Esse ensaio explora como o Supremo Tribunal Federal (STF) tem utilizado a tese dos diálogos institucionais em decisões recentes, com destaque para os casos ADC 87 (Marco Temporal) e ADI 7.633 (Desoneração da Folha de Pagamento). O foco está em entender se essas práticas configuram uma nova forma de ativismo judicial.
DIÁLOGO INSTITUCIONAL
O debate entre “supremacia judicial” e “supremacia do parlamento” tem enriquecido o desenho institucional das Cortes Superiores. Nesse contexto, a ideia de diálogo institucional vem se destacando por propor um equilíbrio entre constitucionalismo e democracia.
A interação entre os poderes, quando deliberativa, pode maximizar acertos e promover melhores deliberações, funcionando como um catalisador deliberativo que qualifica a competição política e aumenta a legitimidade das decisões democráticas (MENDES, 2011; CLÉVE; LORENZETTO, 2015)[1].
Entretanto, a aplicação do diálogo institucional no Supremo Tribunal Federal tem gerado preocupações, especialmente é utilizada sem critérios claros, permitindo decisões arbitrárias que se sobrepõem à legislação vigente.
Em nossa perspectiva, isto está ocorrendo na ADC 87[2] e na ADI 7.633[3].
Vejamos cada uma dessas ações, para na sequência avaliarmos a sua relação com os diálogos institucionais.
MARCO TEMPORAL (ADC 87, ADI 7582, ADI 7583, ADI 7586 e ADO 86).
Segundo a teoria do marco temporal, os povos indígenas teriam direito somente às terras que estavam ocupando ou disputando na data de promulgação da Constituição de 1988.
Contudo, em setembro de 2023, o STF decidiu que essa data não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional das terras indígenas.
Antes da decisão do STF ser publicada, em dezembro, o Congresso Nacional, em claro efeito “blacklash”, aprovou a Lei 14.701/2023, que restabeleceu o marco temporal.
Desde então, foram movidas quatro ações questionando a validade da lei e uma pedindo ao STF que confirme sua constitucionalidade (ADC 87, ADI 7582, ADI 7583, ADI 7586 e ADO 86). O ministro Gilmar Mendes, em sua decisão na ADO 87, determinou a criação de Comissão Especial, como método autocompositivo, em todas as cinco ações de controle de constitucionalidade.
A comissão foi composta por seis representantes da Articulação dos Povos Indígenas (Apib), seis do Congresso Nacional, quatro do governo federal, dois dos estados e um dos municípios. Além disso, cada autor das ações poderá designar um representante [4].
ADI. 7.633 (DESONERAÇÃO DA FOLHA)
O objetivo da ADI 7.633 é (i) declarar a inconstitucionalidade dos arts. 1º, 2º, 4º e 5º da Lei Federal nº 14.784/2023 e da prorrogação seletiva da Medida Provisória (MP) nº 1.202/2023, e (ii) declarar a constitucionalidade do art. 4º da mesma MP.
O Ministro relator Cristiano Zanin identificou violação ao art. 113 do ADCT, devido à prorrogação dos benefícios fiscais de contribuição previdenciária sobre receita bruta para certos setores, redução da alíquota sobre folha de pagamento em determinados municípios, e diminuição da alíquota da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB) para empresas de transporte coletivo.
Concedeu, então, medida cautelar para suspender a eficácia dos artigos mencionados, até que seja comprovado o cumprimento do art. 113 do ADCT ou até o julgamento definitivo pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Tanto na ADC 87, quanto na ADI 7.633, a tese do diálogo institucional foi utilizada como fundamento para as decisões.
Entretanto, qual seria a base normativa adequada para a aplicação dessa teoria? O STF tem fundamentado suas decisões sobre o diálogo institucional com base no Código de Processo Civil. Contudo, essa abordagem é, de fato, a mais apropriada? Vamos analisar.
O CPC, ao menos textualmente, se aplica tão somente ao controle difuso de constitucionalidade (art. 948 do CPC), nada tratando sobre o controle concentrado.
À primeira vista, por meio do critério da especialidade[5] (Lei nº 9.868/1999), poderia se afastar a aplicação do CPC ao controle concentrado de constitucionalidade. O critério da especialidade estabelece que diante da existência de normas que se contradizem, uma sendo geral e a outra específica, a norma específica tem precedência.
No caso, não há contradições entre as leis em questão.
Em outros termos, embora a lei nº9.868/1999 seja específica, ela em nada se contradiz com as normas gerais, pois a regra que permite uma abertura para a teoria do diálogo institucional está prevista no artigo 3º do CPC[6], sendo este dispositivo inserido nas “normas fundamentais do processo civil”.
Dessa forma, embora o CPC não trate diretamente do controle concentrado, seus princípios, como a busca pela solução consensual, podem, em tese, ser considerados na aplicação desse controle, desde que não contrariem a legislação específica[7].
O CPC pode contribuir para uma relação dialógica entre os poderes, mas sua aplicação deve respeitar os limites da lei especial (Lei nº 9.868/1999). A teoria do diálogo entre os poderes é crucial para o equilíbrio institucional e segurança jurídica, mas deve seguir parâmetros legais específicos, como a intervenção de amicus curiae (art. 7º, §2º), audiências públicas (art.9º, §1º) e a modulação dos efeitos das decisões (art. 27º).
A aplicação extensiva do CPC nesse contexto pode distorcer a função jurisdicional e comprometer a coerência normativa. Portanto, o CPC deve ser utilizado de forma subsidiária, evitando ampliar indevidamente o escopo da teoria do diálogo.
Com essa base teórica e normativa em mente, examinemos como o diálogo institucional foi aplicado nos casos ADC 87 e ADI 7.633.
A NOVA CARA DO ATIVISMO JUDICIAL?
