DESCONSTRUINDO A PIRÂMIDE DE KELSEN EM TEMPO DE PANDEMIA E O MODUS OPERANDI PARA O FIM DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS no estado democrático de direito      

10/08/2020

Independentemente da faculdade de Direito, qualquer estudante de primeiro ano tem em seu currículo acadêmico a disciplina de “Introdução ao Estudo do Direito”, ou simplesmente IED, onde adquirem conhecimentos básicos das Ciências Jurídicas, mundialmente reconhecidos, quer seja no Sistema Common-Law (Anglo-Americano) ou no Civil Law (Romano-Germânico).

Ainda que haja muitas críticas ao ensino do Direito no Brasil, estas não podem ser utilizadas como pretexto pela falta de preparo ou conhecimento daqueles que tem no DIREITO, a base para a tomada de decisões de gestão pública, independentemente da esfera do governo.

Neste estudo, concentraremos nossa argumentação nos governos estaduais e municipais, tendo em vista serem estes aqueles que estão tomando medidas autoritárias e inconstitucionais durante a pandemia de COVID-19.

Segundo a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[i] (LINDB), em seu artigo 3º, temos: Ninguém se escusa de cumprir a lei alegando que não a conhece.

Sob esta perspectiva é que analisaremos as ações dos governadores e prefeitos diante das ações que violam as leis que protegem os direitos dos cidadãos, ondem usurpam seus cargos para impor medidas de contenção e propagação da pandeia, as quais já se mostraram ineficientes em outras cidades do mundo. Como exemplo desta afirmação, citamos a declaração do prefeito de Nova Iorque[ii], Andrew Cuomo, em coletiva de imprensa concedida em 07 de maio de 2020, demonstrando que 66% dos casos de COVID-19 foram contraídos por pessoas que estavam em casa em isolamento social.

Corroborando com o título deste artigo, avocamos este instrumento didático para sustentar nossa linha de pensamento, onde contemporaneamente os assim chamados “gestores públicos”, (entenda-se Presidente da República, Governadores dos Estados e do Distrito Federal e Prefeitos Municipais), não tem o direito de cometerem erros jurídicos em suas gestões, emitindo decretos indiscriminadamente, pois além de estarem amplamente amparados por suas Assessorias Jurídicas, Advocacia Geral da União (AGU), na esfera federal e por Procuradores nas esferas estaduais, distrital e municipais, sempre que tomam ações equivocadas as quais por ventura venham a prejudicar a sociedade de um modo geral, responderão na justiça por usurpação de cargo público, abuso de autoridade, crimes de responsabilidade, dentre outros.

O que queremos significar com estas afirmações é que, todos os agentes públicos envolvidos neste contexto tem elevado conhecimento da res publica, saber jurídico e ampla consciência de seus atos, em que pese não somente a posição que ocupam, mas também pela formação acadêmica que ostentam.

Consoante ao objeto de análise desse artigo, queremos significar que vários governadores e incontáveis prefeitos, veem adotando medidas impensáveis até mesmo daquelas adotadas durante o “Regime de Exceção” no Brasil (1964 – 1985), pois vão de encontro ao ordenamento jurídico brasileiro vigente, os quais se possível fora, estariam fazendo com que Hans Kelsen[iii] (1881 – 1973) se revirasse em seu túmulo.

Somente para ter noção das violações sistemáticas dos direitos e garantias individuais, dentre outras, praticadas por estes gestores durante a pandemia, basta que o leitor leia o Ato Institucional Nº 5 (AI-5)[iv], de 13 de dezembro de 1968, para entender o quão rapidamente a democracia se deteriorou em tão poucos meses em 2020.

Para que possamos recapitular os ensinamentos deste jurista austríaco, assim como trazer a luz àqueles não familiarizados com o Direito, passaremos a seguir à análise da Pirâmide de Kelsen.

Segundo Kelsen, “nenhuma norma do ordenamento jurídico poderia se opor a Constituição Federal, pois ela é a superior a todas as demais normas jurídicas”. Assim sendo, todas as demais leis de um País, independentemente de qual lei seja ou de quem a tenha promulgado, estão subordinadas à Carta Magna, salvo quanto aquele não possuir uma constituição, como é o caso da Inglaterra e Arábia Saudita.

