A interceptação telefônica, como é de conhecimento dos estudantes e operadores do direito, é um dos principais meios de investigação à disposição das forças de segurança pública. Isto deve-se sobremaneira ao fato de que grande parte da comunicação contemporânea se dá por meios telefônicos e telemáticos, inclusive nos contextos de organizações e associações criminosas.
Desta forma, sendo o meio pelo qual os órgãos que detém o ônus investigativo podem afastar o sigilo das comunicações telefônicas e telemáticas constitucionalmente consagrado no Art.5º, inciso XII da Carta Magna, o ordenamento jurídico brasileiro impõe critérios bem definidos para a permissão desta “invasão investigativa”.
Neste contexto, os procedimentos necessários para a autorização da interceptação telefônica foram bem delineados na Lei nº 9.296/96, destacando-se a exigência de que seja determinada por ordem de juiz competente – cláusula de reserva de jurisdição – e de que seja utilizada de forma subsidiária, quando não for possível empregar outros meios com êxito investigativo.
Esta é a inteligência do inciso II do Art. 2º da norma em comento, in verbis:
Art. 2° Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses:
II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;
Do exposto no dispositivo colacionado extrai-se a importância da interceptação telefônica como meio de obtenção de prova: ela será autorizada e utilizada quando não houver outros meios disponíveis para a prova das práticas criminosas investigadas e servindo, portanto, como uma espécie de instrumento heroico à serviço da persecução criminal.
Todavia, o fator subsidiário da interceptação como instrumento investigativo acarreta alguns empecilhos probatórios, conforme mostrar-se-á a seguir.
Em primeiro lugar, a interceptação telefônica ou telemática é meio de obtenção prova e, por consequência, não serve isoladamente para o convencimento direto do magistrado acerca dos fatos em discussão no momento da persecução probatória.
Para maior elucidação, socorremo-nos da síntese de Gustavo Badaró, de acordo com o qual:
(...) enquanto os meios de prova são aptos a servir, diretamente, ao convencimento do juiz sobre a veracidade ou não de uma afirmação fática (p. ex., o depoimento de uma testemunha, ou o teor de uma escritura pública), os meios de obtenção de provas (p. ex.: uma busca e apreensão) são instrumento para colheita de elementos ou fontes de provas, estes sim, aptos a convencer o julgador (p. ex.: um extrato bancário [documento] encontrado em uma busca e apreensão domiciliar). Ou seja, enquanto o meio de prova se presta ao convencimento direto do julgador, os meios de obtenção de provas somente indiretamente, e dependendo do resultado de sua realização, poderão servir à reconstrução da história dos fatos.[i] (grifou-se)
Portanto, pode-se concluir que os meios de obtenção de prova – como a interceptação telefônica – prestam-se tão somente a instrumentalizar a obtenção de elementos ou fontes de prova necessitando, em razão disto, de um fenômeno posterior à sua efetivação para que tenham alguma validade probatória e, deste ponto de vista, não servem a si mesmos como prova suficiente.
Em segundo lugar, sabe-se que as comunicações possuem formas e significados que variam de acordo com a região geográfica, grupo étnico e social ou até com momento em que é transmitida.
E não nos referimos apenas ao sentido pluralístico das palavras dos diversos idiomas existentes ao redor do planeta, mas, além disso, ao próprio sentido que as expressões podem adquirir com a variação das circunstâncias, como a criação de gírias e outras expressões idiomáticas. Pode-se citar, a título de exemplo, o uso da palavra “tênis”, que pode levar pessoas à condenação por significar “fuzil” em alguns grupos criminosos[ii].
Deste modo, sabendo-se que as palavras e expressões linguísticas adquirem valores variáveis em momentos e locais diferentes, caberia a dúvida a cerca da completude do sentido contido nas comunicações interceptadas. Isto é: como eu sei que o agente X está empregando a palavra “tênis” com o sentido de “fuzil”, e não uma mera referência a um calçado esportivo?
Nesta conjuntura, cabe trazer importante estudo de Vitor de Paula Ramos, em escrito para a Revista Brasileira de Direito Processual Penal, na qual ilustra um caso em que determinada investigação teria interceptado comunicações nas quais os agentes delitivos negociavam câmbios de forma ilegal utilizando “cebolas” e “alfaces” como formas ocultas de se referir a expressões monetárias.
Segue trecho do trabalho:
Sabendo-se que o valor dos símbolos, como a linguagem, depende de que se entenda o contexto da sua criação, deve-se necessariamente recorrer à combinação de provas. Afinal, sendo relevante para a determinação de sentidos saber o hábito coletivo da comunicação em questão, é necessário reconhecer a qual contexto pertence aquela comunicação. Quem são as pessoas? Em que situação foram gravadas? Em que local? Em que época? E a grande dificuldade, como mencionado, é que, em casos reais, os contextos e os elementos indispensáveis para a interpretação dificilmente estarão integralmente nas ligações gravadas.
Retornando-se ao caso real, das cebolas e alfaces, dever-se-ia, de fato, apurar se as pessoas em questão, de fato, vendem cebolas ou alfaces. E, ainda, que vendam, se tais vendas de cebolas e alfaces, de fato, são o objeto principal de seu comércio, ou se são usadas como forma de mascarar práticas ilícitas.[iii]
Logo, pode-se concluir que, além dos dados obtidos através de uma interceptação telefônica bem sucedida necessitarem de corroboração externa quanto ao seu valor probatório para maior segurança em relação à veracidade das informações ali contidas e, além disso, para manutenção dos standards probatórios exigidos para um decreto condenatório, também é imperativa a corroboração por elementos externos em relação ao próprio sentido das comunicações interceptadas.
Todavia, é indispensável um questionamento de ordem lógica que surge ao atento estudante e operador do direito, que se impõe mais em forma de provocação do que de crítica aos “eficientes” engenhos normativos e jurisprudenciais a disposição do operador: como corroborar com eficácia um meio probatório que se caracteriza por ser a ultima ratio, o socorro persecutório da busca da lúdica verdade real?
Em outras palavras: se a interceptação é empregada como meio último de investigação quando outros instrumentos menos invasivos não lograriam êxito em conceder suficiente material probante ao julgador, como validar seu valor e seu sentido com mecanismos que antes eram insuficientes por si só, não atingindo o padrão probatório exigido nem de forma individual, nem com a união dos materiais investigativos.
Notas e Referências
[i] BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. Rio de Janeiro, Campus, Elsevier, 2012. Pag. 270.
[ii] GLOBO. Drogas e “tênis” – Cantor Belo é condenado a prisão. 07 de Janeiro de 2003. Disponível em: http://g1.globo.com/jornaldaglobo/0,,MUL900860-16021,00-DROGAS+E+TENIS.html. Acesso 31 mar 21.
[iii] RAMO S, Vitor P. Da Necessidade de Corroboração Probatória para a Reconstrução de Sentidos em Diálogos Obtidos por Interceptações Telefônicas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 7, n. 1, p. 537-566, jan./abr. 2021. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i1.429
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