Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
“Dia após dia nega-se às crianças o direito de ser crianças.
Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana.
O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua.
O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo.
E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem desde cedo, como destino, a vida prisioneira.
Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças.” (Eduardo Galeano)
Dia após dia nega-se a inúmeras crianças o direito de ser criança, como já advertia Eduardo Galeano (2011), autor da reflexão que “abre as portas” deste texto. Vez após vez, assistimos à ofensa aos direitos e à dignidade dos mais vulneráveis, enfaticamente daqueles que estão se desenvolvendo nos aspectos físico, mental, emocional e cognitivo.
Com foco para a realidade brasileira, tamanhas são as violações de direitos e as disparidades de condições, que se pode “escantear” uma perspectiva universalizante sobre a população infantoadolescente e, em seu lugar, adotar lentes do “pluriverso” das infâncias e adolescências. A pluralidade decorre, nesta reflexão, das desigualdades e da pobreza, as quais conformam distâncias abissais entre pessoas e grupos, bem como obstáculos no acesso a direitos e a viver com dignidade.
Ultrapassando uma percepção bastante generalizada, é preciso considerar que a pobreza possui muitas dimensões e tem seu sentido para além da renda, como já consideraram alguns economistas, a exemplo de Amartya Sen (2000). Por isso mesmo que acertado analisá-la sob um enfoque multidimensional, em consonância com o fato de que os rendimentos, sozinhos, não são suficientes para capturar a performance e os efeitos daquela. O exame mais abrangente da pobreza permite evidenciar a relação íntima com outros fatores e enquanto fenômeno vinculado à privação múltipla de direitos, ainda mais de crianças e adolescentes, destinatários de uma proteção que também tem várias facetas (porque integral). Pobreza, nesse sentido, é relacionada com privação de liberdades e de direitos.
O exame da história da infância e da sua inserção no cenário jurídico aponta para marcas da pobreza, do controle, do trabalho e da objetificação. No tempo presente, contudo, alguns acontecimentos ainda se repetem. Seriam tais eventos inter-relacionados, movidos por algum fator em comum? A investigação do desenvolvimento histórico dos direitos da criança e do adolescente no Brasil revela, a par do contexto social, o quão tenro é falar sobre direitos, efetivamente, desses grupos etários, sendo ainda mais jovial tratar da ideia de sujeitos de direitos. Constitucionalmente, é apenas a partir de 1988 que essa concepção integrou o ordenamento jurídico brasileiro.
A proteção jurídica da criança decorre de mudanças significativas na sua visibilidade, compreensão e proteção. Não obstante uma análoga “revolução copernicana” se operou nas doutrinas jurídicas sobre esses segmentos etários, há fenômenos que se apresentam em diversos momentos e espaços no Brasil, a gerar óbices na efetivação dos direitos.
“Visitar o passado” conduz ao entendimento de que o desrespeito à condição infantil e juvenil e de seus direitos consiste em algo sistemático, não isolado, vinculado a questões históricas e estruturais. Ao mesmo tempo, esse exercício de “olhar para trás” permite compreender melhor o tempo presente, fazendo constatar que as ações e as omissões do poder público e da sociedade brasileira em face das infâncias e das adolescências em situação de pobreza possuem uma complexidade e um liame entre diferentes períodos. Esse eixo comum consiste na aporofobia, termo cunhado pela filósofa espanhola Adela Cortina (2017, 2020) a fim de significar o desprezo, a hostilidade, o rechaço, o ódio e a aversão aos pobres e à pobreza.
A partir da aprovação do texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, mudanças radicais foram provocadas no plano jurídico à criança e ao adolescente, com a Doutrina da Proteção Integral, fixando, dentre tantas outras coisas, a responsabilidade de todos na defesa dos seus direitos e também prevendo a sua qualidade como sujeitos de direitos. Contudo, a realidade experimentada por meninas e meninos brasileiros diverge, quando não se contrapõe, a esse reconhecimento.
