Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 06/02/2016
Como é sabido os termos “direita” e “esquerda” remontam à Revolução Francesa de 1789. Com a Assembleia Nacional Constituinte formada para criar a nova Constituição, durante o processo revolucionário iniciado em 1789, na França, os Girondinos, considerados mais moderados e conciliadores, ocuparam o lado direito da Assembleia, enquanto os Jacobinos, mais radicais e exaltados, ocupavam o lado esquerdo. Grosso modo, essa é a origem da nomenclatura política que categoriza os posicionamentos políticos no interior dos sistemas políticos contemporâneos.
Assim, o lado esquerdo acabou sendo associado à luta pelos direitos dos trabalhadores, e o direito ao conservadorismo e à elite.
Em relação à economia, numa visão inculta e tosca, pode-se afirmar que a “esquerda” prega uma economia com maior intervenção estatal, mais solidária e que busca uma maior distribuição de renda. A “direita”, nesta ótica primária e rudimentar, está associada ao liberalismo, doutrina que na economia pode indicar os que procuram manter a livre iniciativa de mercado e os direitos à propriedade particular. Algumas interpretações defendem a total ausência de intervenção do governo na economia, a redução de impostos sobre empresas, a extinção da regulamentação governamental, entre outros.
No que diz respeito às questões “morais”, numa visão simplória, “direita” e “esquerda” também se distinguem. Comumente, os temas relacionados aos direitos civis, conceito mais amplo de família, casamento gay, legalização do aborto e descriminalização das drogas, entre outros, são associados à “esquerda”. Já para a “direita”, geralmente, os referidos temas são considerados tabus, assumindo a defesa da família tradicional e de dogmas religiosos.
Hodiernamente, é comum a utilização do termo progressista para designar alguém da “esquerda” e conservador para designação da pessoa de “direita”.
Apesar de muitos intelectuais defenderem que o conceito e distinção entre “direita” e de “esquerda” esteja ultrapassado, na esteira de NORBERTO BOBBIO entende-se que há sim uma diferença conceitual entre ambos e que, além disso, são válidos e atuais os critérios que distinguem uma da outra.
“Direita” e “esquerda”, segundo BOBBIO, “são termos antitéticos que há mais de dois séculos têm sido habitualmente empregados para designar o contraste entre as ideologias e entre os movimentos em que se divide o universo, eminentemente conflitual, do pensamento e das ações políticas”.[1]
“Esquerda e direita indicam programas contrapostos com relação a diversos problemas cuja solução pertence habitualmente à ação política, contrastes não só de ideias, mas também de interesses e de valorações a respeito da direção a ser seguida pela sociedade, contrastes que existem em toda a sociedade e que não vejo como possam simplesmente desaparecer. Pode-se naturalmente replicar que os contrastes existem, mas não são mais do tempo em que nasceu a distinção", escreve BOBBIO no livro "Direita e Esquerda - Razões e Significados de uma Distinção Política".[2]
No campo do direito penal e do direito processual penal – em que “direita” e “esquerda” se confundem em nome do poder punitivo – constata-se uma redução das garantias processuais penais e uma expansão do direito penal que vai desde o aumento da criminalização, passando pela elevação das penas e culminando com o encarceramento em massa (e da massa).
O apelo da mídia e da sociedade por mais segurança e pelo ilusório combate à criminalidade, acaba por influenciar e determinar uma política-criminal antigarantista e punitivista que contamina a “esquerda” e reforça os ideais da “direita”.
O populismo penal – como o slogan da política de tolerância zero, por exemplo - une os discursos dos conservadores de “direita” e das “esquerdas” em vários países, inclusive no Brasil, no que diz respeito ao ilusório combate ao crime. Assim, como já asseverou LUIGI FERRAJOLI, “o populismo penal se conjuga com o populismo político. Perseguindo e alimentando a insegurança e o medo (...)”.[3]
Ao se referir à “irracionalidade penalista”, FERRAJOLI propõe que a política penal de esquerda deveria acima de tudo por fim à desigualdade: “invertendo a lógica absurda das prescrições, quer dizer, prevendo prescrições longas para crimes de corrupção e prescrições mais breves para os outros crimes; mitigando as penas para os crimes dos pobres e prevendo penas adequadas para a criminalidade econômica” [4], entre outras medidas, visando restaurar um “mínimo de igualdade”, mas também de “racionalidade em matéria penal”. Para FERRAJOLI, a “irracionalidade penalista” e a “desigualdade penal” constituem poderosos fatores criminógenos e causa inevitável aniquilamento do “espírito cívico”, por diversas razões. Entre elas se destaca a percepção de injustiça pelo fato do sistema punir os pobres e deixar imune os ricos, e a macrocriminalidade econômica. Outro forte fator criminógeno é uma política que se ilude e cria a ilusão de que é possível prevenir os crimes praticados pelos pobres através da ameaça de medidas penais.
