Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 19/06/2015
“Quanto mais sejam os conflitos que uma sociedade atribua para seu sistema penal, maior será a incapacidade para resolvê-los, ao mesmo tempo em que revelará seu grau de desintegração comunitária” Eugênio Raúl Zaffaroni
“O álcool mata bancado pelo código penal Onde quem fuma maconha é que é marginal
E por que não legalizar ? e por que não legalizar ? Estão ganhando dinheiro e vendo o povo se matar Tendo que viver escondido no submundo Tratado como pilantra, safado, vagabundo Por fumar uma erva fumada em todo mundo É mais que seguro proibir que é um absurdo Aí provoca um tráfico que te mata em um segundo...” Planet Hemp
Há cerca de duas dezenas de anos venho sustentando a necessidade de mudarmos o rumo em relação ao tratamento dado à questão das drogas. Agora, na iminência do STF (Supremo Tribunal Federal) julgar em recurso extraordinário (RE 635.659) a “inconstitucionalidade” do artigo 28 da Lei 11.343, de 2006 (Lei Antidrogas), vejo, uma vez mais, como necessário destacarmos determinadas questões.
A partir da década de 70 a “guerra às drogas” declarada pelos Estados Unidos priorizou medidas repressoras e punitivistas que culminaram na criminalização do uso de drogas e na exacerbação das penas do tráfico e dos crimes a ele conexos. A política americana influenciou países latino-americanos como o Brasil, que a exemplo dos EUA, vem ao longo dos anos punindo usuários e traficantes de forma sistemática e indiscriminada.
É incontestável que as medidas repressoras adotadas até então pelos Estados Unidos da América e por todos os países subordinados à política americana de combate às drogas não surtiram o efeito desejado. Penas elevadas, prisões de usuários, regime fechado de cumprimento de pena para os condenados por tráfico, fim da liberdade provisória, confisco de bens, uso das forças armadas (em alguns países estrangeiros), ocupação de favelas pela polícia e, até mesmo, pelo exército, e outras tantas providências que levaram em consideração apenas o maior rigor das leis e o caminho muitas vezes cego da repressão que de nada adiantaram.
Como bem salienta Vera Malaguti Batista[1] “O problema da droga está situado no nível econômico e ideológico. Com a transnacionalização da economia e sua nova divisão do trabalho, materializam-se novas formas de controle nacional e internacional. Foi criado todo um sistema jurídico-penal com a finalidade de criminalizar e penalizar determinadas drogas. O sistema neoliberal produz uma visão esquizofrênica das drogas, especialmente a cocaína: por um lado, estimula a produção, comercialização e circulação da droga, que tem alta rentabilidade no mercado internacional, e por outro lado constrói um arsenal jurídico e ideológico de demonização e criminalização desta mercadoria tão cara à nova ordem econômica”.
No Brasil o número de presos condenados por tráfico vem aumentando desproporcionalmente. Enquanto o número de presos condenados por tráfico de drogas cresceu 30% em dois anos, passando de 106.491 em 2010 para 138.198 em 2012, no mesmo período, o número de presos em geral aumentou 10%, passando de 496.251 para 548.003. Segundo levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), concluído em dezembro de 2012, os 138.198 presos por tráfico de drogas no país representavam um quarto de todo o contingente carcerário. Hoje, a população carcerária brasileira ultrapassa a cifra de 715.000 presos, contando os que estão em prisão domiciliar. É a terceira maior população carcerária do mundo. Uma proporção de 358 pessoas presas para cada 100 mil habitantes. De acordo com o Mapa do Encarceramento (divulgado no último dia 3 de junho) os crimes contra patrimônio e de drogas respondem por cerca de 70% das causas das prisões.
Contudo, é necessário destacar que o que é considerado tráfico para alguns, no caso dos mais vulneráveis e etiquetados pelo sistema penal, para outros é considerado porte de drogas. O sistema penal é seletivo. Como bem destacou a autora da pesquisa (Mapa do Encarceramento) Jacqueline Sinhoretto, “há uma aplicação desigual das regras e procedimentos judiciais”. Assim, por exemplo, no momento em que o policial escolhe quem deve ou não revistar. Ou a maneira de tratar uma pessoa flagrada portando uma determinada quantidade de entorpecentes. "A quantia pode ser a mesma. Determinadas pessoas podem ser acusadas por porte e outras, por tráfico", disse a pesquisadora.