As violações se desenvolvem por ação e omissão, justamente pelos personagens responsáveis por atender as suas necessidades, o que leva a crer que muitas coisas existem apenas no papel, como já criticava Gilberto Dimenstein (1997). À espera da sua efetivação, encontram-se crianças e adolescentes afastados do gozo de seus direitos mais elementares. Esse contingente à margem do proclamado tem marcador especial de diferença: ele é socioeconômico. A partir disso, mostra-se pertinente questionar: da análise histórica constitucional brasileira, as práticas do Estado e da sociedade revelam a presença de aporofobia contra crianças e adolescentes pobres?
Essa mesma pergunta se constituiu em uma mola propulsora da dissertação intitulada “Se a vida imita a arte, a dignidade foi retratada pela metade: a privação de direitos humanos e de justiça social à população infantoadolescente no Brasil”. Com efeito, o estudo nasceu com o entendimento de que as relações sociais e as normas editadas pelo Estado brasileiro, inicialmente, não conferiram visibilidade e proteção jurídica efetiva à criança. Quando da positivação, fomentou práticas discriminatórias em face das crianças e dos adolescentes em situação de pobreza, e, ao prever direitos, revelou uma debilidade moral, isto é, uma dissociação entre o plano prático e o teórico (CORTINA, 2020), a sugerir, no mínimo, que Estado e sociedade têm como naturalizada a privação de direitos infantoadolescentes.
Partiu-se provisoriamente da crença na existência de um tratamento discriminatório em face desses grupos etários durante a história, sobretudo em face daquelas em situação de pobreza, mas sem os aportes suficientes para determinar a existência ou não de aporofobia. O exame das fontes, especialmente das Constituições brasileiras (textos de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, a emenda constitucional de 1969 e a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988), contextualizadas com as relações sociais de cada época, permitiu evidenciar, sim, elementos de desprezo em torno da classe, mas também a maciça e constante presença do racismo.
O constitucionalismo brasileiro experimentou sete diferentes Constituições – havendo quem entenda tenham sido oito textos. Ora promulgadas, ora impostas; ora com a tônica autoritária, ora com objetivos democráticos, a história da norma jurídica fundamental expressa o constante pêndulo experimentado pelo Estado brasileiro, apegado a golpes, imposições e arbitrariedades. Consequentemente, crianças e adolescentes não restaram imunes, os quais não só foram atingidos por políticas antidemocráticas, como tardaram a ser concebidos como pessoas de plenos direitos e destinatárias das garantias constitucionais; tardaram a ser juridicamente reconhecidos como seres humanos.
O ditado popular de que “a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco” não é diferente aqui. Crianças e adolescentes são pessoas vulneráveis em diferentes dimensões da palavra, enfaticamente pelo desenvolvimento próprio da idade, pela dificuldade na defesa de seus direitos e pelo não acesso ao poder político e econômico (via de regra). Em tempos de crise, são os mais afetados (SIBIONI, 2018). A história nacional avaliza essas afirmações. Na insurgência dos medos, a criança se tornou alvo de projetos preocupados com a moral, os bons costumes, o melhoramento racial, a segurança e a ordem. Sua primeira veste no plano jurídico foi pela lente de objeto, o que perdurou por longo tempo (PINHEIRO, 2006).
Ao passo que esses segmentos etários são “vistos” pela sociedade e pelo Estado, as primeiras disposições fizeram incidir (sobretudo às crianças e aos adolescentes das classes pobres) o viés penal. Uma ótica repressiva que objetificava a infância pela concepção de controle, da repressão e da disciplina, penalizando comportamentos relacionados aos sem recursos, como a mendicância. Em termos gerais, as primeiras Constituições não tratavam expressamente sobre a criança, podendo vez ou outra aplicar dispositivos genéricos, a exemplo da Constituição de 1824, quanto à instrução primária e gratuita. Contudo, não se tratava de norma aplicável especificamente a crianças e atenta às suas peculiaridades.
A Constituição de 1891 permaneceu silente sobre a questão da infância e da adolescência, justamente em um período no qual o tema se revelaria urgente, por provocação do contexto social e econômico (RIZZINI, 2011). A seguir, a terceira Constituição brasileira (1934) se tornou a primeira a contemplar uma espécie de preocupação do poder público com infantoadolescentes, sendo também a primeira vez que direitos sociais e econômicos foram previstos. Ao mesmo tempo, nela se dispôs um estímulo à educação eugênica, a fim de promover o melhoramento racial, medida que prejudicaria e revelava, por si só, uma profunda discriminação em face de pobres e negros.
