Desejo justificado

27/10/2022

– Desejos... Essa loucura que nos habita. Difícil dizer a seu respeito.

– São o impulso mais importante da vida, o apanágio da condição de humano.

– Incontroláveis!

– Tento direcioná-los.

– Direcionar desejos? Diz mais...

– Brincar, rsrs... Se me nasce um desejo, quero experimentá-lo, é bom prolongá-lo; não tenho ânsia de realizá-lo logo, algo assim...

– Concedes realização aos teus desejos?

– Se há ciúmes no ar, rsrs...  Alguns não dá... Mas tu não achas que o ciúme seja uma coisa real, não é? O ciúme é menos por fatos e mais por imaginação...

– Por fato ou por imaginação, é bem real, mas é coisa doentia, possessiva. Algo como falta de consideração para consigo... Indignidade!

– Se é real, quer espaço.

– Pois que se o sinta, mas que se o contenha.  Não me seria lícito fazer alguém de objeto do meu ciúme.

– Mas objeto de ciúme se confunde com objeto de amor, rsrs...

– Ah!, não... Não me sinto amado por alguém que quer tomar posse ciumenta de mim. Quero ser sempre seduzido, nunca possuído.

– Esse teu grito de independência, rsrs... Alguém vai escutá-lo?

– Ris? Pois é, vives na beira dessa trivial tentação.

– Eu sei... Mas não caio nela.

– Olha, essa tua carência de amor “protetivo”...

– A sensação de acolhimento, aconchego, isso não é algo real?

– Não vivo sem. Mas não a teria como moeda de pagamento. Então eu me dou em tua coisa possuída e tu, em troca, me proporcionas carinhosos cuidados? Uma barganha afetiva?

– Nossa liberdade real é apenas pensamento.

– Seja, mas, se ages em contramão do teu pensamento, trais a tua liberdade.

– Por isso há quem leve uma vida particular, paralela? Isso é autêntico?

– É um trambique com o mundo. Temos que fazer concessões... Temos que dar atendimento aos desejos que nos acontecem. Mas, aí, já não há cumplicidade, troca-se de problema, só.

– Talvez caiba essa dimensão reservada da vida. O mundo me cobra aparências, eu me devo meus prazeres. Então, serão duas: uma vida incompleta para mim, uma vida cínica para o mundo.

– Existem desejos e desejos. Eu pensava no desejo por alguém...

– Também... Um alguém também é mundo. Mas, enfim, o que forma os nossos desejos?

– Aí, cada qual... Só com psicanálise, não?

– O que justifica o teu desejo?

– E crês que seja justificável? O desejo acontece, não dá satisfações a nada e quer ser saciado. Ponto. Digamos que não apresenta causa e quer efeito.

– Não se justificaria e justificaria tudo?

– Engendramentos da vida. Eu quase diria: o desejo somos nós; se nos negamos ao desejo, nos negamos a nossa existência.

– Eu careço das justificativas. Não haveria nada de concebido nos desejos? Quero dizer: meus desejos se põem mesmo à minha revelia?

– São coisas lá do não sabido em nós, não sei se posso dizer coisas do inconsciente. Não creio que as possamos dissecar, explicar...

– Deve haver algo que lhes dê causa.

– Deve, daí perscrutar... Arqueologia analítica, talvez... Creio que seria uma construção explicativa, não uma explicação... Não sei...

          – Pois que seja. Senão... Que liberdade há em se fazer algo alienadamente? Não há que interrogar? A liberdade, aí, não está em questão? A liberdade não pressupõe escolha?

– Está, tu pões a liberdade magnificamente em questão. Essa liberdade de escolha que é condição de humanidade, diante do desejo periclita.

– Então... Não há liberdade diante do desejo?

– Talvez alguma, mas não muita. Seria uma repressão do desejo, não uma liberdade de não desejar. O desejo acontece, quando muito se consegue alguma repressão...

– Sim, desejos têm mesmo vida própria, mas concordas que não os questionar é deixar-se governar por algo que se desconhece?

– Isso é profundo. Sim, claro, há que os questionar, mas também se há de procurar entendê-los, ou atendê-los, só. Quero me saber, mas não conspirar contra mim com desculpas repressoras dos meus desejos.

– Acho que tu me queres, rsrs...

– Quero, sim.

– Olha, desculpas facilitadoras são as tuas, para atender teus desejos não sabidos. Não desisto de saber o que me move e até me justifica.

– Justifica ou explica?

– Justifica, mesmo. E não te impressiones se eu já não fizer parte desse teu desejo.

– Não entendi.

– Não sei... Eu me sinto uma ideia tua e não um desejo.

– E como alguém seria, para outra pessoa, algo que não fosse uma ideação? Qualquer pessoa é sempre uma imaginação. Olha, até nós somos imaginação nossa.

– A ideia que tu fazes de mim te causou desejo?

– Sim, e essa ideia não é uma invenção; são todas as coisas que me vieram de ti. Não te desenhei do nada, mas dos afetos da nossa convivência.

– Acho que compreendi.

– Eu faço uma ideia de ti pelos teus dizeres, fazeres, pelo que me fazes sentir. É um monte de sentimentos, o que te dá forma em mim.

– Então... no que te vai de mim me reconheces, ou reconheces o que desejas em mim. E te reconheces em mim?

– Sim... Eu me vejo em teus desejos, então eu me vejo em ti.

– Desejar também é querer possuir.

– Não acho assim... Possuir é excluir outras possibilidades tuas, é controlar teus desejos.

– Coerente: se negas ciúmes, não podes admitir posse.

– É o inverso: se não quero posse, refuto ciúme.

– Está... Mas, não importa, ou não é o mais importante. Sabes? Algo que justifica o meu desejo é o teu desejo.

– O desejo de se saber desejada?

– Ser desejada é algo que me justifica o gozo de desejar, então, dou-me em desejo e dispenso causa e explicação.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Couple // Foto de: Wyatt Fisher // Sem alterações

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