Desclassificação no júri: e agora? A decisão judicial, o júri e o direito de defesa – Por Jader Marques

10/10/2016

Historicamente, o procedimento do júri sempre foi alvo de críticas e elogios. Os críticos atacam a questão do lugar das partes no plenário de julgamento, a inconstitucionalidade do art. 409 do CPP, a ausência de fundamentação da decisão do jurado, a utilização do inquérito policial para condenar, a falta de conhecimento técnico, dentre outros pontos. Os apaixonados, por outro lado, defendem que o plenário do júri é um ambiente apaixonante, onde incontáveis debates são travados e memoráveis discursos são proferidos, onde o improviso, a astúcia e a oratória são requisitos tão indispensáveis, quanto o conhecimento do processo, enfim, no Tribunal do Júri, os profissionais ficam expostos, com seus erros e acertos, com suas virtudes e falhas.

O Tribunal do Júri com seus prós e contras.

Aqui, entretanto, não vamos entrar nas inúmeras polêmicas que circundam esse específico procedimento. Queremos, nesse momento, apenas discutir uma importante questão do procedimento: a desclassificação, que pode acontecer na passagem para a segunda fase (art. 419 do CPP) ou na quesitação aos jurados (art. 492, §1º, do CPP).

Como é sabido, o procedimento do júri é bifásico.[1]

Sobre a desclassificação no final da primeira fase, importante analisar que, antes de 2008, o artigo 410 determinava que: “Quando o juiz se convencer, em discordância com a denúncia ou queixa, da existência de crime diverso dos referidos no art. 74, § 1º, e não for o competente para julgá-lo, remeterá o processo ao juiz que o seja. Em qualquer caso, será reaberto ao acusado prazo para defesa e indicação de testemunhas, prosseguindo-se, depois de encerrada a inquirição, de acordo com os arts. 499 e segs. Não se admitirá, entretanto, que sejam arroladas testemunhas já anteriormente ouvidas”. O artigo em exame deixava clara a necessidade de, em qualquer caso, ser reaberto para a defesa um prazo de manifestação, podendo, inclusive, arrolar testemunhas.

A redação do artigo 419 do CPP, porém, dispôs que: “Quando o juiz se convencer, em discordância com a acusação, da existência de crime diverso dos referidos no § 1o do art. 74 deste Código e não for competente para o julgamento, remeterá os autos ao juiz que o seja.” Como se vê, depois da reforma do CPP de 2008, não há clareza quanto ao procedimento a ser adotado.

Quanto à desclassificação ocorrida em plenário (desclassificação própria), o art. 492, §1º, dispõe que: “Se houver desclassificação da infração para outra, de competência do juiz singular, ao presidente do Tribunal do Júri caberá proferir sentença em seguida, aplicando-se, quando o delito resultante da nova tipificação for considerado pela lei como infração penal de menor potencial ofensivo, o disposto nos arts. 69 e seguintes da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995”. Com a decisão dos jurados, os autos serão remetidos ao magistrado para que, de pronto, prolate a sentença, ou seja, o jurado desclassifica o crime imputado, afastando a sua competência para o julgamento e o juiz prolata a decisão, porém, imputando ao acusado outro crime, aquele que entender pertinente, sem nova manifestação defensiva.

Na desclassificação prolatada pelo juiz togado, de acordo com a doutrina, a questão passa pela aplicação da emendatio ou mutatio libelli.[2] Na desclassificação própria, ocorrida em plenário, o juiz julga imediatamente.

Não se desconhece o mantra de que a defesa é realizada a partir da narrativa dos fatos constantes na peça vestibular. Contudo, uma questão sobressai nesse particular: a defesa, em processos de competência do Tribunal do Júri, é toda preparada, desde as alegações, ainda na fase do iudicium accusationis, sempre visando o convencimento do Conselho de Sentença.

Quem milita no Tribunal do Júri sabe muito bem que todos os movimentos da acusação e da defesa são feitos a partir da imputação (narrativa+capitulação), mas focados na apresentação aos jurados. Por assim ser, há um inequívoco cerceamento de defesa, quando uma nova capitulação legal é dada ao fato e o julgamento é transferido do Conselho de Leigos para o Juiz Togado.

A defesa deve poder se manifestar quanto ao novo estado do processo. Alteradas as condições do “jogo”, não pode prosseguir a “partida”, sem que seja permitido aos “jogadores” fazer o realinhamento das suas “estratégias” (Alexandre Morais da Rosa).