Contudo, FERRAJOLI reconhece que são as políticas sociais – educação, saúde, assistência sanitária, pleno emprego, estabilidade no trabalho, garantias de direitos sociais etc. – as únicas políticas realmente capazes de atacar as causas estruturais deste tipo de criminalidade.[5]
Entende-se ser este último – políticas sociais - o caminho que deve ser perfilado pela “esquerda” e não a punição dos ricos e poderosos para compensar as distorções do sistema penal. Não se deve e não se pode defender a tortura para os ricos e poderosos porque os pobres e vulneráveis são torturados. Deve-se, sim, pugnar pelo fim desta desgraçada prática que ainda insiste em sobreviver.
Em excepcional artigo, MARIA LÚCIA KARAM refere-se à chamada “esquerda punitiva” que tem o seu début no momento em que passa a exigir que o direito penal e o sistema punitivo comecem a alcançar e atingir também as classes que até então eram imunes à intervenção penal.
Estes setores da esquerda punitiva, segundo MARIA LÚCIA KARAM, inebriados pela reação punitiva, “parecem estranhamente próximos dos arautos neoliberais apregoadores do fim da história, não conseguindo perceber que sendo a pena, em essência, pura e simples manifestação de poder – e, no que nos diz respeito, poder de classe do Estado capitalista – é necessária e prioritariamente dirigida aos excluídos, aos desprovidos deste poder. Parecendo ter se esquecido das contradições e da divisão da sociedade em classes, não conseguem perceber que, sob o capitalismo, a seleção de que são objeto os autores de condutas conflituosas ou socialmente negativas, definidas como crime (para que, sendo presos, processados ou condenados, desempenhem o papel de criminosos), naturalmente, terá que obedecer a regra básica de uma tal formação social – a desigualdade na distribuição de bens. Tratando-se de um atributo negativo, o status de criminoso necessariamente deve recair de forma preferencial sobre os membros das classes subalternizadas, da mesma forma que os bens e atributos positivos são preferencialmente distribuídos entre os membros das classes dominantes, servindo o excepcional sacrifício, representado pela imposição de pena a um ou outro membro das classes dominantes (ou a algum condenado enriquecido e, assim, supostamente poderoso), tão somente para legitimar o sistema penal e melhor ocultar seu papel de instrumento de manutenção e reprodução dos mecanismos de dominação”.[6]
Ninguém, em sã consciência, coloca em dúvida que o direito penal é, além de ser repressor e estigmatizante, extremamente seletivo. Sempre quando se afirma que o Brasil é “o país da impunidade” está, na precisa observação de NILO BATISTA, “generalizando indevidamente a histórica imunidade das classes dominantes”.[7] Não há dúvida de que os pobres, negros, semianalfabetos - os “invisíveis” de um modo geral - é que compõem a clientela do sistema penal.
De fato, os que integram os níveis mais baixos da pirâmide social são os que têm as maiores chances de serem selecionados pelo sistema penal. Como assevera BARATTA, “os mecanismos da criminalização secundária acentuam ainda mais o caráter seletivo do direito penal”.[8] Uma vez mais, acertadamente e coerente com sua criminologia crítica, BARATTA observa que “Quando se dirigem a comportamentos típicos dos indivíduos pertencentes às classes subalternas, e que contradizem às relações de produção e de distribuição capitalistas, eles formam uma rede muito fina, enquanto a rede é frequentemente muito larga quando os tipos legais têm por objeto a criminalidade econômica, e outras formas de criminalidade típicas dos indivíduos pertencentes às classes no poder”. [9]
Contudo, entende-se que não é buscando a criminalização de outros setores da sociedade e diminuindo, em nome da fúria punitiva, direitos e garantias, que a situação daqueles que sempre foram criminalizados pelo sistema penal mudará para melhor. Ao contrário do que possa parecer, quando os chamados “poderosos” que fazem parte da chamada criminalidade do “colarinho branco” ou da “criminalidade dourada” começarem a ser punidos, o sistema, perverso que é, vai abonar ainda mais a punição dos vulneráveis.
