermeneutica Jurídica e(em)Crise: uma exploração hermenêutica do Direito. 11ªed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

[3] La Lucha contra las Inmunidades del Poder. Madrid: Civitas, 1995.

[4] Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3ª.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

[5] O Direito Administrativo. Coimbra: Livraria Almedina, 1977.

[6] O texto de Machado de Assis encontra-se no volume intitulado Papeis Avulsos, Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W.M Jackson Inc., 1937. Não pretendo aqui resgatar todo o forte movimento no Brasil “Direito e Literatura”, mas exemplifico apenas alguns trabalhos que proporcionam excelente panorama: OST, François. Contar a Lei. As Fontes do Imaginário Jurídico. São Leopoldo: Unisinos, 2004; Direito e Literatura. Reflexões Teóricas, André Karam Trindade, Roberta Magalhães Gubert e Alfredo Copetti Neto (Organizadores), Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008; Direito e Literatura. Ensaios Críticos, André Karam Trindade, Roberta Magalhães Gubert e Alfredo Copetti Neto (Organizadores), Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008; SHWARTZ, Germano. A Constituição, A Literatura e o Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006; STRECK, Lenio Luiz. Compreender Direito. Desvelando as Obviedades do Discurso Jurídico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013; CASTRO NEVES, José Roberto. Medida por Medida. O Direito em Shakespeare. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2013; YOSHINO, Kenji. Mil Vezes mais Justo. O que as Peças de Shakespeare nos Ensinam sobre a Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2014; GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito, Literatura e Cinema. Inventário de Possibilidades. São Paulo: Quartier Latin, 2011; Direito e Literatura. Da Realidade da Ficção à Ficção da Realidade, Lenio Luiz Streck e André Karam Trindade(Organizadores). São Paulo: Editora Atlas, 2013 e artigo que escrevi intitulado Aproximações Hermenêuticas entre Direito e Literatura: a narratividade dos princípios constitucionais da Administração Pública, In: Direito e Literatura: o encontro entre Themis e Apolo. André Trindade e Germano Schwartz (Organizadores). Curitiba: Juruá, 2008.

[7] Cf. ASSIS, Machado de. Papeis Avulsos, p. 20.

[8] Papeis Avulsos, p. 58.

[9] Papeis Avulsos, p. 98.

DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

DWORKIN, Ronald. Justiça para Ouriços. Coimbra: Almedina, 2011.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e (em) Crise: uma exploração hermenêutica do Direito. 11ªed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Lucha contra las Inmunidades del Poder. Madrid: Civitas, 1992.

WEIL, Prosper. O Direito Administrativo. Coimbra: Livraria Almedina, 1977.

ASSIS, Machado de. O Alienista. In: Papéis Avulsos. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson Inc., 1937.


 

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