Dignidade humana e devido processo legal: bases do sistema processual penal

09/03/2016

Por Belmiro Fernandes - 09/03/2016

Os princípios no processo penal e a solução prática dos problemas.

Promulgado em 03 de outubro de 1941, há mais de 70 anos o Código de Processo Penal sobrevive sem uma grande alteração. Paradoxalmente, os poucos ajustes empreendidos em seu texto muitas vezes acabaram por prejudicar todo o sistema, a exemplo do capítulo sobre execução penal, derrogado pela lei º 7.210/1984 e a própria medida de segurança, regulada pelo Código Penal, em sua reforma de 1984. Trata-se de um código muito retalhado, e, assim, de difícil compreensão aos iniciados, especialmente para os alunos da graduação e os profissionais sem muito contato com a seara penal.

Apesar de extremamente relevantes para outros ramos do direito, para o processo penal os princípios têm uma importância ainda maior, que é proporcionar solução prática de lacunas e de problemas concretos. Neste sentido, observa-se que o artigo 5º da Constituição Federal, há uma grande concessão de princípios para o processual penal, sendo provavelmente o tema com maior número de dispositivos. Logo, os princípios no processo penal efetivamente resolvem problemas, sendo úteis na vida prática.

Acrescente-se ainda que dadas as mudanças democráticas ao longo da vigência do Código, servem também os princípios de processo servem para orientar o sistema judiciário penal, que, estando atualmente bastante eclético, dificulta a compreensão da linha de política criminal adotada para o processamento dos acusados, importando em insegurança jurídica e sentimentos ambíguos de impunidade e injustiça. Neste sentido, servem os princípios para contrabalancear esta constatação, oxigenando a democracia criminal brasileira[1].

Princípios regentes do processo penal e a teoria do direito.

Todos os princípios e regras são normas de direito. Assumem a posição de gênero, sendo os princípios e as regras são espécies. No próprio artigo 5º, que trata dos direitos fundamentais, é possível encontrar tanto princípios e regras.

Note-se, por exemplo, o direito ao silêncio, que assume a posição de regra porque tem uma aplicação prática, concreta e, por outro, na dimensão de peso não se destina à resolução de problemas grandiosos, como o ocorre com os princípios, como é o seu propósito.

É possível perceber que um princípio não é exatamente cumprido ou descumprido, mas compreendido em seu sentido, posto que uma de suas finalidades é fazer aplicar regras corretamente. De acordo com Robert Alexy[2], os princípios são mandados de otimização, são um horizonte a perseguir. Os princípios e regras podem estar dentro ou fora da própria Constituição, havendo muitos de natureza infraconstitucional.

Tomemos por exemplo a ampla defesa, que sendo um princípio, não é percebido em sua completude em abstrato, mas possibilita que se conclua que determinada lei ordinária que lhe restrinja seja considerada inconstitucional[3]. Além disto, as regras são mais simples de serem atendidas para resolver determinada situação específica, como “o preso tem direito de identificação de quem o prendeu”. Trata-se de uma regra porque se houver abuso de autoridade, é possível processar aquele que o prendeu.

A dignidade humana e devido processo penal.

O princípio da dignidade da pessoa humana é regente de todo o ordenamento jurídico, não apenas na esfera penal. Está prevista como fundamento no artigo 1º, inciso III da CF/88[4].

É muito difícil de ser definido, mas sua viga mestra foi definida com o iluminismo e com as regras mais garantistas da vida humana, com muitas influências religiosas, inclusive com o testemento judaico-cristão. O homem é a semelhança de Deus, que devendo ser preservado ao máximo em alguns requisitos mínimos.

Ela possui um lado objetivo e um lado subjetivo. Objetivamente, o Estado deve garantir e assegurar a cada indivíduo o mínimo decente para a sua sobrevivência, sendo muitas vezes distinguindo o ser humano de um animal. A base do mínimo existência está assegurada no salário mínimo, presente no artigo 7º, inciso IV. A coisificação do ser humano já era criticada por Kant[5], pois o homem não poderia ser confundido com uma coisa ou com um animal.