Em se tratando de leis supranacionais, ou seja, aquelas oriundas de tratados internacionais, as mesmas serão recepcionadas no ordenamento jurídico imediatamente abaixo da Constituição Federal, sendo esta equivalente a uma Emenda Constitucional (EC).

FIGURA 1: A PIRÂMIDE DE KELSEN E A HIERARQUIA DAS LEIS.

FONTE: Disponível em: https://direitoaojus.blogspot.com/2017/07/piramide-de-kelsen.html. Acesso em 25 mai 2020.

Analisando diariamente os decretos dos governadores e prefeitos, não precisamos ser operadores do Direito para verificarmos que estes, ou por desconhecimento (sic), por má-fé ou por interesses políticos escusos, percebemos que as leis infraconstitucionais estão se sobrepondo de maneira escandalosa ao ordenamento jurídico vigente, prejudicando aqueles mais humildes, sobretudo no que se refere aos seus direitos fundamentais, sendo estes inalienáveis ao ser humano, tais como a liberdade de locomoção e ao trabalho.

Não obstante ser um total absurdo a mensagem transmitida pela figura 2, este é exatamente o entendimento do ordenamento jurídico brasileiro que alguns governadores e prefeitos, com o apoio da grande maioria da mídia e com a conivência de alguns magistrados e Promotores de Justiça estão tendo, em que pese os decretos promulgados e liminares expedidas pelos agentes públicos, afrontarem o Estado Democrático de Direito.

FIGURA 2: SÁTIRA DA PIRÂMIDE DE KELSEN DURANTE A PANDEMIA DO COVID-19.

FONTE: Disponível em: https://www.picuki.com/media/2287298572984519132. Acesso em: 25 mai 2020.

Passaremos doravante a analisar cada situação individualmente, onde, por decretação de alguns governadores, os cidadãos deverão ficar em “isolamento social”, ou seja, restritos aos seus domicílios, sem destes se ausentarem para trabalhar e, caso sejam abordados pelas forças de segurança pública (Polícia Militar ou Guarda Municipal), poderão ser algemados e presos.

Apesar das flagrantes violações dos direitos dos cidadãos, é exatamente isso que estamos testemunhando nas ruas e através das inúmeras reportagens denunciadas pelos veículos de comunicação desde o início da pandemia do COVID-19[v] e decretação da quarentena.

Vejamos como o ordenamento jurídico brasileiro protege os direitos dos cidadãos contra atos administrativos discricionários[vi] dos gestores públicos quando estes violam os direitos daqueles.

Através do quadro abaixo, demostraremos as principais violações cometidas perante o ordenamento jurídico brasileiro:

Violação de Direitos Legais

Previsão OU GARANTIA Legal

Cerceamento da liberdade de locomoção ou direito de ir e vir.

Art. 5º, inciso XV, CRFB/88

É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.

Governo estadual (SP) requerendo às operadoras de telefonia rastreamento dos seus usuários.

Art. 5º, inciso XI, CRFB/88

É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal.

Decretação de paralisação temporária do trabalho por governadores e prefeitos.

Art. 486, Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)

No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento de indenização, que ficará a cargo do governo responsável.

Proibir alguém de não trabalhar por determinado período.

Art. 197, Código Penal Brasileiro

Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça: I - a exercer ou não arte, ofício, profissão ou indústria, ou a trabalhar ou não trabalhar durante certo período ou em determinados dias.

Algemar cidadãos que são abordados por forças de segurança circulando por locais públicos.

Art. 2º, Decreto Nº 8.858/16

É permitido o emprego de algemas apenas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, causado pelo preso ou por terceiros, justificada a sua excepcionalidade por escrito.

Proibir a população de participar de cultos religiosos.

5º, VI, CRFB/88

É inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.

Art. 18, Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 19/10/2003

“Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião”.

Art. 208, Código Penal Brasileiro

Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso.

