– Desejos... Essa loucura que nos habita. Difícil dizer a seu respeito.
– São o impulso mais importante da vida, o apanágio da condição de humano.
– Incontroláveis!
– Tento direcioná-los.
– Direcionar desejos? Diz mais...
– Brincar, rsrs... Se me nasce um desejo, quero experimentá-lo, é bom prolongá-lo; não tenho ânsia de realizá-lo logo, algo assim...
– Concedes realização aos teus desejos?
– Se há ciúmes no ar, rsrs... Alguns não dá... Mas tu não achas que o ciúme seja uma coisa real, não é? O ciúme é menos por fatos e mais por imaginação...
– Por fato ou por imaginação, é bem real, mas é coisa doentia, possessiva. Algo como falta de consideração para consigo... Indignidade!
– Se é real, quer espaço.
– Pois que se o sinta, mas que se o contenha. Não me seria lícito fazer alguém de objeto do meu ciúme.
– Mas objeto de ciúme se confunde com objeto de amor, rsrs...
– Ah!, não... Não me sinto amado por alguém que quer tomar posse ciumenta de mim. Quero ser sempre seduzido, nunca possuído.
– Esse teu grito de independência, rsrs... Alguém vai escutá-lo?
– Ris? Pois é, vives na beira dessa trivial tentação.
– Eu sei... Mas não caio nela.
– Olha, essa tua carência de amor “protetivo”...
– A sensação de acolhimento, aconchego, isso não é algo real?
– Não vivo sem. Mas não a teria como moeda de pagamento. Então eu me dou em tua coisa possuída e tu, em troca, me proporcionas carinhosos cuidados? Uma barganha afetiva?
– Nossa liberdade real é apenas pensamento.
– Seja, mas, se ages em contramão do teu pensamento, trais a tua liberdade.
– Por isso há quem leve uma vida particular, paralela? Isso é autêntico?
– É um trambique com o mundo. Temos que fazer concessões... Temos que dar atendimento aos desejos que nos acontecem. Mas, aí, já não há cumplicidade, troca-se de problema, só.
– Talvez caiba essa dimensão reservada da vida. O mundo me cobra aparências, eu me devo meus prazeres. Então, serão duas: uma vida incompleta para mim, uma vida cínica para o mundo.
– Existem desejos e desejos. Eu pensava no desejo por alguém...
– Também... Um alguém também é mundo. Mas, enfim, o que forma os nossos desejos?
– Aí, cada qual... Só com psicanálise, não?
– O que justifica o teu desejo?
– E crês que seja justificável? O desejo acontece, não dá satisfações a nada e quer ser saciado. Ponto. Digamos que não apresenta causa e quer efeito.
– Não se justificaria e justificaria tudo?
– Engendramentos da vida. Eu quase diria: o desejo somos nós; se nos negamos ao desejo, nos negamos a nossa existência.
– Eu careço das justificativas. Não haveria nada de concebido nos desejos? Quero dizer: meus desejos se põem mesmo à minha revelia?
– São coisas lá do não sabido em nós, não sei se posso dizer coisas do inconsciente. Não creio que as possamos dissecar, explicar...
– Deve haver algo que lhes dê causa.
– Deve, daí perscrutar... Arqueologia analítica, talvez... Creio que seria uma construção explicativa, não uma explicação... Não sei...
– Pois que seja. Senão... Que liberdade há em se fazer algo alienadamente? Não há que interrogar? A liberdade, aí, não está em questão? A liberdade não pressupõe escolha?
– Está, tu pões a liberdade magnificamente em questão. Essa liberdade de escolha que é condição de humanidade, diante do desejo periclita.
– Então... Não há liberdade diante do desejo?
– Talvez alguma, mas não muita. Seria uma repressão do desejo, não uma liberdade de não desejar. O desejo acontece, quando muito se consegue alguma repressão...
– Sim, desejos têm mesmo vida própria, mas concordas que não os questionar é deixar-se governar por algo que se desconhece?
– Isso é profundo. Sim, claro, há que os questionar, mas também se há de procurar entendê-los, ou atendê-los, só. Quero me saber, mas não conspirar contra mim com desculpas repressoras dos meus desejos.
– Acho que tu me queres, rsrs...
– Quero, sim.
– Olha, desculpas facilitadoras são as tuas, para atender teus desejos não sabidos. Não desisto de saber o que me move e até me justifica.
– Justifica ou explica?
– Justifica, mesmo. E não te impressiones se eu já não fizer parte desse teu desejo.
– Não entendi.
– Não sei... Eu me sinto uma ideia tua e não um desejo.
– E como alguém seria, para outra pessoa, algo que não fosse uma ideação? Qualquer pessoa é sempre uma imaginação. Olha, até nós somos imaginação nossa.
– A ideia que tu fazes de mim te causou desejo?
– Sim, e essa ideia não é uma invenção; são todas as coisas que me vieram de ti. Não te desenhei do nada, mas dos afetos da nossa convivência.
– Acho que compreendi.
– Eu faço uma ideia de ti pelos teus dizeres, fazeres, pelo que me fazes sentir. É um monte de sentimentos, o que te dá forma em mim.
– Então... no que te vai de mim me reconheces, ou reconheces o que desejas em mim. E te reconheces em mim?
– Sim... Eu me vejo em teus desejos, então eu me vejo em ti.
– Desejar também é querer possuir.
– Não acho assim... Possuir é excluir outras possibilidades tuas, é controlar teus desejos.
– Coerente: se negas ciúmes, não podes admitir posse.
– É o inverso: se não quero posse, refuto ciúme.
– Está... Mas, não importa, ou não é o mais importante. Sabes? Algo que justifica o meu desejo é o teu desejo.
– O desejo de se saber desejada?
– Ser desejada é algo que me justifica o gozo de desejar, então, dou-me em desejo e dispenso causa e explicação.
Imagem Ilustrativa do Post: Couple // Foto de: Wyatt Fisher // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/130461777@N07/16302678259
Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/