Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann
Durante o mês de agosto é comemorado o Dia Internacional da Juventude, o que acaba por fomentar diversas discussões acerca da realidade dessa população, sobretudo, no Brasil, país marcado por uma grande desigualdade social. Sendo assim, é fundamental que esses debates se debrucem sobre aspectos relacionados ao trabalho, educação, lazer, moradia, segurança, entre outras questões que perpassam a vida dos jovens pobres. De tal sorte, que se torna fundamental se questionar: no Dia Internacional da Juventude, em um país como o Brasil, marcado por profundas desigualdades sociais, há o que se comemorar?
No início do século XX, remetia-se à juventude a partir da discussão relacionada ao controle da chamada “delinquência”, visto que os jovens representavam uma ameaça à ordem social burguesa, sendo considerados perigosos, ingênuos e irracionais. Esse estereótipo de problema social perdura até hoje para os jovens pobres, moradores das periferias, fazendo com que estes sejam as maiores vítimas de homicídios, de violência policial, tenham menos acesso a políticas como as de saúde, educação e formação profissional.
No Brasil, o Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013) considera jovem todos aqueles indivíduos com idade entre 15 e 29 anos, subdividindo-os, ainda, em três subgrupos: jovem-adolescente, com pessoas de 15 a 17 anos; jovem-jovem, de 18 a 24 anos; e jovem-adulto, com aqueles que têm entre 24 e 29 anos. Porém, para discussão que pretendemos adentrar, mostra-se insuficiente adotar simplesmente a categoria por faixa etária, pois a condição juvenil é vivida de modo desigual pelos diferentes jovens, de diferentes regiões, de diferentes cores, gêneros, religiões, orientações sexuais e classes sociais.
As contradições que surgem a partir das classes sociais as quais esses sujeitos pertencem se apresentam como o principal fator capaz de influenciar como a juventude se dará para esses diferentes sujeitos. Novaes (2007) discute que a resposta que um jovem dará para pergunta “onde você mora?” se revela decisiva para entender os atravessamentos que perpassam a sua vida.
Neste âmbito, os jovens são maioria nos presídios. Dados do INFOPEN – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2017) trazem que, de um total de 726.712 pessoas encarceradas no Brasil, 55% possuem entre 18 e 29 anos de idade, sendo a maioria delas negros e negras. A seletividade penal do sistema de justiça atinge em cheio os jovens da periferia, atribuindo a eles uma suposta culpa pelos problemas relacionados à segurança pública, sendo que a maioria das pessoas que estão presas responde a processos por crimes contra o patrimônio - evidenciando a prioridade do Estado na garantia da propriedade privada - ou relacionados às leis de drogas (Lei 6.368/76 e Lei 11.343/2006), que vem servindo para atender as demandas de um Estado penal que se alimenta do encarceramento de jovens pobres e que aumenta abismos sociais.
Alguns acontecimentos que ganham mais repercussão escancaram essas questões que criminalizam jovens pretos e pobres, como o caso recente do jovem que foi preso por estar portando 10g de maconha, foi condenado a cinco anos e quatro meses de reclusão, teve três habeas corpus negados pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e acabou morrendo na prisão por decorrência do novo coronavírus¹. Neste sentido, a Defensoria Pública do Rio Janeiro publicou recentemente o resultado de um estudo que revela que oito em cada 10 pessoas presas em flagrante são negros, escancarando a seletividade de uma lógica de “guerra às drogas”, que, na verdade, materializa-se como uma guerra aos pobres e persegue e criminaliza jovens pretos e pobres.
Ainda vale salientar que, historicamente, as polícias surgem com o objetivo de servir e se submeter aos interesses das elites, garantindo o direito à propriedade privada e reprimindo as classes populares. Logo, percebe-se que as questões sociais que atingem os jovens pobres estão diretamente ligadas a aspectos relacionados ao problema da desigualdade social e que essa seletividade cumpre um papel social de extermínio da juventude preta e pobre na busca da garantia de uma ordem social que serve às elites e reforça o imaginário social do jovem como “problema social”, além de aumentar ainda mais essa desigualdade social.
Os jovens também são as maiores vítimas de homicídios no país, representando 54,5% do total de vítimas de violência letal no Brasil, ou seja, de acordo com o Atlas da Violência (2019), no ano de 2017 foram assassinadas 65.602 pessoas no país, sendo 35.783 indivíduos com faixa etária de 15 a 29 anos. Além disso, o próprio Atlas da Violência calcula que a taxa de homicídios no Brasil, de maneira geral, é de 31,6 homicídios a cada 100 mil habitantes e aumenta para 69,9 a cada 100 mil quando diz respeito estritamente a população jovem. E ainda vale ressaltar as diferenças regionais que essas taxas de homicídios apresentam, variando, por exemplo, de 18,5, em São Paulo, até 152,3, no Rio Grande do Norte. Diante de tamanha desigualdade, é preciso compreender que a realidade varia bastante dependendo da região em que o jovem se encontra.
