Dignidade e liberdade: Quem teme a natureza humana? (Parte 1)

25/04/2015

Por Atahualpa Fernandez - 25/04/2015

“Hay dos tipos de filósofos: los que se pegan a lo establecido y los que abren nuevos caminos poniéndose en el punto de mira de quienes alimentan el statu quo. […] Yo soy de la opinión de Nietzsche: uno tiene que filosofar con el martillo”.

Parte I

Era uma vez um país dominado por uma ideologia horrível chamada «Alturismo». Segundo esta doutrina, as pessoas altas eram superiores às pessoas mais baixas e só as pessoas altas podiam governar e ocupar profissões e cargos importantes na sociedade. Todas as pessoas de menos de 1,80 eram discriminadas e só podiam trabalhar com a permissão dos mais altos e servindo aos demais. Havia suspeitas não confirmadas de que as pessoas muito baixas (menos de 1,50) haviam sido inclusive assassinadas. Um belo dia, os «não-alturistas» se rebelaram contra este horror porque já não suportavam o regime de «Alturaheid» imposto. Se produziu um câmbio na consciência de um grande número de «não-alturistas», um câmbio relativo a eles mesmos e a sua posição social, e se levou a cabo um movimento revolucionário: os «não-alturistas» deram um golpe de estado, se fizeram com o poder e tiraram os «alturistas». E para que ninguém pudesse utilizar a altura para voltar a discriminar às pessoas se proibiu falar da altura e se decretou por norma constitucional (e por lei) que todos os indivíduos eram «dignos» de ser vistos igual de altos. Filósofos e juristas de todos os rincões do país, convencidos de que as palavras têm o poder de dominar a realidade, que constructos sociais como a dignidade “son mucho más poderosos que los 300 millones de años de evolución genética que culminaron en la formación de los seres humanos (hechos que ignoran en absoluto para poder desarrollar un enfoque del tema fundamentado exclusivamente en las palabras)”[1], se apressuraram em proclamar e predicar, com júbilo, o triunfo da «dignidade»... E viveram felizes para sempre.

Iniciei com este conto[2] porque parece que muitos juristas se comportam como os «anti-alturistas» em tema da dignidade. Pintá-la de cor-de-rosa com sutis maquinações de um jogo puramente especulativo-argumentativo: «constitucionalização» é a palavra mágica. Decretaram que a natureza humana não importa e, ademais, que está proibido falar dela. Opino, por contra, que insistir em elucubrações esotéricas sobre a palavra «dignidade», que não existe fora da imaginação comum dos seres humanos, é (i) negar a evidência de que a visão da natureza humana que foi evolucionando durante as quatro últimas décadas cambiou sistematicamente a explicação “do que somos e por que fazemos o que fazemos” (M. Banaji) e, (ii) descuidar da responsabilidade de buscar as raízes de nossa dignidade em como somos, no que nos ocupa e o que nos preocupa, em nossa natureza, em definitiva (P. S. Churchland).

De fato, atuando como o fazem, como se pudessem construir uma “ciência” especulando e inventando tudo, uma “ciência” que nada tem que ver com o conhecimento científico externo a si mesma, os juristas, arrastados por frenéticas concepções estrafalárias e vulveráveis a qualquer evidência empírica, se perdem em uma série de associações que podem ser críticas. E quando uma disciplina tem a intenção de ser científica e não o é, acaba utilizando conceitos, critérios e “sistemas tendenciosos y chapuceros para evaluar la verdad” (R. Trivers), passando por rios de tinta desperdiçados em «metafísica».[3] Explico.

A receita de "mais do mesmo"

Admito – e em certo sentido respeito a tenacidade dos que assim atuam - que os ecléticos e irênicos discursos sobre a dignidade humana são uma forma deveras eficaz para ganhar prestígio acadêmico, vender livros “de ocasião”, receber aplausos entusiastas dos mais crédulos, e, desde logo, inúmeros convites para proferir palestras: a «síntese admirável», «a satisfação perfeita». Desgraçadamente esses discursos, além de não servirem para fazer avançar discussões originais e significativas, limitam-se a engrossar «ad absurdum et ad nauseam» o tema da dignidade, sem chegar nunca ao «núcleo duro», ainda que parcial, dos fundamentos naturais e neurobiológicos dos valores humanos.

Um tipo de discurso condescendente adstrito a determinados marcos ideológicos e que só realça a fragilidade e a insuficiência que caracteriza a dignidade enquanto constructo mental e social. Discursos e teorias que não tratam de expressar a realidade, senão que se restrigem a usar um tipo de razoamento tendencioso, uma fascinação perigosa pela dignidade que favorece e apoia determinados pontos de vista que são fáceis de justificar, mas não necessariamente melhores: «conhecem a música da dignidade humana, mas não a letra da natureza humana». Para essas teorias e discursos, longe de ser uniforme, a dignidade é esquizofrênica.