É necessário compreender que a pena criminal é manifestação e instrumento de poder que se destina à manutenção e reprodução dos valores e interesses dominantes de uma determinada sociedade. O sistema penal é uma manifestação de poder social.
Na esteira de FOUCAULT[10], as relações de poder não ocorrem necessariamente nem no nível do direito, nem no da violência. Nem são essencialmente contratuais, nem exclusivamente repressivas, embora haja uma concepção negativa, que identifica o poder com o Estado e o considera fundamentalmente como aparelho repressivo, em razão da intervenção sobre os cidadãos que se dá através da violência, coerção e opressão. Para FOUCAULT, o poder tem uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade. Esta positividade explica o fato de que uma das formas de manifestação do poder - poder disciplinar - tem como alvo o corpo humano, não para suplicá-lo, mutilá-lo, mas para adestrá-lo.
Necessário não ocultar os verdadeiros fins da pena que não são revelados pelas teorias oficiais. Após criticar as funções declaradas ou manifestas da pena, o mestre da criminologia radical/crítica JUAREZ CIRINO DOS SANTOS[11] apresenta, com base em PASUKANIS, MARX, RUSCHE/KIRCHHEIMER, MELOSSI/PAVARINI, FOUCAULT e BARATTA, a crítica materialista/dialética da pena criminal. A referida teoria busca revelar os verdadeiros fins e a natureza real da pena criminal nas sociedades contemporâneas. A teoria criminológica materialista/dialética, explica JUAREZ CIRINO, “introduz uma explicação política da emergência histórica do conceito jurídico-econômico de retribuição equivalente, como fenômeno sócio estrutural específico das sociedades capitalistas”. Mais adiante, JUAREZ CIRINO observa que: “no âmbito da responsabilidade penal, a retribuição equivalente é instituída sob a forma da pena privativa de liberdade, como valor de troca do crime medido pelo tempo de liberdade suprimida”. [12]
MARIANA THORSTENSEN POSSAS[13]. em artigo baseado em sua tese de doutorado, em criminologia na Universidade de Ottawa no Canadá (2003-2009), que trata da relação entre o posicionamento político-ideológico e o sistema de direito criminal no processo de produção de leis penais, através de pesquisa e da análise do processo de elaboração da lei contra a tortura no Brasil (1997), constatou que distinções como “conservador” e “progressista”, usadas para qualificar as escolhas em matéria de direito penal, são variáveis quando se trata de avaliar crimes “comuns” e crimes “contra a humanidade”, como a tortura. Em seu trabalho, tendo feito várias entrevistas com políticos, a autora chegou à conclusão de que a distinção entre “direita” e “esquerda” ou “conservador” e “progressista” não é adequada para exprimir um posicionamento sobre as penas.
Em relação aos políticos tidos como “conservadores”, através de uma justificativa mais “prática”, restou demonstrado que eles utilizam sempre a mesma regra: “a busca pela eficácia da ação policial para combater a criminalidade. Essa eficácia pode se apoiar em diversos elementos, como a tortura nas investigações, as penas severas para dissuadir potenciais delinquentes, etc.”. [14]
Já em relação aos chamados “progressistas”, de acordo com THORSTENSEN POSSAS, “para crimes “comuns”, há um discurso menos punitivo sobre as sanções criminais e para os crimes “contra a humanidade”, há um outro, completamente oposto, no qual o propósito de tornar o direito penal mais “humano” é completamente descartado”.[15]
Segundo as conclusões da autora, “os progressistas apresentam um maior apego, do ponto de vista da posição política (como conservadora ou progressista), à motivação do que à solução. Dito de outro modo, se a motivação é considerada progressista, um político de esquerda ou um militante de direitos humanos não parece ver que ele defende uma solução (envolvendo a pena) conservadora e que isso é contraditório com seu perfil político global (progressista). O mesmo vale para o político conservador que defende soluções progressistas”. [16]
Em nome da manutenção da identidade política - conservadora ou progressista - o importante é a motivação, as razões apresentadas na discussão de um determinado problema, e não as soluções buscadas. [17]
Ao final do trabalho, em suas conclusões, MARIANA THORSTENSEN POSSAS assevera, com toda razão, que: “os políticos progressistas, assim como os defensores de direitos humanos, perderem a oportunidade de se interrogar sobre as soluções por eles propostas, sem medo de que a própria formulação da crítica seja interpretada como desprezo ao problema em si. E do ponto de vista puramente cognitivo, no âmbito do pensamento moderno sobre as penas, o grande nó está em reforçar a reprodução daquela mesma racionalidade penal punitiva, que data de mais de dois séculos, fundada em uma ideia de pena aflitiva e excludente”. [18]
Interessante observar que, embora a “esquerda” e os chamados “progressistas” se posicionem, em regra, contrário a algumas medidas punitivistas como: pena de morte; redução da imputabilidade penal; encarceramento de mulheres etc., colocam-se, paradoxalmente, a favor de medidas que aumentam o poder punitivo estatal em relação aos crimes do “colarinho branco”; crimes contra o meio ambiente; crimes contra a mulher (Lei “Maria da Penha” e feminicídio); crimes praticados por policiais etc.
