Uma palavra fora de moda: caráter. É o “conjunto de qualidades (boas ou más) de um indivíduo, e que lhe determinam a conduta e a concepção moral”. Foi substituída por ética: “conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade” (Houaiss).
Caberia a troca se as mesmas “regras e preceitos” fossem usados em situações análogas. Não é o que ocorre. Muitos bradam por ética, mas adulteram seu significado até que se torne útil para justificar atos de sua conveniência, dispensando-a para avaliar atos semelhantes cometidos por adversários.
O abandono de preceito exigível a caráter pretensamente justo tem ocorrido à direita e à esquerda. Fatos que mereceriam igual repúdio são prelevados e até defendidos em face de interesses, não de justiça, por todas as cores.
Atitudes inescrupulosas que torceram a compreensão dos acontecimentos e geraram indignação seletiva puderam ser vistas durante a recente campanha eleitoral e seguem em prática nestes tempos que lhe são seguintes.
Tomemos os “vazamentos de dados processuais”. A esquerda escandalizou quando veio a público ato ad hoc de Dilma que fazia Lula ministro “em eventual necessidade”. Deve ser sublinhado que o escândalo não foi com a nomeação “em caso de eventual necessidade”, mas com a publicidade do ato.
Bem, depois, a esquerda festejou o vazamento de uma conversa de Temer com um empresário. O vazamento consubstanciou-se na tela da Rede Globo, canal “suspeito”, “a serviço da direita”, logo, sem credibilidade. Com nenhuma hesitação de consciência, contudo, a esquerda festejou o vazamento e a emissora.
Igualmente, a Folha de São Paulo, quando noticiava a roubalheira do PT era indigitada como “complô da mídia com o Judiciário” para derrubar Lula. Aceita-se sua exatidão, todavia, se o jornal noticia as mensagens de WhatsApp “do Bolsonaro”.
Sobre vis insultos, difícil saber quem principiou. Sei bem que Bolsonaro queria “metralhar vermelhos”. Ninguém da esquerda quer esquecer isso. Entretanto quer-se olvidar Lula vociferando sobre “extirpar o DEM da política brasileira”.
Preocupa-me o conservadorismo de convidado\as para o ministério de Bolsonaro. Mas incomodei-me igualmente quando Dilma entregou a Comissão de Direitos Humanos da Câmara para um pastor. Na ocasião, a esquerda quedou silente.
O Diário Catarinense traz “Os boatos desmentidos na semana da eleição”. A matéria mostra ser falso que a PF apreendeu van com urnas alteradas, preenchidas com votos, a maioria para Fernando Haddad, como é falso que o programa do PT propõe a criação da “Poupança Fraterna” e da “Moradia Social”.
O texto evidencia igualmente, com o escrutínio de Roelton Maciel e as 24 redações integrantes do projeto comprova, que é embuste a notícia de inscrição preconceituosa sobre nordestinos em camisa de filho de Jair Bolsonaro bem como a que o general Mourão propôs o confisco da poupança.
À direita e à esquerda, balelas sem qualquer lastro, mas sistematicamente divulgadas. “Rumores sobre a confiabilidade das urnas e do sistema eleitoral, deturpações das propostas dos candidatos e falsas acusações são alguns dos temas recorrentes encontrados [...] e desmentidos após investigações [...]” (DC12out18).
Não obstante contraditadas, essas e outras “matérias denunciadoras” permaneceram rodando. À direita, votos que se anulavam quando dirigidos a Bolsonaro. À esquerda, a negativa de que o candidato Bolsonaro sofrera um atentado.
A produção de fake news, convenhamos, foi “democrática. E segue bem distribuída. Vencedores e derrotados mantêm-se em jeitos insultuosos, salgando mentirosamente eventual noticiário que tende a lhes ser conveniente.
Que pode sair disso? Da direita: “É o momento de a igreja governar” (Damares Alves, confirmada no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos). Isso é o retorno da religião ao poder, com tudo o que a religião pode significar.
E da esquerda? Têm saído tolices de animar mídia. Eu sugiro considerar a realidade material dos fatos, reconhecer erros, desculpar-se por desmandos, investir na verdade. Verdade sobre si e não menos verdade sobre o adversário.
Bolsonaro venceu as eleições apesar dele mesmo (malgré lui-même). A direita venceu as eleições por causa da esquerda. Nossa esquerda roubou, mentiu, manipulou dados, desgovernou. A esquerda nos conduziu à direita.
Parafraseio Isaías: “há-se de ter olhos de querer ver”. A esquerda foi condescendente com a esquerda velhaca. Todos sabiam das mentiras, mas “os olhos que só enxergam a mentira quando percebem a verdade, cegam (Karl Marx).
Muitos estavam cegados, e só enxergaram a verdade quando a verdade de um país quebrado pelo PT nos caiu pesada no colo. Não obstante, a esquerda das falcatruas fala em “golpe” ou em Temer, seu comparsa de negócios escusos.
Há de se ter caráter para assumir a autoria da derrota, dos erros que deram a vitória ao adversário. Navegando ao modo de agradar ao séquito próximo, entretendo uma plateia fácil, a esquerda desvencilha-se da obrigação de autocrítica.
Sobre a direita, não digo mais do que já se sabe: agora ela é direita com religião. Sobre esquerda, eu a acuso de ter feito e de estar fazendo o que diz que a direita faz. E de faltar-lhe caráter. Sem caráter, não dá. Estamos mal.
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