Por Élida Lauris e Denise Dora - 19/09/2016
A superexposição da justiça e do trabalho de suas e seus profissionais não é uma novidade ou, pelo menos, não é uma novidade recente. Já estamos acostumadas e acostumados a ver nos noticiários resultados de ações e decisões judiciais, entrevistas, comentários e esclarecimentos de especialistas do direito e, contudo, quando uma coletiva de imprensa, convocada para anunciar a denúncia de um crime, alegadamente cometido pelo ex-presidente da República, pára o país, não deixa de ser surpreendente.
Se extrairmos as observações mais óbvias já discutidas acerca deste evento – o fato de uma peça que apenas inicia um processo penal merecer tanta atenção midiática e a politização natural deste processo pelas partes que o constituem e pelos interesses que levanta -, é interessante analisá-lo enquanto momento escolhido para a prestação de contas pública do andamento de um megaprocesso, a operação lava-jato.
É curioso notar um sistema de justiça de portas abertas face à midiatização dos grandes casos de corrupção, inclusive revelando o irrevelável, se levarmos em conta os vazamentos ilegais. É claro que a midiatização da justiça é menos uma escolha e mais uma imposição da realidade nos casos dos grandes processos e, sobretudo, nos casos de corrupção. Contudo, ela revela que, diante de um cenário de pressão social sobre o judiciário, há um processo de escolha sobre quem são os interlocutores, quais são as medidas de transparência adotadas e quais os canais de diálogo sobre os quais se lança mão.
Considerando que a corrupção é apenas um dos muitos conflitos estruturais com que co-existimos no Brasil; considerando que um país de disparidades como o nosso tem muito bem demarcados quem faz parte dos círculos exteriores e dos círculos interiores de relacionamento com a justiça, o que o atual cenário de imperiosa discussão sobre a legalidade democrática no Brasil revela é a necessidade de falarmos sobre democratização da justiça.
Pretendemos dedicar este artigo ao que vamos denominar democratização da justiça de baixo para cima, isto é, a participação em diferentes momentos – da formulação da política institucional à formação do convencimento nas decisões judiciais – daquelas e daqueles a quem estão normalmente dedicadas as funções de controle social e criminalização pela justiça. A democratização de baixo para cima da justiça tem se manifestado ainda esparsamente como processos de experimentação social que têm sido levados a cabo sobretudo nas Defensorias Públicas. Defendemos que estes processos podem contribuir para a transformação estrutural do modo de funcionamento das instituições do sistema de justiça em seis dimensões fundamentais.
1. Institucional
As experiências de democratização a que nos remetemos tem como pressuposto alterações na arquitetura institucional das instituições e nos seus círculos internos auto-referenciados de funcionamento. Um bom exemplo é a criação das ouvidorias externas nas Defensorias Públicas, bem como da realização de conferência públicas para a realização do plano anual da instituição.
2. Profissional
Falar de democratização da justiça, implica consolidar caminhos internos na instituição que expressem a opção por um judiciário democrático. Tal reconhecimento implica a necessidade de se apostar num profissionalismo da participação nas instituições judiciais, desde às práticas de atendimento das diversas demandas até ao reconhecimento do conflito jurídico como parte de um conflito social maior. Neste sentido, a unidisciplinariedade da profissão jurídica não serve aos propósitos de uma justiça democrática, enquanto conflitos sociais, os conflitos jurídicos são multidimensionais e apontam para a necessidade de uma atuação multidisciplinar.
3. Epistemológica
Num contexto de democratização, o sistema de justiça dirige-se ao reconhecimento de uma multiplicidade de sujeitos de direitos e de conhecimento. O conhecimento do direito necessita assim de complementação pelo conhecimento dos processos de violação dos direitos, apontando para uma educação para os direitos de co-aprendizagem entre profissionais do direito e sujeitos da violação de direitos. No mesmo sentido o reconhecimento de direitos deve ser rematado pelo reconhecimento de sujeitos concretos, o que reforça o papel de políticas de ação afirmativa nos concursos para as instituições do sistema, bem como da necessidade de se adotar a perspectiva de gênero na sua gestão.
4. Metodológico
Como fartamente discutido esta semana, o processo de convencimento perante uma questão jurídica é também político. Político aqui num sentido de reconhecimento das implicações e clivagens sociais subjacentes ao conflito. Nesse sentido, o processo de convencimento da decisões judiciais embora aponte para um ator final não pode abafar a voz de uma polifonia de atores implicados em uma única sentença. Metodologias de audiências públicas e amicus curiae exercitadas pelo Supremo Tribunal Federal tem apontado para um caminho de composição democrática dos conflitos judiciais que é inescapável em conflitos sociais de largo espectro, como conflitos de posse e propriedade urbana e conflitos fundiários.
5. Reformas da justiça
O que conta e, sobretudo, quem conta no momento de propositura de legislação relativa à reforma do judiciário? Quais os critérios utilizados na proposição de reformas de aperfeiçoamento e apetrechamento das instituições do sistema? Quem propõe e quem valida o acerto desses critérios? Não há dúvida acerca da necessidade de constante aperfeiçoamento do sistema de justiça, como também não há questões acerca do lobby corporativo e dos princípios de racionalidade economicista que geralmente orientam o debate de reforma da justiça. A questão que se coloca é quais os canais de diálogo e levantamento de demandas que fazem com que estas propostas estejam orientadas e em conexão com as necessidades da população carente de justiça e do melhor funcionamento do sistema?
6. Financeiro
O maior benefício do processo de mediatização da corrupção enquanto problema social no Brasil é o alerta geral que tem sido lançado acerca da questão da cautela no que toca ao uso do dinheiro na política. É certo que essa premissa também se estende às instituições do sistema de justiça, mas, o chamado por democratização do sistema, amplia esta questão para indagar acerca da existência de práticas participativas e práticas de controle social no que toca à elaboração e execução do orçamento das instituições de administração da justiça.
Em última instância, o chamado de democratização da justiça que defendemos neste texto busca revisitar o sentido das reivindicações por ampliação do acesso à justiça, propondo um aprofundamento de oportunidades que impliquem numa transformação dupla, tanto o tipo de acesso quanto o tipo de justiça dele resultante.
. . Élida Lauris é Pós-doutora pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Doutora em Pós-colonialismos e Cidadania Global pela mesma Universidade. . .
. . Denise Dora é Ouvidora-Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul e mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela University of Essex. . .
Imagem Ilustrativa do Post: Justice is Blind Statue Bexar County Courthouse Fountain // Foto de: Nan Palmero // Sem alterações
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