Concluindo, com MARIA LÚCIA KARAM, entende-se que a “esquerda” se equivoca e se iguala à “direita” quando, na linha do pragmatismo político eleitoral, sem princípios e ideais, patrocina a ampliação do poder punitivo estatal. Como assevera KARAM, “Na retomada da utopia e das lutas pela transformação social, não há lugar para uma tal esquerda. A realização dos generosos e solidários ideais igualitários, que a todos assegure o atendimento das necessidades fundamentais para a sobrevivência e as mesmas oportunidades de acesso às riquezas e ao desenvolvimento pessoal, há que se fazer de forma a estabelecer a síntese que incorpore os ideais libertários, asseguradores da livre expressão e realização dos direitos de personalidade de cada indivíduo (...)”[19]
Por tudo, é necessário que a “esquerda” compreenda de uma vez por todas que a pena – seja ela aplicada aos vulneráveis ou aos poderosos – é manifestação e instrumento de poder. A “esquerda” não pode perder de vista seu ideal de proteção dos direitos humanos, compreendido em toda sua amplitude, em nome de um Estado penal. O respeito à dignidade da pessoa humana é incompatível com a pena criminal. É imprescindível acolher a ideia de que somente uma justiça social eficaz e a busca permanente pelos ideais de igualdade e liberdade é que podem transformar o Estado e aniquilar as desigualdades e injustiças.
Belo Horizonte, 3 de fevereiro de 2016.
Notas e Referências:
[1] BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. Trad. Marco Aurélio Nogueira. 3ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
[2] Idem.
[3] FERRAJOLI, Luigi. O garantismo e a esquerda. In: VIANNA, Túliio; MACHADO, Felipe (Coord.) Garantismo penal no Brasil: estudos em homenagem a Luigi Ferrajoli. Belo Horizonte: Fórum, 2013. P. 15-25.
[4] FERRAJOLI, Luigi. O garantismo e a esquerda. Ob. cit.
[5] FERRAJOLI, Luigi. O garantismo e a esquerda. Ob. cit.
[6] KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Instituto Carioca de Criminologia. Ano I, n. 1 (jan/jun. 1996). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.
[7] BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
[8] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1999.
[9] Idem.
[10] FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão de Roberto Machado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
[11] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 6ª ed. ampl. e atual. Curitiba: ICPC Cursos e Edições, 2014.
[12] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Ob. cit.
[13] POSSAS, Mariana Thorstensen. Produção de leis criminais e racionalidade penal moderna: Uma análise da distinção ‘conservador’ x ‘progressista’ no caso da criação da lei contra a tortura no Brasil. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social - Vol. 8 - no 3 - JUL/AGO/SET 2015 - pp. 473-499. Disponível em http://revistadil.dominiotemporario.com/doc/DILEMAS-8-3-Art4.pdf
[14] POSSAS, Mariana Thorstensen. Produção de leis criminais e racionalidade penal moderna: Uma análise da distinção ‘conservador’ x ‘progressista’ no caso da criação da lei contra a tortura no Brasil. Ob. cit.
[15] POSSAS, Mariana Thorstensen. Ob. cit.
[16] POSSAS, Mariana Thorstensen. Ob. cit.
[17] Idem.
[18] Idem.
[19] KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Ob. cit.
. Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). . . .
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