Tomando sem ônus as palavras de Julie Wark, “la «dignidad» se ha degradado en la burbuja «intelectual», una industria en crecimiento desde la cual muchos académicos se aferran a la segura oscuridad de la jerga académica especializada y a la opacidad de las abstracciones de la teoría posmoderna”. E se o amável leitor (a) não pode encontrar uma importante distinção entre o que a «academia» predica e os recentes avanços científicos sobre a natureza humana, provavelmente deveria consultar a um neurólogo.

Dito do modo mais simples possível: os argumentos, discursos e teorias que expressam muitos juristas sobre a dignidade humana representam os curiosos malabarismos que se pode chegar a fazer com os valores, princípios, normas e/ou métodos interpretativos para inferir as conclusões que valoram como positivas e que trabalham a favor de seus “sombríos sesgos emocionales, cognitivos e ideológicos (incluyendo rasgos propios de mente de colmena y por el tipo de presiones sociales «conservadoras» y «progresistas» descritas por Thomas Kuhn)”, torcendo de forma idiossincrásica, caprichosa e arbitrária os significados que atribuem à informação que tomam do mundo (D. Kahneman). Assim se fabricam os pesadelos.

O problema da justificação filosófico-jurídica da dignidade humana: a dimensão "relacional" da dignidade

O direito se ocupa dos aspectos (naturais) que derivam da condição do primata humano: o regular sociedades que emanam das relações entre indivíduos. Uns entes que têm problemas e que sentem a necessidade resolvê-los. O objetivo do direito consiste em resolver alguns desses problemas sociais de grande calhado, permitindo, estimulando e assegurando a titularidade e o exercício de direitos (e o cumprimento de deveres) que fazem possível a condição humana e habilitam publicamente a dignidade dos cidadãos como indivíduos plenamente livres.

Pois bem, por «dignidade» se entende, no contexto filosófico-jurídico, uma determinada condição do ser humano que lhe distingue de qualquer outro animal e fundamenta certos direitos indiscutíveis e inalienáveis ao estilo de ter que ser considerado, à maneira kantiana, como um fim em si mesmo e não como meio para outros propósitos. Este é o ponto de partida que nos lega Kant (1785) em sua «Metafísica de las costumbres» ao sustentar que o humano não tem preço senão dignidade, valor intrínseco.

Um projeto assim, referido a um «ser humano» genérico, sem distinção de sexo, idade, classe social, etnia, saber, nacionalidade ou ofício, parece levar de maneira necessária à condição comum de qualquer pessoa, à natureza biológica humana derivada dos traços da espécie. Mas o processo de construção do conceito, antes e depois de Kant, conduziu em realidade à meta oposta: a de negar qualquer viabilidade às características biológicas do ser humano sempre que se trate de levar a cabo uma justificação filosófico-jurídica (teórico-abstrata, ortodoxo-dogmática) da dignidade.

O problema é que a tão popular dignidade filosófico-jurídica, sem nenhuma referência às atuais teorias e evidências científicas acerca da natureza humana (quer dizer, da dignidade como «propriedade emergente» da natureza humana), não significa coisa alguma. Dizer que alguém é «digno», sem mais, é deixar a frase incompleta e, o que é mais penoso, equivale a não dizer nada e a ressaltar o espírito de contradição. Nas atinadas considerações de Patricia Churchland, a dignidade humana “no es un concepto claro, como pudiera ser el de «electrón», o el de «hemoglobina» (siempre con respecto a las mejores teorías físicas y biomédicas), aunque tampoco radicalmente convencional, a la manera como el significado de «metro» es relativo al tamaño del trozo de platino conservado en una oficina de París. Con la «dignidad», ocurre que ninguna cultura hegemónica, revelación mística, ideología universal, o análisis conceptual es capaz de sentar un veredicto definitivo. Sólo podemos aspirar a  razonar juntos (elevada y difícil aspiración), intentando calibrar nuestras opiniones morales en función de la experiencia histórica compleja y de las mejores teorías y evidencias científicas a disposición”.

Quem teme a natureza humana? Por que, se está clara a deficiência de qualquer aproximação filosófica, ética, política e jurídica que não passe por uma análise empírico-científica da natureza humana, continuamos insistindo por seguir um caminho contrário a um diálogo interdisciplinar que ponha de manifesto a integração natureza e cultura? Por que se insiste em situar o problema da dignidade em função do homem singular, encerrado em sua esfera individual e exclusivamente moral? Continua sendo razoável conceber um conceito de dignidade humana que pretenda ser digno de algum crédito na atualidade mantendo-o à margem de um modelo darwiniano sensato acerca da natureza humana?