Importante observar que a grande maioria destes condenados por “tráfico” são na verdade usuários ou fazem do comércio um meio para manter seu vício. O problema se agrava pelo fato da lei ser genérica, o que fere o princípio da taxatividade dos tipos penais e, ainda, por não diferenciar claramente o traficande do usuário ou de tratar com o mesmo rigor, pena mínima de 5 anos, pessoas que se encontram em escalas e situações distintas.
A criminalização com a consequente punição do usuário afronta princípios fundamentais do direito penal. Entre os quais destaca-se: i.O princípio da lesividade, segundo o qual ninguém poderá ser punido por conduta que não lesione direitos de terceiros e que não exceda o âmbito do próprio autor (vale lembrar que o direito penal não pune a autolesão); ii. O princípio da subsidiariedade, que dispõe ser desnecessário recorrer ao direito penal quando a conduta seria melhor tratada em outro ramo do direito, menos danoso ao individuo e com um custo social menor. A lei penal somente deve ser utilizado como remédio sancionador extremo, como ultima ratio; iii. O princípio da proporcionalidade da pena em relação à gravidade do “dano” causado pelo delito. A pena, principalmente em relação aquele que se situa na zona cinzenta entre o “tráfico” e o “uso”, e que dependo do seu status social será tratado como traficante ou usuário, é extremamente elevada e desproporcional.
O “custo-benefício”, para usar um termo que se popularizou, da criminalização do uso é alto, ou seja, traz muito mais custos e, digo, nenhum benefício. A proibição do uso de drogas obriga os usuários a se misturarem a traficantes para obtenção da droga. A proibição do uso de drogas faz com que o preço da mesma aumente, gerando lucros maiores para os traficantes. Além do aparecimento de drogas mais baratas (veja o crack) e de “qualidade” comprometida que causam maiores riscos à saúde e à vida do usuário. Outra consequência inegável da proibição do consumo é o aumento da corrupção policial.
Se realmente a política repressora e punitiva da chamada “guerra às drogas” tivesse surtido algum efeito, não teria aumentado a diversidade de drogas, inclusive sintéticas. Não teria, também, havido o aumento considerável do número de consumidores. É preciso reconhecer que as “armas” utilizadas pelo Estado até hoje na “guerra às drogas” não foram eficazes, nem para diminuir o consumo, nem para combater o tráfico.
Necessário, pois, que o Estado e a sociedade entendam de uma vez por todas que nem tudo pode e deve ser objeto do direito penal. Neste viés, devem ser excluídas do direito penal as condutas que não afetam qualquer bem jurídico; as “condutas desviadas”[2]; as condutas, ainda que “pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente”[3], mas que não extrapola o indivíduo; as condutas desprovidas de nocividade social[4] etc.
Maria Lúcia Karam[5], com toda propriedade, esclarece que “descriminalizar não significa liberalizar. Ao contrário, descriminalizar implica em abrir maiores espaços para a criação de mecanismos não penais de controle sobre a produção, a distribuição e o consumo de drogas, eliminando um sistema contraproducente e de graves efeitos negativos, em prol da intervenção de outros instrumentos, menos perniciosos e mais adequados, na busca de caminhos mais racionais e mais eficazes para tratar essa questão”.
Por tudo, pelos princípios norteadores de um direito penal mínimo e garantista, corolário do Estado democrático de direito, pela prevalência da dignidade humana e, principalmente, pela vida, espero que o STF declare inconstitucional a criminalização do uso de drogas, dando o primeiro passo na busca de solução para este grande problema.
Belo Horizonte, junho de 2015.
Notas e Referências:
[1] BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Freitas Bastos, 1998.
[2] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
[3] Idem.
[4] CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. Trad. Eliana Granja et. al. São Paulo: RT, 1995.
[5] KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói, Rio de Janeiro: Luam, 1991.
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Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal da PUC Minas.
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