Coluna Por Supuesto
Não há como desvincular a análise das políticas de segurança pública com o estudo sobre a própria razão de ser do Direito e as características do regime político que se pretende edificar em uma sociedade.
De fato, nada ocasionaria maior felicidade coletiva que o retrato jornalístico da efetividade dos direitos fundamentais, ou que, pelo menos, os veículos de comunicação expuseram formas alvissareiras de enfrentar sua precariedade ou inexistência. Nos últimos dias a Operação Escudo no Estado de São Paulo, especificamente no Guarujá, domina o cenário noticioso, incrementando a ideia de que os temas e as políticas em matéria criminal são parte quase que “natural” do ritmo da vida social.
O que mais destaca é que o castigo letal e a punição fatal se impõem como as formas mais aplicadas de estabelecer a ordem. O sesgo de classe se torna evidente quando o estudo dos aspectos punitivos demonstra que os aparelhos estatais seguem rigorosamente a agenda de criminalizar setores da população mais vulnerável e as operações de limpeza social seguem seu curso ante a mirada incrédula de alguns, a tristeza de outros e a impunidade daqueles que incluso, dizem agir com razão porque “esse deve ser o método para conter a criminalidade”.
Porém, ao tempo em que se lê sobre o tema também se noticia que a bancada que tem o nome simbólico de “bancada da bala”, unida à bancada “ruralista”, se unificam para derrubar parte do decreto presidencial que reverte a política de flexibilização de uso e porte de armas.
Pois bem, se falamos de Direito e seu sentido axiológico e teleológico, um dos argumentos sedimentados para demonstrar sua legitimidade consiste na sua proposta implícita de reduzir em grau máximo a violência como mecanismo de solução de conflitos. É dizer que como ordenação normativa da realidade o Direito supõe trabalhar para a conquista de cenários de diálogo, de soluções políticas, concertadas, para os conflitos existentes e persistentes na vida social. Esta não é uma questão teórica, implica, desde logo, tomar medidas para que a sociedade não se torne um faroeste onde impera a lei do mais forte, regularmente assegurada pelo uso e porte de armas, como se costuma assistir nos filmes clássicos de bangbang. Obviamente, esta finalidade, que faz parte da própria razão de ser do Direito, está diretamente atrelada à defesa da vida, da paz e da segurança de qualquer comunidade organizada politicamente.
E se falamos de regime político, sempre me pareceu adequado no terreno da criminologia crítica a reflexão de D. Garland, quando inteligentemente relaciona o pensamento de Friedrich Nietzsche e Émile Durkheim, para concluir que compartilham a ideia, embora sejam pensadores tão diferentes, de que os regimes politicamente fortes não têm a menor necessidade de apoiar-se em sanções especialmente punitivas. A repressão pode ser tida como um símbolo de força, mas ela também pode ser interpretada como o sintoma da ausência de autoridade e como repressão inadequada. Um sinal de fraqueza do próprio Estado.
Já temos afirmado, concordando com vários autores latino-americanos, que as constituições da região, em particular a Constituição Federal de 1988, convocam a um projeto de vida para a comunidade política, arquitetado a partir do postulado da dignidade humana. E que concretizar o conteúdo jurídico da dignidade não se dilui em posturas contemplativas, senão que implica ações dirigidas desde o Estado para satisfazer uma expectativa de direitos dos quais a maior camada das populações ou não tem notícia ou nunca desfrutou. É dizer, com clareza, no Brasil reconhecer e trabalhar para a dignidade supõe práticas desde a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, para satisfazer direitos. E é uma exigência jurídica e política inescusável que o Poder Público, distribuído nas suas três vertentes, se preocupe e, desde logo, se ocupe, com a satisfação desses direitos.
Tanto por uma com por outra razão, as medidas tomadas pelo Governo Federal no Brasil parecem bastante plausíveis, especialmente porque fazem parte de um Programa de Ação na Segurança – PAS – que amplia investimentos redirecionando o gasto público para medidas urgentes de combate à criminalidade, mas distinguindo entre o crime organizado, com altos graus de sofisticação, e a violência comum, ou como preferem alguns o “crime desorganizado”, frequente e de intensidade variável especialmente nas grandes urbes do país. O PAS, é claro, deve fortalecer as diretrizes jurídico-penais constitucionalmente postas, construindo opções para poder enfrentar com eficiência e resultados o desafio da insegurança.
Não se nega a necessidade de operações de combate à criminalidade. Porém, se tomamos a segurança pública como um direito fundamental, há aqui um dever do Estado que inclui graus de coação nos quais a tortura e o tratamento degradante não estão em modo algum autorizadas. Por outro lado, há um sentido preventivo que é esquecido, inconsciente ou propositalmente, no tratamento do problema. É dizer, a equação hermenêutica com relação ao conteúdo da segurança pública como direito social fundamental não se equilibra entre prevenção e coação, senão que pende a um lado, perigosa e irresponsavelmente.