Subjetivamente, é preciso saber que numa visão até mesmo sociológica, não há como se afastar da constatação de que o pobre preso tem condições diversas do rico preso.  Porém, a dignidade humana é garantir a respeitabilidade ao indivíduo, em sua autoestima e na sua autoconfiança.

É garantir a respeitabilidade do ser humano acima de qualquer outra medida, seja para a segurança pública, seja para uma meta financeira, dentre outras situações. Isto interessa ao processo penal, porque se percebe a prioridade estatal na atuação entre ricos e pobres. Por exemplo, o pobre muitas vezes tem a sua dignidade violada, através de sua casa invadida sem mandado; condução coercitiva ao distrito policial sem qualquer ordem judicial, além de ser menosprezado e algemado no meio da rua à vista de todo mundo, sem qualquer constrangimento. Estes fatos não ocorrem com uma classe econômica mais privilegiada, o que demonstra a distorção.

O devido processo legal, por outro lado, não é um princípio apenas de processo, pois é o verdadeiro nascimento do princípio da legalidade. Está prevista na Magna Carta inglesa de 1215, no século XIII, sendo um dos principais documentos de direitos humanos reconhecidos até hoje.

Embora tivesse sido uma revolução de elite, contra os abusos do rei, protegendo a aristocracia, ainda assim terá uma fundamental relevância para a democracia.

É aí também que renasce o júri, que há havia na Grécia antiga e em Roma, que havia sumido e reaparece na magna carta. E os pares são julgados pela “lei da terra” (by the law of the land). A lei da terra são os costumes. Assim, quando o princípio da legalidade fala que ninguém será preso sem expressa previsão legal, então é uma decorrência do princípio da lei da terra. Com as transcrições da Magna Carta mudou-se para a expressão de hoje, que é o Due process of law, devido processo legal.

Assim, está muito longe o devido processo legal de ser um princípio meramente processual. Ele advém do princípio da legalidade, pois ninguém será preso a partir das situações advindas da cabeça do rei. A pessoa será presa apenas se contrariar o costume social, pois o direito penal é da sociedade e não do Estado. Quem faz a lei é o povo, através de seus representantes.

Logo, é possível dizer que, hoje, o devido processo legal é o respeito a todos os princípios penais e processuais penais existentes. Respeitar o processo legal não é apenas saber se a pessoa foi processada e condenada de acordo com as regras formais do processo, mas que o indivíduo foi processado e condenado respeitados todos os princípios penais e processuais penais, como a legalidade, taxatividade, intervenção mínima, fragmentariedade, humanidade, individualização da pena e todos os demais princípios da ciência jurídica.

Deste turno, desrespeitado qualquer princípio penal, estar-se-á desrespeitando o princípio do devido processo legal.

Considerações finais.

O manejo dos princípios gerais do direito possui fundamental importância para o intérprete das garantias penais. Além de oferecer soluções concretas a uma legislação defasada, da mesma forma, servem para orientar o legislador à uma coerência quanto à aplicação da política criminal.

O estudo dos princípios da teoria geral do direito precede aos demais princípios – constitucionais ou infraconstitucionais – relativos ao direito processual penal, pois estruturam todo o sistema.

Desta forma, assumem especial importância a correta compreensão do alcance da dignidade da pessoa humana e do devido processual penal, porque viabilizam a resolução de problemas relacionados às garantias penais, tão relevantes em um estado democrático de direito.


Notas e Referências:

[1] LOPES, Aury Lopes, Jr. Teoria Geral do Processo é danosa para a boa saúde do Processo Penal, Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-jun-27/teoria-geral-processo-danosa-boa-saude-processo-penal. Acesso em 01 de março de 2016.

[2] ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 122.

[3] Os princípios jurídicos podem ter finalidade não apenas de orientação, como de supressão de lacunas.

[4] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre, Livraria Advogado Editora, 2006.

[5] KANT, Immanuel. Fundamentação de metafísica dos costumes.


Belmiro Fernandes. Belmiro Fernandes é advogado, mestre em direito econômico pela Universidade Federal da Bahia, especialista em direito processual pena Faculdade Damásio de Jesus/DeVry, professor de direito processual civil da Universidade Salgado de Oliveira e da Estácio/BA. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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