Lendo “Valor, respeito e apego”, de Joseph Raz, tive um insight, um estalo compreensivo da dignidade humana, do entendimento do que significa o homem como conceito.
Uma questão pós-moderna que tem muito me incomodado é uso da expressão dignidade humana para sustentar a agenda LGBT, com os seus efeitos na vida social, decorrente do sexo irresponsável, porque também a dignidade humana é usada para a defesa do aborto, porque a mulher teria direito ao próprio corpo (sua dignidade).
Raz desenvolve o conceito kantiano segundo o qual o homem é um fim em si mesmo, pelo que as pessoas não podem ser tratadas como meios ou instrumentos. Afirma haver dois motivos para o respeito às pessoas, porque exemplificam a lei moral e porque são fins em si mesmas. E segue: “O respeito às pessoas (nesse segundo sentido) é o mesmo que tratar as pessoas (ou melhor, a sua humanidade) como fins em si mesmas” (Joseph Raz. Valor, respeito e apego. Trad. Vadim Nikitin. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 129).
Já é possível fazer aqui uma observação sobre os pressupostos da filosofia kantiana, implícita na citação acima, pois a filosofia de Deus Conosco Kant, que era uma pessoa pia e temente a Deus, tem um propósito específico de reservar espaço no conhecimento racional para a fé, para a existência da realidade religiosa, ligada ao mundo numênico, das coisas em si, eis que para ele o plano numênico e as coisas em si são um fato, ainda que não possam ser objeto de conhecimento humano. Nesse ponto, a humanidade das pessoas, humanidade que deve ser tratada como um fim em si mesmo é um fato integrado à realidade religiosa e numênica, a dignidade humana em Kant é indissociável da Verdade Cristã por ele concebida como tal, pelo que a dignidade humana é dependente de alguma Teologia Cristã.
Por mais que eu discorde da filosofia de Kant, porque entendo que sua Teologia Cristã se baseia na ideia de dois mundos ou duas cidades decorrentes da proposta teológica de Agostinho de Hipona, que penso ser biblicamente equivocada, mesmo que historicamente necessária, não se pode afastar a concepção filosófica kantiana e sua ideia de dignidade humana da Teologia Cristã, da existência de um plano de realidade por nós (até então ainda) não conhecido, e de um Espírito que transcende os corpos e a matéria, o que é frontalmente contrário à filosofia materialista que suporta as propostas LGBT e sustenta haver dignidade no aborto.
Feito esse meu aparte, Raz continua sua abordagem sobre o que é um fim em si mesmo, dizendo ser necessária uma caracterização formal desse conceito mostrando a diferença entre “os fins em si mesmos e os outros fins. Uma tal caracterização vai nos permitir averiguar se as pessoas são fins em si mesmas e se poderia haver outros fins desse tipo”. Sobre essa passagem, consta da nota de rodapé: “Por razões que não vou discutir aqui, estou de acordo com aqueles que não consideram inteiramente satisfatório o desenvolvimento que o próprio Kant deu a essas ideias” (Idem, p. 132).
Penso que a partir daqui é possível desenvolver o raciocínio pelo qual não é satisfatória a proposta de Kant, na medida em que o homem é e não é um fim em si mesmo; porque o que é um fim em si mesmo é a humanidade presente no homem, o que é um fim em si mesmo é o Espírito ou Ideia de Deus presente no homem, na humanidade, e nesse sentido o homem é instrumental à sua Ideia.
O homem é um fim em si mesmo porque as pessoas não podem ser usadas por outras pessoas, todos somos senhores e nenhum de nós é escravo de outrem; e não é um fim porque o estado atual de nossa humanidade não é definitivo, pois somos servos do Altíssimo, somos muçulmanos, na realização do plano de Deus na História, como instrumentos de Vida ou morte, como vasos nobres ou vulgares.
Isso, para mim, é bastante evidente, a concepção de que os homens estão no mundo a serviço de ideias ou espíritos, ou do Espírito, e nesse sentido a humanidade não é um fim em si mesmo, é instrumental para a realização de sua Ideia, de Humanidade. Essas ideias ou espíritos podem ser comparadas com instintos biológicos, complexos psíquicos ou arquétipos que motivam, consciente ou inconscientemente, nossas condutas, dos quais somos instrumentos, somos meios para nos realizarmos como corpos e/ou ideias, individuais e/ou coletivos.
Tomemos um exemplo simples, mas significativo, no caso emblemático que levou ao reconhecimento da possibilidade de aborto nos EUA, Roe v. Wade, em que Norma McCorvey foi usada pelas advogadas para a defesa do aborto, tendo ela posteriormente assumido publicamente a defesa da vida, como ativista do movimento Pro Life, como se pode ver no artigo (https://www.conjur.com.br/2018-abr-23/direito-civil-atual-roe-vs-wade-sistema-litigio-estrategico-eua). A mesma pessoa foi instrumento de ideias opostas.
Nem mesmo no Cristianismo as pessoas podem ser consideradas como fins em si mesmas, porque o próprio Jesus Cristo não se viu como um fim em si mesmo, mas como alguém a serviço de Deus, o único que é um fim em si mesmo. Nas palavras do Messias, O Profeta, ou Cristo Senhor: “Meu Pai, se não é possível que este [cálice] me passe ao lado se eu o não beber, faça-se a tua vontade” (Mt 26, 42). “E dizia: 'Abbá, Pai, tudo te é possível; afasta de mim este cálice. Não o que eu quero, mas sim o que Tu queres'” (Mc 14, 36). “Pai, se quiseres, afasta este cálice de mim; porém não a minha, mas a tua vontade se faça!” (Lc 22, 42).