Na precariedade e na crise de um sistema que aumentou consideravelmente a desigualdade e fez retornar o país ao mapa da fome e a insegurança alimentar - conforme os dados da FAO no 2022- as considerações sobre redução de garantias penais, sistema penitenciário de dureza e sem chances de reabilitação, supressão injustificada e antecipadas das liberdades, tomaram as ruas. No contexto brasileiro, no meio de uma sensação de insegurança ocasionada por vários fatores, dentre eles a pobreza, o abandono, a ausência de políticas claras perante o tema da dependência química, as opiniões comuns de “bandido bom é bandido morto” ou “tem que matar mesmo”, se disseminaram sob a tutela (nem sequer a orientação, que seria um termo bem suave), do próprio ex-executivo federal. A militarização do Estado e da vida social vieram juntas, aliadas a decretos de flexibilização de uso e porte de armas, dentro de uma mesma concepção, que se espalha em membros das polícias, agentes de segurança e em geral, para agravar a situação, em todos aqueles reféns do ambiente de desespero, pessoas desencantadas pelo fracasso das políticas estatais.
A desmilitarização do entorno social é essencial e por isso a razoabilidade do Decreto 11.615 de 21 de julho de 2023 que, dentre outras medidas, reduz a quantidade de armas e munições acessíveis a civis de 4 para 2, reduzindo também, sensivelmente, de 30 para 6 armas as de caçadores e de 5 para 1 as permissões para colecionadores. O Decreto retoma os parâmetros de 2018 e proíbe o uso por civis de armas curtas. Assim, pistolas 9 mm, 40 e 45 ACP, voltam a ser de uso restrito.
Em nosso juízo, outro aspecto relevante, que temos observado na América Latina em seu conjunto e não só no Brasil, consiste em desconfigurar a ideia de que as forças armadas podem ser, com tranquilidade e sem muitas formalidades, recurso estatal para o combate à violência doméstica. Essa visão tem como génese a ideia estapafúrdia de que na democracia às forças armadas cabe o “poder moderador”. A tese está emparentada à tese do “vazio de poder” que justificou os golpes militares de décadas infelizes no cenário latino-americano foi sustentada no Brasil recente.
Vale uma leitura, en pasant, ao Capítulo V da Lei Complementar 97 de 9 de junho de 1999, que em seu artigo 15 contêm vários parágrafos que entram nesse debate. Vejam-se, os parágrafos 2º a 6º:
§ 2oA atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no artigo 144 da CF ; § 3oConsideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da CF quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional; § 4o Na hipótese de emprego nas condições previstas no § 3o deste artigo, após mensagem do Presidente da República, serão ativados os órgãos operacionais das Forças Armadas, que desenvolverão, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem; § 5o Determinado o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, caberá à autoridade competente, mediante ato formal, transferir o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações para a autoridade encarregada das operações, a qual deverá constituir um centro de coordenação de operações, composto por representantes dos órgãos públicos sob seu controle operacional ou com interesses afins. ; § 6o Considera-se controle operacional, para fins de aplicação desta Lei Complementar, o poder conferido à autoridade encarregada das operações, para atribuir e coordenar missões ou tarefas específicas a serem desempenhadas por efetivos dos órgãos de segurança pública, obedecidas as suas competências constitucionais ou legais.
A norma da lei complementar deve ser dirigida a situações de extrema gravidade, relacionadas com a segurança do Estado e que não podem ser banalizadas, isto é, precisam de um juízo criterioso de razoabilidade e responsabilidade.
O tema em geral é complexo, se relaciona com a necessidade de reduzir a letalidade policial e os padrões de violência nas operações. Está ligado ao acompanhamento das instituições como o Ministério Público, os Conselhos de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, a própria OAB, que realizam formal ou informalmente um sistema de controle constitucional e social de arraigo na Constituição, para aprimorar um severo sistema que verifique os excessos tão comuns dos agentes da segurança pública. Nessa visão é lamentável a desqualificação de membros do Executivo estadual dos reclamos com relação aos excessos policiais na Operação Escudo, como se estas fossem histórias de quadrinhos que não pudessem ter nenhum lastro na realidade, ou pior ainda, normalizar, numa visão de “amigos e inimigos” os excessos sob a ideia de que se trata de “danos colaterais”. Esta atitude, especialmente se emana de quem como autoridade estadual comanda as policias, é contraria ao Direito e reforça a ideia da não existência de limites, uma atitude frágil, de fraqueza do Poder Público, porque não há outra proposta senão dizer: não vamos nos curvar. A questão é bem mais de fundo, é de direitos, de inteligência, de política adequada. Em São Paulo, nesse ponto, parece haver uma lógica bem próxima à do governo federal anterior. Lamentável, por supuesto.
Imagem Ilustrativa do Post: 20140506 // Foto de: Miguel Pérez// Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/116158297@N06/14146447415
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode