Dignidade e liberdade: Quem teme a natureza humana? (Parte 2)

26/04/2015

Por Atahualpa Fernandez - 26/04/2015

Qualquer teoria meramente especulativa sobre a dignidade, sem nenhum escrutínio empírico minimamente sério acerca da natureza humana, está ameaçada pelos erros produzidos pelo desconhecimento: a dignidade é uma «propriedade emergente» da natureza humana. 

 Veja a Parte I aqui

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Parte II

Natureza humana, dignidade e normatividade

A ideia de dignidade fundada em uma teoria forte de natureza humana leva-nos a adotar como premissa um modelo de direito sustentado, entre outras coisas, em uma moral de respeito mútuo. Somos nós mesmos os que outorgamos direitos morais a todo homem, por mais que busquemos seus fundamentos em instâncias não humanas, transcendentes ou sobrenaturais.[4] Não existem, pois, direitos que não sejam outorgados para resolver problemas adaptativos relacionados com nossa própria vida (ou sobrevivência) social. No caso do princípio da dignidade, a atribuição da qualidade de ser digno de algo — que implica ter em conta as necessidades, desejos e crenças dos demais — tem por objeto garantir as condições mínimas de uma vida satisfatória e plena (o radical direito aos meios materiais de existência), que é, em verdade, o bem maior que podemos esperar. Nisso reside, de fato, a dimensão intersubjetiva, relacional ou co-existencial da dignidade humana: atuar baixo o suposto implícito de significados outorgados e compartidos em um conjunto de ações coordenadas de condutas recíprocas.

Dito de outro modo, não encontraremos o quid da dignidade introduzindo-nos frivolamente em reinos metafísicos nem tratando de encontrar seus fundamentos em tal ou qual escola de filosofia. A dignidade não é uma nuvem amorfa. E se estamos de acordo em que a dignidade humana é a capacidade de mostrar-nos dignos de respeito, devemos reconhecer que ela afeta a seres humanos, indivíduos de carne e osso, cada um com seu nome e sua firma, com sua estrutura genética singular, sua personalidade e caráter, sua forma particular de caminhar pelo mundo, de sorrir, mirar e sofrer: “uno más uno más uno más uno más uno...”(J. Wark). Reconheçamos: ninguém é «humano» e «digno» em abstrato (Joseph de Maistre).

Em consequência, parece que a melhor maneira para explicar, compreender e aplicar o princípio da dignidade é a partir da ideia do ser humano em sua tríplice configuração: a) em sua existência individual, separada e autônoma (e, como tal, princípio do direito); b) como fim de seu mundo (e, portanto, também do direito); e c) como sujeito de vínculos sociais elementares através dos quais constrói, a partir das reações dos demais, os estilos aprovados de uma vida sócio-comunitária digna de ser vivida em sua plenitude (ou seja, como titular de direitos e deveres que projetam na coletividade a sua existência como cidadão).

O objetivo essencial em uma operação assim, recorda N. Chomsky, deve ser sempre o de intentar criar a visão de uma sociedade donde impere a justiça. Isto significa criar uma teoria social e jurídica humanista baseada, na medida do possível, em uma concepção naturalista e empiricamente firme da natureza humana (ou da essência humana), quer dizer, de intentar estabelecer as conexões entre um conceito da natureza humana que dê lugar à liberdade, à igualdade e outras características humanas fundamentais (enfim, à dignidade humana), e uma noção de estrutura e relação social donde estas propriedades possam realizar-se para que a vida adquira a essência de uma existência verdadeiramente humana.[5]

Mas o princípio da dignidade não somente tem importância no processo político-legislativo de elaboração de um desenho normativo. Também tem, e muito em especial, no momento tão problemático como concreto de sua aplicação. Nesse sentido, a primazia que desempenha a condição/natureza humana sobre o princípio da dignidade como critério de sustentação das normas, valores e princípios contidos no ordenamento jurídico se converte em garantia contra um perigoso relativismo moral ou o modismo das recentes teorias dos direitos humanos e fundamentais, já proceda do jusnaturalismo transcendental, do poder aterrador das más ideias pós-modernas, do positivismo jurídico ou dos «neos» com seus delirantes princípios e suas demenciais ponderações.