Ser Cristo significa Ser Servo do Espírito, o que é não ser um fim em si mesmo, o Cristão é um instrumento de Deus. Somente Deus é um fim em si mesmo, e por isso a dignidade humana está na condição divina da humanidade, decorrente da encarnação do Espírito de Deus, da Ideia ou Logos, na Humanidade, em nós, plenamente a partir de Jesus Cristo, o perfeito instrumento da realização de Deus, tendo existido como ideia ou forma de Deus, como Deus Conosco:
“Ele que existindo em forma de Deus não considerou um rapto ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo tomando a forma de um escravo, tendo nascido numa semelhança de seres humanos; e tendo sido descoberto pelo aspecto como ser humano, rebaixou-se, tendo-se tornado obediente até a morte: morte de cruz. Por isso Deus o exaltou sublimemente e concedeu-lhe o nome acima de todo o nome, para que no nome de Jesus todo o joelho se dobre de [seres] celestes, terrestres e subterrâneos; e toda a língua proclame 'Senhor [é] Jesus Cristo', para glória de Deus Pai” (Fl 2, 6-11).
A criação, o universo, a humanidade e tudo o que fazemos é instrumental, para a glória de Deus, o Logos, a Razão Última: “Portanto, quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (1Cor 10, 31). “E tudo isto se realiza em vosso favor, para que a graça, multiplicando-se entre muitos, faça transbordar a ação de graças para a glória de Deus” (2 Cor 4, 15).
A humanidade é um fim enquanto meio para a realização plena da criação, para que Deus, o Espírito, o Logos, a Razão plena se realize no mundo, por meio de nós, em nós, porque o Cristão, como cientista, como ser inteligente, pressupõe que o mundo é regido por uma Razão ou Inteligência. “Ninguém é bom senão só Deus” (Mc 10, 18), por isso O que tem valor em Si, que é um fim em Si mesmo, tendo valor intrínseco, é apenas Deus, e daí a dignidade é instrumental a Deus. Por isso somos bons ou dignos na medida em que nos tornamos Um com Deus, na medida em que manifestemos o Logos em nossas vidas. Como essa possibilidade está aberta a todo ser humano, porque somos templos do Espírito de Deus, que habita em nós, enquanto estamos vivos, disso decorre a dignidade humana, que pode ou não ser por nós exercida.
Portanto, a dignidade humana é instrumental para a realização de uma ideia, que pode ser meramente corporal, parcial, limitada e egoísta, por isso menos ou não digna (indigna); ou corporal e espiritual, completa, ilimitada e solidária, plenamente digna. O homem, outrossim, não é um fim em si mesmo; o que é um fim em si mesmo é uma ideia de humanidade, porque o homem é um momento da evolução do Ser, de Si para Si, e por isso a dignidade se refere ao fim do Ser, que é o Ser em sua plenitude, que é Deus.
“E Ele é que 'concedeu' a uns ser apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros pastores e mestres, para aperfeiçoar os santos em vista do ministério, para a edificação do Corpo de Cristo, até que alcancemos todos nós a unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, o estado de Homem Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4, 11-13).
“Ele é o Princípio, o Primogênito dos mortos, (tendo em tudo a primazia), pois nele aprouve a Deus fazer habitar toda a Plenitude e reconciliar por ele e para ele todos os seres, os da terra e os dos céus, realizando a paz pelo sangue da sua cruz.” (Col 1, 18-19). Porque em Cristo, na Humanidade, “não há mais grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo, livre, mas Cristo é tudo em todos” (Col 3, 11).
“E quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos” (1 Cor 15, 28). É preciso, portanto, que todos sejamos a humanidade, que todos estejamos a serviço do Logos, para que alcemos a plenitude humana, a dignidade, sendo Deus.
Dignidade humana está vinculada ao comportamento humano instrumental para a realização da humanidade, da plenitude humana, devendo esse comportamento ser voluntário, e dessa vontade conforme a lei moral, da ética da humanidade, decorre o mérito ou demérito das ações e das pessoas que as encarnam.
“Numa grande casa não há somente vasos de ouro e de prata; há também de madeira e de barro; alguns para uso nobre, outros para uso vulgar. Aquele, pois, que se purificar destes erros será um vaso nobre, santificado, útil ao seu possuidor, preparado para toda boa obra” (2Tm 2, 20-21).
Finalmente, ainda que não caiba forçar o comportamento das pessoas segundo essa lei moral, e Ética, que se tornou jurídica, compete ao Estado, enquanto Ekklesia, estabelecer sanções punitivas para as condutas contrárias à dignidade humana e sanções premiais para os que se usam para realizar a ideia de dignidade humana, pelo exemplo de Cristo, devendo haver uma distinção social e política desses comportamentos, de modo a prestigiar e valorizar as boas ações, conforme o mérito da conduta das pessoas.
Antes, porém, é mister reconhecer que a dignidade humana é instrumental, e que a humanidade pode ser instrumento de Deus, da dignidade, ou de Mamon, da vilania.
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