A questão envolvendo a aprovação da Lei 14.701/2023 pelo Congresso Nacional, antes da publicação da decisão do STF sobre o marco temporal, expõe erros significativos cometidos por ambas as instituições (judiciário e legislativo), comprometendo o diálogo institucional e o equilíbrio entre os Poderes.
O primeiro equívoco é do próprio STF, que, ao se colocar como mediador, extrapolou sua função constitucional ao criar comissões não previstas em lei.
Ademais, a Suprema Corte não demonstrou a necessária fundamentação para superar a tese previamente adotada. Antes de qualquer medida, seria essencial que a Corte estabelecesse um debate interno sólido e transparente, que justificasse a revisão de posicionamentos anteriores.
Sem esse passo, a criação de mecanismos ou comissões pela Suprema Corte carece de legitimidade e pode ser vista como uma ingerência no papel legislativo, assumindo uma função que não lhe pertence.
O Congresso Nacional, por sua vez, errou ao aprovar a Lei 14.701/2023 antes da publicação da decisão do STF sobre o marco temporal, impedindo que os argumentos da Suprema Corte fossem devidamente analisados.
O correto seria aguardar a decisão para um diálogo institucional genuíno. Ao se antecipar, o Congresso comprometeu a deliberação e enfraqueceu a legitimidade da lei aprovada.
O ônus argumentativo de refutar ou modificar uma tese acolhida pela Suprema Corte recai sobre o Legislativo, que deve legislar de forma ponderada e refletida. Tanto o STF quanto o Congresso Nacional falharam em suas respectivas funções, o que comprometeu o equilíbrio entre os Poderes e o diálogo institucional.
Já na ADI. 7.633, o ministro Cristiano Zanin entendeu que havia claramente indícios de inconstitucionalidade, tanto foi assim, que deferiu a medida liminar. Se existiam estes indícios, não poderia ser invocada a ideia de diálogos, cabendo à Suprema Corte, sendo o caso, declarar a lei inconstitucional.
Posteriormente, o ministro atribuiu “efeito prospectivo” à decisão que proferiu, afirmando que só passaria a produzir efeitos no caso de não ser atingido o acordo entre os envolvidos. Qual a previsão normativa para este tipo de efeito em decisões liminares? O ministro irá adotar esta mesma postura em todos os casos de controle de constitucionalidade?
É importante as advertências de Jean Leclair (2003, p. 389), para o qual a articulação dialógica dos conflitos pode fazer com que o Poder Judiciário amplie (indevidamente) ainda mais seu âmbito de atuação[8].
Apesar de não mencionado pelo professor canadense, podemos citar o exemplo de uma lei que não é inconstitucional, mas também pode não ser a melhor solução (política) para determinado problema social.
Ao ser provocado, o STF deve prezar pela conformidade funcional.
A Suprema Corte não pode ampliar sua competência, sob a justificativa de uma suposta solução consensual dos conflitos, a fim de corrigir (do ponto de vista político) a atuação legislativa.
Em outras palavras, se as técnicas de autocomposição não forem devidamente esclarecidas e bem aplicadas, pode ocorrer o efeito inverso, ou seja, uma ampliação do ativismo judicial.
Embora o Código de Processo Civil e outras normas forneçam um arcabouço normativo para a aplicação dos diálogos entre os poderes, é crucial que isso não subverta o papel da Suprema Corte, cuja função primordial é atestar a inconstitucionalidade de leis que se mostram incompatíveis com a Constituição.
Talvez seja mais adequado que uma nova legislação passe a regular as novas formas de diálogo entre as instituições, especialmente em processos estruturais.
Assim, torna-se necessário que essa legislação específica estabeleça critérios claros sobre quando e como a tese dialógica deve ser aplicada, evitando, dessa forma, a erosão do papel constitucional da Corte.
As casuísticas ora analisadas são importantes objetos para que a comunidade acadêmica inicie uma reflexão aprofundada no âmbito do processo constitucional objetivo sobre os diálogos de cunho político-constitucional e a normatividade que está positivada na legislação infraconstitucional.
Ao que nos parece, algumas decisões que invocam a ideia de diálogo vêm se utilizando da retórica para mediar conflitos que não lhes cabem.
Em outras palavras, se no passado a ponderação era utilizada como um álibi para arbitrariedades judiciais, no presente, a teoria dos diálogos institucionais pode surgir como a nova face do ativismo judicial.
Notas e referências:
[1]MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011. CLÈVE, Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Diálogos institucionais: estrutura e legitimidade. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 2, n. 3, p. 183-206, set./dez. 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rinc.v2i3.44534
[2] Ministro Gilmar Mendes também deu início a processo de conciliação e concedeu prazo para que partes envolvidas apresentem propostas. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=533080&ori=1
[3]O andamento processual da ADI pode ser consultado no seguinte link: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6909105.
[4] STF realiza, nesta segunda (5), primeira audiência de conciliação sobre Lei do Marco Temporal. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-realiza-nesta-segunda-5-primeira-conciliacao-sobre-lei-do-marco-temporal/.
[5] O Decreto-Lei nº 4.657/194 (Lei de Introdução às normas do Direito) assim dispõe: Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. § 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.
[6] Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
§ 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.
§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.
§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
[7] A título de exemplo, podemos mencionar a desistência, que possui um amplo regramento no CPC. Já na Lei nº 9.868/1999, em seu artigo 5º, estabelece que, proposta a ação direta, não se admitirá desistência.
[8] LECLAIR. Jean. Réflexions critiques au sujet de la métaphore du dialogue en droit constitutionnel canadien. Revue du Barreau du Québec; pp. 377-420. Disponível em: https://papyrus.bib.umontreal.ca/xmlui/handle/1866/2549. Acesso em: 30 jul. 2023.
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