Deu Curto-Circuito na Administração Pública: os problemas da corrupção estrutural do Estado – Por Leonel Pires Ohlweiler

04/02/2016

Conforme mencionei na última coluna, o Direito Administrativo passa por tempos difíceis, em virtude da própria crise da República brasileira e da mazela que assalta os princípios republicados institucionalizados na Constituição Federal. Também não é novidade a circunstância do discurso do senso comum segundo o qual o Direito Administrativo é separado da Moral e não há qualquer relação. Vale a leitura da obra Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas, de Lenio Luiz Streck, na qual examina com profundidade a impossibilidade de cindir tal questão, os efeitos deletérios tanto de moralismos no discurso jurídico, como defender o seguinte entendimento: nem tudo que é imoral é ilegal! Ora, o artigo 37, “caput”, da Constituição Federal, prevê a moralidade administrativa como princípio de toda a Administração Pública, Direta ou Indireta, ou seja, é Direito Positivo.

Nem a Merenda Escolar de Nossos Alunos Escapa!

Tudo isso não é novidade, mas não podemos perder a capacidade da angústia do estranhamento (Martin Heidegger) quando no cotidiano ocorrem ações não republicanas. No jornal Folha de São Paulo, 29 de janeiro de 2016, saiu notícia sobre a Máfia da Merenda Escolar em cidades de São Paulo. Refere que três cooperativas de agricultura familiar formaram cartel para definir vencedores em licitações de merenda escolar! A prática ocorreu em 152 municípios paulistas e consistiu no loteamento das licitações, combinação de preços e pagamento de propinas sobre o valor total do contrato, conforme as informações publicadas e, por óbvio, precisam da devida investigação (também republicana). Como sói acontecer todos os envolvidos negaram a formação do cartel.  Na linha do que disse certo jornalista há poucos dias: vai ver a culpa é da vovozinha! Ou então, com certeza o coelho da páscoa está envolvido (aliás, deveria ser convidado para fazer delação premiada. Ora, ninguém melhor sabe onde estão escondidos os ovos recheados).

Um dos municípios citados na reportagem foi Barueri, local onde o acordo foi desfeito em determinado processo de licitação, ocasionando retaliações por parte de uma das cooperativas. Não se pode formular qualquer juízo de valor definitivo, repito, sem o devido processo legal, mas coisas estranhas acontecem na vida da Administração Pública. Basta consultar o sítio eletrônico do Município (http://servicos.barueri.sp.gov.br/compras) e é possível, em nome da constitucional transparência administrativa[1], acessar inúmeros processos de licitação, datas, editais, objetos de licitação, etc. A transparência veio exatamente para coibir práticas semelhantes e possibilitar o devido controle. Pois durante a visita constatei, por exemplo, o interessante Pregão Eletrônico nº 003/2015, obviamente encerrado antes do Natal. A razão? O objeto da licitação era aquisição e entrega de panetones! Sério, isso existe, inclusive na descrição do objeto da licitação foram arrolados três itens: panetone com gotas de chocolate (item 1), panetone com frutas, embalagem no mínimo 750g (item 2) e panetone de frutas, embalagem com no mínimo 500g (item 3).

Aviso aos navegantes: não tenho nada contra os panetones!

A Corrupção da Estrutura ou a Estrutura da Corrupção?

O sociólogo francês Pierre Bourdieu, em estudo publicado na obra intitulada Sobre o Estado, fornece alguns elementos importantes sobre o tema da corrupção[2], a partir da perspectiva do modo como o Estado é constituído. Muito embora o contexto do estudo não seja o Brasil, há questões muito interessantes, pois nossa Administração Pública é gigantesca, todos sabem. Ai começam os problemas (ou soluções para alguns!). O Estado trabalha com a lógica da delegação. O Chefe Maior é obrigado a conferir parte do poder que detém a outros – os intermediários -, cujos critérios de distribuição são diversos. Criam-se, assim, cadeias de dependência e, a cada um dos elos da corrente, institui-se a possibilidade do desvio. Bourdieu refere: “Assim como o rei pode desviar-se (o processo) em seu proveito, assim também o intendente de Nancy pode se servir da autoridade que recebeu do rei para acumular um poder e um prestígio, em especial por algum privilégio, que poderá eventualmente reverter contra o rei.” Na Administração Pública brasileira a situação é similar. O artigo 37 da Constituição Federal refere a Administração Pública Direta e Indireta, isto é, não apenas no plano federal, mas de cada Estado e município ocorre o fenômeno mencionado, em maior ou menor escala, mas sempre, sempre o poder divide-se e há cada vez mais agentes – intermediários - detentores de parcelas de poder que são interconectados, hierarquizados por processos de delegação[3]. O que dizer então no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista!

