Direito Administrativo em Tempos de Cólera: constitucionalização e crise hermenêutica – Por Leonel Pires Ohlweiler

10/03/2016

As leituras de matérias jornalísticas nos últimos meses indicam que de fato vivemos momentos conturbados da vida nacional e o Direito Administrativo passa por tempos difíceis. Aliás, trata-se do título do grande livro de Charles Dickens, Tempo Difíceis, no qual o autor retrata a deterioração, ainda que por motivos diversos, da sociedade da época. A profunda crise econômica do Brasil, a epidemia de zika vírus, os desdobramentos da operação lava-jato, o Brasil aproxima-se do clima de conflito, mobilizações sociais organizadas, reações dos mercados financeiros, etc., essas são algumas das notícias circulando atualmente e capazes de gerar acirrados debates.

Na linha de Dickens realmente vivemos tempos difíceis, pois como já referi em outras oportunidades e não canso de destacar: o sentido de republica parece cada vez mais diluir-se no turbilhão de fatos, mas não podemos olvidar que o Brasil é uma Republica Federativa e constitui-se em Estado Democrático de Direito, nos termos do artigo 1º da Constituição Federal.

Qual o sentido perdido hoje de Administração republicana[1]?

a) a negação de qualquer espécie de dominação;

b) a defesa e difusão de virtudes constitucionalmente institucionalizadas;

c) erigir a democracia participativa;

d) incentivo à autonomização dos cidadãos;

e) implementação de políticas que atenuem a desigualdade social.

Claro que são propósitos ideais, mas em momentos de crise é que conseguimos dimensionar as reais condições de resistência do processo civilizatório e democrático do Estado de Direito. São inadmissíveis interferências de outras instâncias, como mercado, opinião pública e interesses políticos nas indicações do Brasil fundado na República.

A liberdade de cidadãos, por exemplo, ainda é direito fundamental e caracteriza-se como virtude constitucional construída intersubjetivamente pela comunidade política, como aduz Ronald Dworkin em Justiça para Ouriços.  Abrir mão, ainda que para sustentar processos midiáticos configura-se risco para o Estado Democrático de Direito. Salvaguardar espaços de decisões imunes ao controle idem.

Ora, basta olhar para o senso comum atual e entendemos as razões pelas quais o Direito Administrativo brasileiro encontra-se mergulhado na crise de paradigmas. Há o discurso de fácil circulação utilizado por agentes públicos despreocupados com a república de que uma portaria do Ministério X, Y ou Z vale mais que a Constituição! Não há vergonha (constitucional) nenhuma ao trocar agentes políticos de cargos para “acomodar” interesses partidários, quando o artigo 37, “caput”, da Constituição Federal determina a aplicação para a Administração Direta o princípio da eficiência. Aumenta o número de agentes políticos, com altas funções de direção, figurando como réus em ações penais por crimes relacionados com a corrupção e lavagem de dinheiro.

Mas também infelizmente, embebidos por tal cenário, cidadãos admitem solapar direitos e garantidas fundamentais em nome da boa governabilidade do país!

Há, portanto, aquilo que Lenio Luiz Streck há muito denunciava como espécie de razão cínica brasileira[2], pois se convive com práticas não republicanas e pouco se faz para institucionalizar em nosso cotidiano a cultura constitucional. É também por tal motivo que se fala na crise hermenêutica do Direito Administrativo, considerando a hermenêutica jurídica como o constante interrogar sobre a experiência fática da vida, adotando como pano de fundo as indicações normativas do Estado Democrático de Direito.

É preciso relembrar fatos.

Aliás, Charles Dickens, no parágrafo de abertura do livro Tempos Difíceis refere: “Ora, eis o que quero: Fatos. Ensinem a estes meninos e meninas os Fatos, nada além dos Fatos. Na vida, precisamos somente dos fatos. Não plantem mais nada, erradiquem todo o resto. A mente dos animais racionais só pode ser formada com base nos Fatos: nada mais lhes poderá ser de qualquer utilidade. Esse é o princípio a partir do qual educo meus próprios filhos, e esse é o princípio a partir do qual educo estas crianças. Atenha-se aos fatos, senhor![3]

Não há dúvida, Direito Administrativo é mais que fatos, mas a radicalização fenomenológica do palestrante mencionado por Dickens é relevante para não esquecermos alguns fatos. A Constituição de 1988 representou o acontecer da democracia, com o propósito de ultrapassar o estado de coisas do golpe militar de 1964 que originou a ditadura no Brasil. Tal período foi nefasto para a democracia com torturas, assassinatos, desaparecimentos, destruição de famílias, tudo em nome de ideologias construídas nas casernas.

A título de exemplo, a sociedade da época foi despoticamente governada por atos institucionais do Governo Militar, como o Ato Institucional nº 1, de 09 de abril de 1964, cujo artigo 7º determinou que “ficam suspensas, por seis (6) meses, as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade e o seu §1º referia a possibilidade de, por meio de investigação sumária, os servidores públicos poderiam ser demitidos ou dispensados, bem como aposentados.

No coroamento do golpe e não revolução, como nominado, o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, no artigo 4º, disciplinou que no interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de 10(dez) anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

É interessante a observação do papel da doutrina em tempos de crise.