Ademais, um estudo realizado no pelo Comitê Cearense Pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (2016) acerca dos homicídios cometidos contra adolescentes de 12 a 18 anos (mas que muito tem a ver com a violência que atingem os jovens até 29 anos), mostrou que, em Fortaleza, 44% desses casos ocorreram em um território equivalente a 4% do total da cidade, e que esses espaços estavam entre aqueles com condições de vida mais precárias e menor acesso a políticas públicas diversas. Então, a luta por acesso a direitos básicos é, antes de tudo, uma luta para garantir o direito de sobreviver, visto que a violência letal aparece como produto de uma série de violências e violações de direitos, tendo o Estado como principal algoz desses jovens.
Neste âmbito, além dessas violências diretas que têm os jovens como alvos principais, outras problemáticas atingem de maneira impactante esse grupo. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD Contínua) de 2019, a taxa de desemprego entre a população entre 18 e 24 anos era de 25,2%, o que representa mais do que o dobro do desemprego da população de outras faixas etárias. Ademais, em 2018, 24,3 milhões de jovens não haviam chegado a concluir o ensino superior - o que representava 47,4% do total de jovens -, sendo, desses, 53% homens e 65,2% negros, 23,1% tinha apenas o ensino fundamental e 21% não chegaram a concluir o ensino fundamental. Para esses homens que abandonaram os estudos, a principal motivação para essa decisão foi a necessidade de trabalhar.
Diante desse cenário, parcela significativa dos jovens encontra no trabalho no tráfico de drogas uma alternativa à falta de emprego formal. A atividade no tráfico apresenta uma lógica de exploração do trabalho semelhante ao trabalho legal, precarizado e de superexploração da mão de obra, porém, a situação se agrava ainda mais devido aos riscos por conta do caráter de ilegalidade que o tráfico assume.
Logo, ao analisarmos de maneira mais minuciosa esses dados, vai se evidenciando que a experiência como jovem é muito diversa a depender da classe social em que o sujeito está inserido. Enquanto para alguns a juventude é, quase que obrigatoriamente, um período de formação e preparação, passando por uma educação formal que vai da educação básica a uma dedicação exclusiva ao ensino superior, chegando, em alguns casos, a ter acesso à pós-graduação sem a necessidade real e urgente de estar trabalhando para pode garantir a sobrevivência. Para muitos outros - a maioria - a juventude é atravessada pela obrigatoriedade de entrar muito cedo no mundo de trabalho, a fim de arcar com a própria subsistência, tornando mais difícil o processo de formação e de educação formal para um desenvolvimento mais amplo e para maior qualificação.
E um dos aspectos relevantes nesse âmbito é o caráter de normalidade com que essa realidade é encarada por diversos segmentos sociais. O racismo, a partir do que é trazido por Silvio de Almeida e o conceito de Racismo Estrutural, configura-se como parte da ordem social, justamente por ser considerado o “normal” em diversos tipos de relações, sejam elas sociais, econômicas, jurídicas ou familiares. O racismo é a regra! Assim, vale trazer à tona uma discussão apontada por Oliveira (2018), que questiona o modo como a sociedade legitima a violência sofrida pelos jovens e, ao mesmo tempo, condena de maneira veemente aquela que é praticada pelos mesmos, o que cria um cenário de constante injustiça, além de querer consolidar a existência de uma falsa harmonia entre as classes sociais e levar a classe trabalhadora a adotar uma compreensão fatalista sobre sua própria realidade.
Então, respondendo à pergunta feita no início do texto sobre a existência de razões para comemorar, no Brasil, o Dia Internacional da Juventude, os dados evidenciam que a realidade está muito longe da ideal, porém, é preciso reafirmar que a luta pelos direitos da juventude permanecem e essa data deve servir como mais um momento de denúncia de um sistema que legitima desigualdades sociais, de um Estado que mata e aprisiona jovens negros todos os dias, mas também como um momento de exaltação de diversos movimentos sociais, organizações e grupos de jovens, em suas mais admiráveis diversidades, que lutam e resistem dentro desse moinho de gastar gente.
Silvio Almeida ainda chama atenção para o fato de que considerar o racismo estrutural não significa que nada pode ser feito ou que isso pode ser usado como argumento para aceitar uma estrutura social, política e econômica racista e violenta. Ao contrário, é preciso lutar pela positivação de políticas antirracistas e pela superação desse sistema estruturalmente violento.
Por fim, é preciso reconhecer a importância de tantos jovens, homens e mulheres, que gastam os seus dias e suas energias na luta por melhorias em nossa realidade social e não se curvam diante de um governo que tem ojeriza às diversidades e que, por reconhecer na juventude a força política capaz de encampar diversas lutas por transformações sociais, ataca grupos diversos e alimenta ainda mais uma política de extermínio dos jovens negros e pobres.
Notas e Referências
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