Em 1937 e 1946 não se teve consideráveis alterações nesse plano; diversamente em 1967, após um duro Golpe Civil-Militar. Embora a Constituição de 1967 contasse com um catálogo de direitos, ao mesmo tempo permitiu que fossem suspensos. Ainda, reduziu a idade mínima para o trabalho (que era, em geral, de quatorze anos e passou a ser de doze), incidindo especialmente sobre as infâncias e adolescências mais vulneráveis. A criança e o adolescente, nesse período, foram tomados como caso de polícia, de segurança nacional, sem uma preocupação efetiva com a sua proteção, integridade e desenvolvimento.
São Constituições que deixam em suas entrelinhas a ideia de que a criança era um adulto em miniatura, e não uma parcela diferenciada da população. Inserida sob as previsões da família, da educação, do trabalho, não se tratou de nominar crianças e adolescentes como pessoas titulares de direitos, por sua própria pessoa, independentemente de origem, classe, cor. Em mais de 150 anos e nas seis Constituições examinadas, a possibilidade alcançada ao público infantoadolescente se restringiu à qualidade de objeto: de proteção social, de controle e disciplinamento e de repressão social (PINHEIRO, 2006). Efetivamente, essas representações alcançaram diferentes infâncias e adolescências; todavia, sem manejo de dúvida, foram mais incisivas, frequentes e cruéis em face daquelas afetadas pela situação de pobreza.
O marco paradigmático que rompe com essas perspectivas e apto a traçar uma verdadeira ruptura entre o seu “antes e depois” sobreveio com a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Com pretensões sem precedentes na história do constitucionalismo brasileiro, crianças e adolescentes se viram pela primeira vez no cenário nacional como sujeitos de direitos. Esse produto foi resultado das mobilizações da sociedade civil, da própria população infantoadolescente e das articulações na seara internacional (VERONESE, 2021).
A partir disso, toda criança e todo adolescente, sem qualquer discriminação negativa, passaram a ser juridicamente vistos como seres humanos completos, titulares de direitos humanos e fundamentais, somados aos específicos em razão da idade.
No entanto, mesmo havendo, por lei, tratamento universal a todas as crianças e a todos os adolescentes, suas realidades conformam pluriversos de existência e de sobrevivência, sobretudo pelas desigualdades e pela pobreza multidimensional.
Neste novo tempo, os desafios passaram a ser outros. Eles consistem no acesso e no exercício pleno dos direitos que agora são juridicamente reconhecidos e previstos igualmente a todas as crianças e adolescentes. Cuida-se do problema da inefetividade dos direitos, o que conduz à situação de privações, especialmente em relação à educação, à informação, à moradia, ao acesso à água potável, ao saneamento, à renda e à proteção em face do trabalho infantil (UNICEF, 2018). Esse contexto se acentuou com a pandemia de Covid-19, ao inscrever um maior número de infantoadolescentes em situação de pobreza e por revelar um sintoma agudo subjacente à crise: a insegurança alimentar.
Estampa-se sobre as vestes tropicais uma realidade desumana para mais de 60% dos infantoadolescentes brasileiros, porque privados de seus direitos básicos (em um país que concentra mais de 56 milhões de pessoas nessas faixas etárias) (UNICEF, 2018). Considerando a indivisibilidade e a interdependência entre direitos humanos, a violação ou precariedade de um afeta todos os demais, o que significa dizer que o contexto de pobreza pode ser ainda mais abrangente.
As evidências históricas e atuais expressam, respectivamente, a ausência de efetividade na proteção de crianças e adolescente (antes da Doutrina da Proteção Integral), assim como a ausência de efetividade de seus direitos (após a consagração da referida Doutrina), somada à desigualdade social, à pobreza e à violação sistemática da dignidade infantoadolescente. Tal contexto, também corroborado por práticas políticas que ignoram as demandas dos mais pobres, permite identificar um problema de dimensões avantajadas, atinente à discriminação individual, social, institucional. Assim, pode-se falar em uma manifestação aporofóbica do Estado brasileiro, tanto por práticas omissivas quanto por práticas comissivas.