A título de resumo, o direito constitui um instrumental normativo muito útil para dar curso normal a uma mediação pragmático-normativa de elaboração e aplicação das leis que seja eficaz para evitar que o indivíduo resulte interferido em seu plano vital pelos demais agentes sociais. Mas como condição necessária para que suceda isso, para poder fugir das imposições arbitrárias, a própria realização prático-jurídica do direito deve ser formulada a partir de uma posição antropológica capaz de explicar a fenomenologia da ação humana.

Somente desde o ponto de vista do ser humano e de sua natureza será possível ao operador do direito captar o sentido e a função do princípio da dignidade humana como unidade de um contexto vital, ético e cultural. Afinal, a noção de um direito destinado a garantir a existência material de todos as pessoas e suas possibilidades de viver de acordo com seus próprios planos de vida indica precisamente que o ser humano não se converte em membro da sociedade humana por meio da (simples) captação metafísica de um «ideal social» sobre a base de determinadas palavras, senão em virtude de “su pertenencia biológica a la especie Homo sapiens”.

Daí que a percepção da «dignidade» pressupõe a evidência de que o homem é um produto da história da evolução por seleção natural. Os momentos biológicos e culturais se encontram estritamente entrelaçados no processo que conduziu ao ser humano. O homem é um ser natural e cultural, dotado de uma “natureza cultivada” - para usar a expressão de K. A. Appiah. Quando o homem começou a dar nome e significado às coisas do mundo em uma linguagem reciprocamente utilizável surgiu a mente, o pensamento ou o discurso, todo um sistema de representação simbólica destinado a designar as coisas de maneira que resultem apropriadas a algum fim determinado. Apenas neste terreno é possível falar de «dignidade»; só então se abriu o campo de atuação da comunidade humana no qual os direitos e os deveres desempenham um papel significativo; somente a partir da capacidade (neuronal) de dar-se respostas a si mesmo e aos outros que o homem se converteu em um ser digno, livre e responsável.

Em realidade não se trata de pretender impor grandes novidades. O que se intenta mediante a concepção naturalista dos valores e princípios humanos é vincular de forma prioritária a concepção da dignidade à de natureza humana, devidamente fundada na herança e na cultura, isto é, de fazer dela o sentido mesmo das virtudes ilustradas de liberdade, igualdade e fraternidade. Estas três virtudes, que compõem o conteúdo da justiça, somente são diferentes aspectos da mesma atitude humanista fundamental destinada a garantir o respeito sem condições da «condição humana»: não se pode realizar na prática o princípio da dignidade se este não se materializa nas humanas condições do processo experiencial de que surge, garantindo a cada cidadão liberdade e igualdade de oportunidades em uma sociedade solidária.

Qualquer teoria que não se baseie em dados experimentais verdadeiros e fidedignos, ou que os ignore, é uma teoria digna de condena por sua irremediável estupidez ou má-fé. O que pensaríamos de um juiz que decidisse dirimir os casos apresentados a juízo a partir de suas intuições, suas opiniões pessoais ou de sua ideologia e não a partir da prova dos fatos? Esta ignomínia resulta ainda mais grave quando se trata de considerar os grandes problemas da vida. Como disse W. K. Clifford há mais de um século, temos o dever pessoal e social de combater as crenças não respaldadas pela evidência ou que se opõem ativamente a ela, do mesmo modo que temos a obrigação pessoal e social de tratar de evitar a propagação de uma enfermidade.

É sabido que a norma jurídica, qualquer que seja seu grau de imperatividade, deve promover a justiça. O modo mais decisivo de fazê-lo é garantir de forma incondicional a liberdade, a igualdade e a autonomia do ser humano que, em seu conjunto, configuram sua dignidade. Nada disso haveria resultado possível, nem o seria nunca, se a natureza humana não houvesse adquirido através do caminho de nossa evolução as bases necessárias para alcançar a dignidade, para entendê-la e para fazer dela o sentido mesmo de nossa existência como uns primates peculiares.