Portanto, quando se institucionalizam em processos de licitação de fornecimento de merenda escolar práticas corruptivas, com certeza o exame também deve passar pela própria estrutura de delegação de poder, ao menos para bem diagnosticar e construir mecanismos de prevenção. Como aduz Pierre Bourdieu, o processo de delegação é acompanhando pela multiplicação de poder e faz surgir a potencialidade dos desvios.

Em virtude do tamanho da estrutura burocrática, existem graves problemas de controle nos variados processos de redistribuição de poder pelos intermediários, surgindo os vazamentos neste circuito, pois os agentes podem fazer um saque direto, ou seja, obter proveitos diretos que, em alguns casos, sequer sobem até o Chefe Maior, além de desvios simbólicos de redistribuição direta de poder em âmbitos locais.  Essa redistribuição Bourdieu denomina curto-circuito, ou seja, a corrupção no exercício do poder[4].

Mas o problema agrava-se cada vez mais na época em que a informação configura-se como grande moeda de troca. Sim, pois como a rede da estrutura burocrática é enorme os intermediários detentores de informação aumentam consideravelmente o próprio poder, não apenas no plano das relações externas com pessoas estranhas aos quadros da Administração Pública, mas também internamente, inclusive nas relações com o Chefe Maior. Certamente não se pode fazer reducionismos, pois o fenômeno da corrupção é complexo, mas em determinadas situações o Administrador Público precisa de informações que somente os intermediários possuem, bem ai começam diversos desvios. O intermediário possui a informação que o Administrador não tem! Em outros casos, o Chefe Maior é o detentor de contatos, informações e outras espécies de relações, mas precisa dos intermediários para acionar tais contatos. Ele não pode aparecer nesta rede de desvios. As práticas não republicanas em tais casos impregna todo o funcionamento do Estado, nas relações do Chefe Maior, com seu capital simbólico utilizando o serviço público perante terceiros e na estrutura interna de delegação de poder.

Portanto, o texto de Pierre Bourdieu é relevante para mais uma vez comprovar: a corrupção é estrutural! Os integrantes da máquina do Estado, por vezes, são os primeiros a defender a permanência do estado de coisas, em manter suas posições estruturais nas redes de delegação de poder.

Ninguém frauda processo de licitação sozinho, inclusive nas modalidades menos complexas como o pregão, cujo discurso da Lei nº 10.520/2002 foi exatamente de simplificar para evitar as demoras ineficientes e ultrapassar ações corruptivas. Até em pequenas Administrações Públicas a licitação só tem andamento por meio da delegação de poder, desde a autoridade responsável, pregoeiros, até outros intermediários encarregados de facilitar canais de comunicação com agentes públicos...

Não caberia no breve espaço desta coluna indicar os casos já revelados de corrupção no Brasil, pois a lista é grande, não apenas no passado (Fraude na Previdência, Anões do Orçamento, Máfia das Sanguessugas, Fórum Trabalhista de São Paulo, etc..), mas neste mês foi veiculada notícia trágico-cômica, para dizer o mínimo.

Câmara de Vereadores presa por corrupção!

O Jogo Duplo do Serviço Público e a Metafísica dos Conceitos.