Nessa sociedade baseada pela troca e pela vantagem mútua, crianças e adolescentes são mais afetados. Não isentos de sofrer os efeitos cruéis da pobreza – até mesmo de modo mais intenso –, também sentem as consequências da aporofobia, não raro somada ao racismo, o que impossibilita viver uma vida com dignidade. Ousa-se dizer, inclusive, que estão mais suscetíveis ao desprezo pela condição de pobreza, uma vez que não detêm poder aquisitivo, são os primeiros a ser afetados por crises políticas, econômicas e sociais, bem como constituem um grupo de pessoas que ainda hoje não recebem o respeito que merecem.
Além de um marcador socioeconômico, o resultado da pesquisa que ampara esta curta narrativa aqui empreendida também evidenciou um marcador racial. Crianças negras e indígenas foram e continuam sendo mais violadas e intensamente prejudicadas na falta de efetividade de seus direitos. A título de mero exemplo, acerca da privação de saneamento (a que mais afeta o público infantoadolescente), das crianças e adolescentes prejudicados, 70% são negros(as).
Esta abordagem não escapa de ser incompleta. Ao mesmo tempo, entende-se que cada pesquisa desenvolvida sobre o público infantoadolescente e em compromisso com a sua proteção integral, seja em sede de pós-graduação ou não, enriquece os diálogos e os esforços na efetivação dos seus direitos, contribuindo de alguma forma neste cenário tão cruel e adverso. É o que também se deseja.
Conhecer melhor e questionar o passado das infâncias e adolescências no Brasil, apontado os erros e acertos praticados pela sociedade e pelo Estado, são formas de desempenhar a função de pesquisadoras(es), mas também a de simples pessoas humanas. São maneiras de externalizar afeto a cada uma e a todas elas, indistintamente, exercitando o dever intrinsecamente humano de não aceitar o sofrimento e de não se conformar diante dele. Nesta aldeia em que todos se inserem, cada um é indispensável para a proteção da criança, para contribuir no seu desenvolvimento e para aprender com ela. Até porque uma aldeia inteira se faz necessária para cuidar de uma criança, e uma aldeia inteira se mostra indispensável para repensar suas práticas e comportamentos, não raro aporofóbicos.
Notas e Referências
CORTINA, Adela. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. Tradução de Daniel Febre. São Paulo: Contracorrente, 2020.
CORTINA, Adela. Aporofobia: el rechazo al pobre. Un desafío para la democracia. Barcelona: Paidós, 2017.
DIMENSTEIN, Gilberto. O cidadão de papel: a infância, a adolescência e os Direitos Humanos no Brasil. 13. ed. São Paulo: Ática, 1997.
GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo às avessas. Tradução de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM Editores, 2011.
PINHEIRO, Ângela de Alencar Araripe. Criança e adolescente no Brasil: porque o abismo entre a lei e a realidade. Fortaleza: Editora UFC, 2006.
RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SIBIONI, Roque Luiz. Políticas públicas para as juventudes no Brasil e vulnerabilidade juvenil à violência. Revista de Ciências da Educação, Americana, ano XXI, n. 43, p. 201-225, jan./jun. 2019.
UNICEF. Pobreza na infância e na adolescência. [Brasília]: Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2018. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/media/156/file/Pobreza_na_Infancia_e_na_Adolescencia.pdf. Acesso em: 27 ago. 2019.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Das sombras à luz: o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021
[1] O presente texto é uma breve síntese da pesquisa desenvolvida e defendida no ano de 2022, no âmbito do curso de Mestrado em Direitos Humanos do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí (Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul). A dissertação – intitulada de “Se a vida imita a arte, a dignidade foi retratada pela metade: a privação de direitos humanos e de justiça social à população infantoadolescente no Brasil” – contou com o apoio da Capes, através da bolsa Prosuc, e pode ser acessada, na íntegra, junto ao repositório institucional da Universidade e do PPGD (https://www.unijui.edu.br/estude/mestrado-e-doutorado/direitos-humanos). Nossa contribuição científica consistiu em apurar as violações de direitos e da dignidade de crianças e adolescentes no Brasil como um fato complexo e relacionado a causas históricas, atinente ao comportamento aporofóbico.
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