Flagrante de abuso de autoridade cometido por agentes públicos.

Art. 2º, Lei de Abuso de Autoridade (Lei Nº 13689/19)

É sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a: I - servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas; II - membros do Poder Legislativo; III - membros do Poder Executivo; IV - membros do Poder Judiciário; V - membros do Ministério Público; VI - membros dos tribunais ou conselhos de contas.

Parágrafo único: Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangidos pelo caput deste artigo.

Proibição de manifestação do livre pensamento.

 Art. 5º, IV, CRFB/88

É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.

Art. 5º, XIV, CRFB/88

É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.

Art. 220, CRFB/88

A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

Parágrafo 2º: É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Gestores públicos transmitindo informações falsas e superestimadas sobre a pandemia.

Art. 41, da Lei das Contravenções Penais (Decreto Lei 3.688/41)

Provocar alarma, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto.

 

Conforme verificamos neste artigo, não nos faltam evidências de violação de direitos e garantias fundamentais praticados pelas autoridades públicas, pois pudemos frustrar as mesmas através da demonstração do ordenamento jurídico brasileiro, advogando em favor da legalidade e garantia do Estado Democrático de Direito.

Se por um lado sofremos pelo conhecimento que temos das leis para entendermos a atual situação em vivemos, onde corremos o risco de perder nosso bem mais precioso que é a liberdade, seja de locomoção, pensamento ou de culto religioso, por outro lado entendemos ser oportuna a mensagem bíblica do livro de Eclesiastes 1:18 (NIV): “Pois quanto maior a sabedoria maior o sofrimento; e quanto maior o conhecimento, maior o desgosto”.

Diante de tantos questionamentos que a nós nos parecem trazer mais incertezas do que certezas num cenário um tanto caótico onde estamos enfrentando ao mesmo tempo, uma crise sanitária e política, percebemos que também nos aproximamos de uma crise econômica sem precedentes na história econômica brasileira.

Todos aqueles que construíram seus conhecimentos em bases sólidas, fazendo suas reflexões no sentido de entender a sociedade em que vive e têm fome e sede de justiça, acabam se tornando reféns dos seus próprios conhecimentos, pois sofrem com as injustiças e desmandos dos usurpadores da legalidade. Devemos utilizar nossas energias, conhecimentos e entusiasmos para impedir que tiranos prossigam com seus projetos de poder e dominação, desconstruindo o ordenamento jurídico e escravizando os cidadãos.

Assim sendo, cabe a todos os pensadores e críticos do status quo valerem-se dos recursos legais disponíveis para questionarem, enfrentarem e até punirem, quando possível for, todos aqueles que não demostraram serem merecedores do voto popular que os elegeram para, na condição de servidores públicos, servirem o povo e não aos seus próprios interesses.

 

Notas e Referências

[i] Decreto Lei Nº 4.657, de 04 de setembro de 1942. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm. Acesso em: 25 mai 2020.

[ii] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=heHOWfCQeQw. Acesso em 25 mai 2020.

[iii] Jurista e filósofo austríaco nascido em Praga, então Império Austro-Húngaro, um dos mais importantes juristas e pensadores do Direito mundial, com destaque para a sua obra “Teoria Pura do Direito”, de 1934.

[iv] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm. Acesso em 27 mai 2020.

[v] Segundo distintas fontes da mídia, a mesma teria iniciado em Wuhan na China em 30/12/2019, após alerta feira pelo médico chinês Li Wenliang, sendo o mesmo preso posteriormente. Quase de um mês mais tarde, o mundo tomaria conhecimento da pandemia. O Governo Federal brasileiro fez alerta sobre o vírus no dia 26/01/2020 e, mesmo sabendo da sua gravidade, os governadores não cancelaram os desfiles de Carnaval, contribuindo assim, para a propagação deste entre a população.

[vi] Ato em que a Administração pratica com certa margem de liberdade de decisão, visto que o legislador, não podendo prever previamente qual o melhor caminho a ser tomado, conferindo ao administrador a possibilidade de escolha, dentro da legalidade.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ronmacphotos/8704611597

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