Se, no procedimento e no Plenário do Júri, a defesa sempre argumenta com a finalidade de convencer os jurados a respeito da acusação posta, não resta dúvida que o magistrado, caso julgue o processo depois da desclassificação, sem ouvir as partes quanto à nova narrativa/enquadramento, estará causando enorme prejuízo e acarretando a nulidade do processo por violação à garantia do contraditório.

Operada a desclassificação, deve o juiz abrir vista às partes, permitir a produção de provas e, somente depois das novas alegações finais, proferir decisão.[3]

Os dias atuais talvez não sejam os mais propícios para a defesa da observância de garantias processuais, sobretudo depois da terrível decisão do Supremo que, no aniversário dos 28 anos da Carta de Outubro, acabou com a presunção de inocência prevista no art. 5º.

Mas como temos dito: a esperança não faz parte da luta.

E mais não diremos.

Este artigo foi escrito a quatro mãos, duas cabeças e um só espírito de luta, com meu parceiro e amigo, Prof. Leonardo Santiago[4].


Notas e Referências:

[1] Ao final da primeira fase (iudicium accusationis), a competência é do juiz togado, que deverá proferir uma decisão, dentre quatro possibilidades: a pronúncia, a impronúncia, a absolvição sumária e a desclassificação. Com a preclusão da decisão de pronúncia, abre-se a segunda fase (iudicium causae), com a intimação das partes para arrolar testemunhas, juntar documentos, requerer diligências, com a designação do julgamento, no qual são praticados todos os atos até quesitação e sentença.

[2] Nesse sentido, Renato Brasileiro de Lima relata que “há quem entenda que o procedimento a ser observado passa pela aplicação da emendatio ou mutatio libelli. Portanto, se o juízo singular que recebeu os autos verifica que houve mera alteração da capitulação legal do fato, sem modificação da imputação constante da peça acusatória, pode sentenciar imediatamente, porquanto o acusado já terá exercido seu direito de defesa”. (LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal Comentado. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 1150). Outro não é o entendimento de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar, que prelecionam que, existindo alteração fática, deverá ser aplicado “o art. 384 do CPP, que trata da mutatio libelli, permitindo-se que a acusação adite a inicial, indicando provas, e na sequencia deve haver manifestação defensiva, para que a instrução seja retomada, agora em razão de novos fatos, com produção probatória, interrogatório do imputado, debates, e, enfim, prolação da sentença. Por outro lado, não tendo havido alteração fática, e apenas novo enquadramento legal, oportunizando a desclassificação, não haverá aditamento da inicial, entretanto, para que o contraditório seja respeitado, no juízo competente, as partes devem se manifestar, podendo inclusive indicar provas e requerer diligências, e após a instrução e debates, terá cabimento a sentença”. (TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 1234). Aury Lopes Jr, por seu turno, defende que “o mais coerente é que seja reaberta a instrução, possibilitando-se às partes arrolarem testemunhas para que a prova seja colhida em relação a essa nova imputação, até porque, agora está consagrado o princípio da identidade física do juiz, sendo necessário que esse novo julgador colha a prova”. (LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 2015. p. 807).

[3] Ementa: APELAÇÃO CRIMINAL. DENÚNCIA POR HOMICÍDIO NO TRÂNSITO DECORRENTE DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NO TRÂNSITO (ART. 302 DO CTB). INOBSERVÂNCIA DO ART. 384 DO CPP EM SUA NOVA REDAÇÃO. 1. Magistrado que desclassificou a imputação de crime de homicídio doloso para homicídio negligente e, posteriormente ao trânsito em julgado, prolatou sentença condenatória, o que implica em hipótese de 'mutatio libelli', visto que ausente descrição de crime negligente, em observância ao art. 18, inciso II, do CP. 2. A nova redação do art. 384 do CPP impõe o aditamento da denúncia em hipótese de nova definição jurídica do fato com acréscimo de elemento não contido inicialmente na exordial acusatória ('mutatio libelli'). Não tendo o Ministério Público aditado a denúncia quando da desclassificação operada pelo juízo a quo, já na vigência da Lei nº 11.719/08, verifica-se a impossibilidade jurídica do pleito condenatório, sob pena de violação do princípio acusatório, que exige a correlação entre acusação e sentença. NEGARAM PROVIMENTO AO APELO. UNÂNIME. (Apelação Crime Nº 70035860477, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Odone Sanguiné, Julgado em 28/10/2010).

[4] Leonardo Santiago é Advogado Criminalista e Professor do Curso de Direito da UNIFRA e AMF, além de Mestre em Direito pela UFSM (Santa Maria/RS).


 

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