Apenas a título de amostragem, pesquisando em importante periódico do Direito Administrativo, a Revista de Direito Administrativo (RDA), atravessou o período da ditadura e até hoje possui números circulando com importantes contributos de artigos doutrinários. Mas é relevante, por exemplo, destacar a presença na época de texto intitulado “A Via de Fato em Direito Administrativo”, RDA nº 76, p. 1-9, 1964, concluindo que por via de fato caracterizava-se o agir ilegal da Administração Pública e que viola o direito de propriedade ou de liberdade pública, sendo que mesmo quando ocorre tal situação, o particular não deveria recorrer a outra via de fato. Na RDA nº 79, agora do ano de 1965, há artigo intitulado “O Mérito do Ato Administrativo” e defende que a Administração Pública é dotada de oportunidade e conveniência para a prática do ato, imune de controle pelo Poder Judiciário.  A figura de Carlos Medeiros Silva foi atuante em termos de publicação no período, sendo inclusive diretor da RDA e da Revista Forense, publicando artigos intitulados “Observações sobre o Ato Institucional”, Revista Forense, v. 206, 1964; “O Ato Institucional e a Elaboração Legislativa”, Revista Forense, v. 207, 1964 e “Seis Meses de Aplicação do Ato Institucional”, Revista Forense, V. 208, com a defesa de teses como a hierarquia dos atos institucionais e em caso de conflito com a Constituição prevalecia o Ato Institucional.

Na órbita da atividade jurisdicional observamos alguns julgados do STF refletindo o estado da arte do Direito Administrativo do período da ditadura:

1) Recurso de MS nº 16.565, 28/11/1968, Rel. Min. Cândido Mota Filho, no qual Curador de Menores foi aposentado com base no AI-1, foi denegada a segurança, pois o art. 7º do AI-1 vedava ao Poder Judiciário examinar os motivos da aposentadoria;

2) Recurso Ordinário em MS nº 16.546, j. 27.10.1966, REl. Min. Prado Kelly, no qual examinou a demissão de servidor público, sem direito de defesa, sendo denegada a segurança sob o seguinte fundamento “da conveniência ou oportunidade dos atos e bem assim da apreciação dos fatos que o motivaram não conhece o Judiciário (art. 7º, §4º do mesmo ato), cujo controle se limita ao exame de formalidades extrínsecas.” E mais: “no caso em apreço foram observados os requisitos formais para validade dos atos decorrentes do exercício transitório do poder revolucionário.”;

3) MS nº 14.849, j. 17.05.1967, Rel. Min. Adalício Nogueira, no qual Procurador da Caixa Econômica Federal de São Paulo questionava sua demissão, a fundamentação para denegar foi a seguinte: “Não conheço do mandado de segurança, por força do disposto no art. 7º, §§ 1º e 4º do Ato Institucional nº 1, de 1964, ratificado pelo art. 19, inc. I do Ato Institucional nº 2, de 1965 e, já agora, sancionado pelo art. 173, inc. I da Constituição Federal de 1967.”

4) Recurso de Mandado de Segurança nº 16.280, j. 27.04.1967, Rel. Min. Hermes Lima, no qual servidor público questionava sua aposentadoria com base no Ato Institucional nº 1, sendo negado provimento pelo STF, com a seguinte fundamentação única e exclusivamente: “Nego provimento ao recurso. As formalidades extrínsecas foram respeitadas. O Governador do Estado podia demitir ou aposentar. A Comissão de Investigação criada pelo Decreto  “E” nº 384, de 22.04.64 concluiu pela aposentadoria do recorrente, conforme esclarece o documento de fls.”

Tudo o que foi indicado acima é capaz de revelar os perigos para o processo civilizatório e democrático quando abrimos mãos de direitos e garantias fundamentais.

Os motivos não importam.

Aliás, é exatamente tal papel reservado para o texto constitucional: assumir posição contramajoritária, seja em nome de ideologias construídas nas casernas ou em outras instâncias mais atuais como o senso comum da opinião pública, espetacularizações midiáticas, etc.

A Constituição vive tempos difíceis, mas não podemos esquecer os tempos de cólera do Direito Administrativo, impondo cada vez mais compreendermos com serenidade, para utilizar o título de pequeno texto de Martin Heidegger, Serenidade (Gelassenheit), no qual o filósofo indaga os motivos pelos quais os homens estão pobres em pensamentos: “Todos nós, mesmo aqueles que pensam por dever profissional, somos muitas vezes pobres-em-pensamentos; ficamos sem-pensamentos com demasiada facilidade. A ausência-de-pensamentos é um hóspede sinistro que, no mundo actual, entra e sai em toda a parte.”[4] Dai a importância da serenidade para com as coisas, aquele estado no qual para a compreensão deixamos algo repousar e não tomamos como sentido absoluto o que é passado pela técnica, ou seja, no âmbito destas considerações breves, a espetacularização do mundo da vida, por vezes, determina a ausência de serenidade para com as coisas, obnubilando o processo de compreensão. É como se estivéssemos anestesiados, sem pensamentos...

A serenidade, como refere Heidegger, permite a abertura, criando as condições de possibilidade para a reflexão, ainda que não seja o caminho mais fácil, mas pelo relatado nos tempos de cólera, no mínimo, exige-se o questionamento de posicionamentos unilaterais, seja em qual sentido for: “Porque o caminho para o que está próximo é para nós, homens, sempre o mais longo e, por isso, o mais difícil. Este caminho é um caminho de reflexão. O pensamento que medita exige de nós que não fiquemos unilateralmente presos a uma representação, que não continuemos a correr em sentido único na direção de uma representação. O pensamento que medita exige que nos ocupemos daquilo que, à primeira vista, parece inconciliável.”[5]

São apenas algumas palavras para refletirmos!


Notas e Referências:

[1] Cf. AGRA, Walber de Moura. Republicanismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

[2] Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11ªed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

[3] Tempos Difíceis. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 13.

[4] Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 11.

[5] Cf. HEIDEGGER, Martin. Serenidade, p. 23.

AGRA, Walber de Moura. Republicanismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11ªed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

DICKENS, Charles. Tempos Difíceis. São Paulo: Boitempo, 2014.

HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.

DWORKIN, Ronald. Justiça para Ouriços. Coimbra: Almedina, 2011.


 

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