Na cidade mineira de Centralina, município com 10 mil habitantes e 9 vereadores, todos foram presos no mês de janeiro de 2016 por suspeitas de fraudar diárias. Resultado: a comunidade fica sem os representantes da vontade popular até que os suplentes sejam diplomados. Sobre os suspeitos recai a acusação dos seguintes crimes: associação criminosa, peculato, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. Mais uma vez constata-se a repetição do filme tantas vezes encenado nas administrações, é estrutural o problema da corrupção, aliado ao fato do elemento pessoal relacionado com o completo desprezo pela res publica. O sistema de representação democrática deve orientar-se – insisto mais uma vez – pelas virtudes constitucionais de zelo, honestidade e cuidado com aquilo que pertence, em última análise, à comunidade brasileira. É verdadeiramente esquizofrênica a relação de alguns agentes políticos, representantes do povo. No entendimento de Pierre Bourdieu há uma espécie de hipocrisia estrutural do delegado, pois sempre pode falar duas linguagens: pode falar em seu próprio nome ou em nome da instituição que ele representa, é uma espécie de jogo duplo e de duplo “eu”. É Robespierre que diz: ‘Eu sou o povo’[5]. Bem, com relação à Robespierre             todos sabemos o que ocorreu. Não podemos esquecer, portanto, o grande problema da transversalidade dos discursos metafísicos que pululam nas administrações públicas, fruto da hipocrisia da qual fala o autor, pois em geral algumas falas são construídas por meio de universais (interesse público, representante do povo, Eu sou o Estado!, Governo Democrático, etc...). Cuidado, a generalidade da linguagem esconde em certas ocasiões a individualidade de ações nada republicanas!

O “interesse público” utilizado metafisicamente no cotidiano das administrações deve indicar no mundo da vida as virtudes republicanas, não apenas para a compra de panetones (até aquele com gotas de chocolate), mas também na compra de merenda escolar.


Notas e Referências:

[1] Sobre transparência administrativa ver FERNÁNDEZ RAMOS, Severiano. Transparencia, Accesso a la Información Pública y Buen Gobierno. Madrid: Aranzadi, 2014; MARTINS JÚNIOR, Wallace. Transparência Administrativa. São Paulo: Saraiva, 2004 e HEINEN, Juliano. Comentários à Lei de Acesso à Informação. Belo Horizonte: Fórum, 2014.

[2] É sempre difícil laborar com conceitos prontos e acabados, sob pena de exatamente esconder aquilo que deve ser desvelado hermeneuticamente. Portanto, devemos vislumbrar nos conceitos indícios formais, como refere Ernildo Stein na obra Pensar é Pensar a Diferença. Filosofia e Conhecimento Empírico. Ijuí: Editora Unijuí, 2002. No Direito os problemas dogmáticos sobre as conceituações e suas abstrações há muito foram denunciados por Lenio Luiz Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito. 11ªed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. De qualquer modo, Lucas Rocha Furtado indica algumas características do fenômeno da corrupção: o ato de corrupção importa abuso de posição; a caracterização de um ato como corrupto requer a violação de um dever previsto em um sistema normativo que sirva de referência; os atos de corrupção estão sempre vinculados à expectativa de obtenção de um benefício “extraposicional” e o sigilo dos negócios envolvendo a corrupção (As Raízes da Corrupção no Brasil. Estudo de Casos e Lições para o Futuro, Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 41).

[3] Sobre o Estado. Cursos no Collège de France (1989-92). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 362.

[4] Sobre o Estado, p. 362.

[5] Sobre o Estado, p. 377.

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. Cursos no Collège de France (1989-92). São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Ernildo Stein na obra Pensar é Pensar a Diferença. Filosofia e Conhecimento Empírico. Ijuí: Editora Unijuí, 2002.

FERNÁNDEZ RAMOS, Severiano. Transparencia, Accesso a la Información Pública y Buen Gobierno. Madrid: Aranzadi, 2014.

FURTADO, Lucas Rocha. As Raízes da Corrupção no Brasil. Estudo de Casos e Lições para o Futuro, Belo Horizonte: Fórum, 2015.

HEINEN, Juliano. Comentários à Lei de Acesso à Informação. Belo Horizonte: Fórum, 2014.

MARTINS JÚNIOR, Wallace. Transparência Administrativa. São Paulo: Saraiva, 2004.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. São Paulo: Saraiva, 2012.

STRECK, Lenio Luiz., Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito. 11ªed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.


 

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