Em um de seus escritos, Eduardo Galeano fala de uma criança que chega cerca do mar - e é a primeira vez que o vê -, segura a mão de seu pai e lhe diz:  «Ayúdame a mirar». Tudo o que temos que fazer com relação à dignidade humana é dizer: «Mira ahora, porque hasta ahora no podías mirar».


Notas Referências:

[4] Há, por certo, quem crê que existe algo assim como um mundo platônico de direitos que só temos que aprender a ver para reconhecer-lhes. Outros creem que os direitos estão outorgados por um ente superior e que, em escritos a «ele» atribuídos, deixou dito quais são. Outros, ainda, creem que a só existência desse «ser» implica também a existência de direitos, que se pode ir desglosando com boa Teologia. Também estão os que creem que as cartas de direitos são provisionais e que refletem as preferências dos mais poderosos. Finalmente está quem crê que os direitos poderão deduzir-se usando a razão, estando escondidos nela e desde donde, razoando adequadamente, poderemos sacar-lhes, esta vez com boa Metafísica. Não é muito distinta esta última da postura platônica inicial, nem é distinta a maneira em que cada qual crê haver vislumbrado o deduzido pela razão. Mas o fato de que nenhuma destas posturas tenha conseguido avançar em sua agenda, senão mais bem que para seus respectivos «progressos» haja corroborado as próprias intuições e prejuízos, as fazem igualmente débeis e inúteis. Daí a proposta da simples consideração de que não existem mais direitos que os que concedemos uns a outros e/ou aos demais, um conjunto de estratégias destinadas à oferecer soluções aos desafios adaptativos que surgem em determinadas situações da vida comunitária, delimitando, modelando, controlando e separando por uma via não conflituosa os campos em que os interesses individuais podem (ou devem) ser válida, legítima e socialmente exercidos - quer dizer, o direito como um artefato cultural desenhado e empregado para abordar, regular e articular, por meio de atos que são qualificados como valiosos, os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os humanos constroem sistemas aprovados de interação e estrutura social (A. Fernandez).

[5] Como esclarece Steven Pinker, todo mundo tem uma teoria sobre a natureza humana. Todos nos afanamos em prever o comportamento dos demais, o que significa que todos necessitamos umas teorias sobre (e para entender) o que é o que move as pessoas a adotar determinadas condutas. Na própria maneira de pensar sobre a gente subjaz uma teoria tácita da natureza humana – a saber, que são os  pensamentos e os sentimentos  os causantes da conduta -. Damos corpo a esta teoria analisando nossa mente e supondo que nossos semelhantes são como nós, assim como observando o comportamento das pessoas e formulando generalizações. Ademais, também absorvemos outras idéias de nosso ambiente intelectual: da experiência dos expertos e da sabedoria convencional do momento. Nossa teoria sobre a natureza humana é a fonte de grande parte do que ocorre em nossa vida. A ela nos remetimos quando queremos convencer ou ameaçar, informar ou enganar. É esta teoria que nos aconselha sobre como manter vivo nosso matrimônio, educar aos filhos e controlar nossa própria conduta. Seus supostos sobre a aprendizagem condicionam nossa política educativa; seus supostos sobre a motivação dirigem as políticas sobre economia, justiça e delinquência. E dado que delimita aquilo que as pessoas podem alcançar facilmente, aquilo que podem conseguir somente com sacrifício ou sofrimento, e aquilo que não podem obter de modo algum, afeta os nossos valores: aquilo pelo que pensamos que podemos lutar razoavelmente como indivíduos e como sociedade. As teorias opostas da natureza humana se entrelaçam em diferentes maneiras de viver e em diferentes sistemas políticos, e tem sido causa de grandes conflitos ao longo da história. Por outro lado, o conhecimento da natureza humana também tem consequências profundas sobre nossos sistemas de justiça, os vínculos sociais relacionais e a dinâmica de poderes, na medida em que esta não somente gera e limita as condições de possibilidade de nossas sociedades senão que, e muito particularmente, guia e põe limites ao conjunto institucional e normativo que regula as relações jurídicas e os sistemas jurídicos concretos. Em resumo, é a natureza humana a que impõe constrições significativas para a percepção, transmissão e armazenamento discriminatório de representações culturais, limitando as variações sociais, morais e jurídicas possíveis.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España  


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