Não! Não parece razoável nem tão pouco oportuno. A cristalização de uma existência individual, separada e autônoma — «digna», portanto — é um elemento muito mais complexo e gradual que a simples e óbvia assunção do princípio da dignidade como mera diretriz normativa. A caracterização da dignidade humana que desenvolvo ao longo deste artigo leva-me a admitir que há boas razões para supor como correta a afirmação de que não cabe inferir grande coisa acerca da dignidade humana a partir de enunciados meramente lógico-formais, religiosos, filosóficos, normativos, de ideais políticos ou de vagas especulações acadêmico-teóricas.

A investigação da dignidade está vinculada de forma estreita à noção de natureza humana que, a sua vez, é uma questão tão fática como a medida do periélio de Mercúrio (J. Mosterín). Resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma dignidade de certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre a natureza humana e/ou unicamente como condição transcendental de possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da liberdade, etc.

E a ideia de nossa natureza que se deriva da concepção biológica do ser humano parte da situação básica de relação que existe entre cada um dos seres humanos com outros seres humanos. A natureza humana nem se esgota nem fica bem descrita em função do indivíduo moral singular, encerrado em sua esfera individual, e que serviu até agora para caracterizar como valor básico da construção do Estado liberal. Hoje sabemos que o que denominamos natureza humana tem qualidades e predisposições físicas e morais inatas. Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, e que esse conjunto de traços conformam a condição humana. Sabemos, mais além de toda dúvida razoável, que somos o resultado do processo evolutivo que, para bem ou para mal, modelou nossa espécie. E o resultado é uma espécie interdependente, ética e social.

A própria ideia de liberdade — condicio sine qua non na qual se arraigam a autonomia e a dignidade humana — não pode ser concebida à margem da relação com outras pessoas, porque a forma de ser do homem (evolucionado) no mundo é de per si uma forma de ser interpessoal. A autonomia de ser e de fazer, por outro lado, está inscrita na mesma essência do homem; dela surge a possibilidade e a capacidade de atuar de maneira livre e digna. E esta autonomia não pode ter lugar mais que no diálogo e a interação com outros (com o «outro»); quero dizer: não há liberdade humana fora da capacidade de sentir a chamada do outro. Não existe uma liberdade lograda e completa que logo, de forma posterior e secundária, se veja revestida de uma dimensão ética. Dimensão livre e dimensão ética são os mesmos, e também é essa uma constatação que cobra seu sentido à luz de um naturalismo de cariz darwiniano.

Charles Darwin apresentou o «homem moral» baseando-se em que sua capacidade cognitiva para compreender, avaliar e eleger complementa o moral sense para dar lugar à natureza humana evolucionada. Nada disso é possível em uma situação de isolamento. A mais íntima essência e a medida da liberdade no ser humano são a possibilidade e a capacidade para sentir a chamada do outro e responder a ela. A partir do momento em que o outro aparece como um outro livre e autônomo, nasce  também a dimensão ético-jurídica, relacional e intersubjetiva da  dignidade.

Desde esta perspectiva, o interesse humano pela dignidade  como valor prioritário na ordem dos valores vem a converter-se, desde a ideia da liberdade humana, em um convite a viver de forma genuinamente humana nossa existência a partir do reconhecimento do «outro». De fato, a responsabilidade pelos demais, que emana de sua mera existência, é uma dimensão necessária para a autodeterminação da autonomia, a liberdade e a dignidade humana.

O fundamento do direito não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, geneticamente programado para a liberdade e a vida em sociedade (P. Magistretti; D. Siegel). Longe de ser um princípio contrário ou separado de nossa natureza, é esta, nossa natureza, a que dá sentido a nossa ideia da dignidade humana.


Amanhã (26/04) tem a Parte II, também as 18h!


Notas e Referências:

[1] “Cuando eliminamos a la biología de la vida social, ¿qué nos queda? Palabras. Ni siquiera el lenguaje – que, desde luego, es profundamente biológico –sino solo palabras que tienen el poder mágico y son capaces de inclinar nuestro pensamiento. La ciencia misma queda reducida a uno de tantos sistemas arbitrarios de pensamiento” (R. Trivers).

[2] Tomado e modificado levemente do original «¿Existen las razas?», http://ilevolucionista.blogspot.com.es/.

[3] Deixarei de lado os aspectos lógico-formais da «falácia naturalista» que enunciou o pensamento analítico dentro da filosofia porque já resolvidos de maneira convincente por Richard Hare. Por outro lado, Steven Pinker já chamou a atenção sobre a frequência com que diversos intelectuais bem intencionados e “politicamente corretos” caem ( e/ou insistem) na «falácia moralista», isto é, na ideia de que devemos dar forma aos fatos, de tal modo que apontem às consequências mais moralmente desejáveis.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España  


Imagem Ilustrativa do Post: The Silence of the Lambs // Foto de: jimmy brown // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/jimmybrown/11897406325 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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