(Des)criminalização das drogas, violência, impunidade e administração de recursos: um convite à reflexão

11/01/2017

Por Felinto Martins Filho - 11/01/2017

Temo polêmico, mas dialogar não ofende, certo? Ao cidadão mais impulsivo pode parecer “conversa desse povo dos direitos humanos!”. Papo de advogado, como se diz. Não sei como um advogado criminalista poderia "se beneficiar" da descriminalização de determinado delito (é um argumento comumente lançado). Na minha lógica, quanto mais crimes, mais trabalho (e mais dinheiro) pro criminalista. Então, a ideia abaixo, que pretendo fundamentar no que a ciência do direito penal vem dizendo nas últimas décadas, deve ser rejeitada, se incorreta o interlocutor julgar, com racionalidade e sem preconceitos.

Pois bem,

Descriminalização das drogas é um problema Econômico. É uma questão de possibilidades e recursos. O Direito Penal, como um dos meios de controle social formal, encontra limites não só no dever de respeito à liberdade, mas também de possibilidades financeiras, como qualquer outra prestação de serviço. Os princípios de DP informam tanto a compatibilidade da repressão com a liberdade e dignidade, como com eficiência racional para consecução dos propósitos sociais. Convencionou-se quase que à unanimidade na doutrina, nacional e do além mar, a dizer que a função do direito penal é a tutela subsidiária de bens jurídicos essenciais.

A partir disso, vamos ao problema das drogas.

Temos como um dos argumentos mais contundentes e empiricamente demonstrável como, de fato, correto, o fato de que o tráfico de drogas está associado a homicídios e outros crimes violentos. O traficante mata seus rivais e também os seus clientes (de fora e de dentro da cadeia). O usuário, por sua vez, pode vir a ser incitado ou, pelos efeitos das drogas, ter reduzidos os freios que o desencorajam à prática de crimes. Até aqui, parece legítimo punir o tráfico, pois a função do direito penal, segundo o quase consenso acadêmico, como dito, está na proteção dos bens jurídicos mais importantes (vida, integridade física etc).

Para evitar esses crimes gravíssimos - os violentos - poderemos tomar, pelo menos, duas atitudes: 1) Nos concentramos em investigar, punir e executar suas penas (homicídios, roubos, estupros, sequestros etc). 2. Punir condutas antecedentes que gerem algum risco para os bens mais essenciais e claros, como o comércio da droga, de maneira independente do que um traficante armado possa vir a fazer no futuro ou mesmo os usuários (as chamadas consequências das drogas). Então, ao homicídio que protege a vida, agregamos o tráfico que, imediatamente protegeria um bem um tanto quanto abstrato (a saúde pública), mas que mediatamente protegeria a vida, integridade etc. A prognóstico dos efeitos das drogas é discutível, mas admitamos como prováveis. O problema é que para isso há um custo. Nesse caso, teríamos que ter recursos para que o sistema penal desse conta das condutas antecipadas (o comércio de drogas), já que não só os que lesionem à vida, mas os autores das condutas arriscadas anteriores seriam conduzidos ao cárcere ou, no mínimo, no caso de uso, conduzidos pela polícia a uma delegacia para lavratura de um Termo Circunstanciado e para uma audiência de instrução e julgamento.

Todos queremos punir delinquentes, e há parcela deles que não podem viver em sociedade.

Para o caso, escolheu-se combater a violência punindo o comércio de drogas (opção 2) com cadeia e, no caso do Brasil, tratamento equiparado a hediondo. Tráfico é um crime gravíssimo que merece forte repressão, como dizem.

O que temos até agora como consequência desta escolha é que:

- Apenas aproximadamente 7% dos homicídios (o crime dos crimes) são solucionados no Brasil. Isso porque não temos recursos suficientes (combinado com má vontade política) para investir na polícia investigativa. E, é claro, não temos recursos para tantos juízes, promotores, defensores públicos e servidores, como seria ideal. Isso porque ampliamos o espectro da tutela penal e antecipamos a punição. Nem tem adiantado muita coisa reclamar da falta de investimentos; notem que é um problema que não se resolve. Enquanto isso, temos essa cifra negra (os outros 93% de mortes não solucionadas) absurda que tem gerado a não apenas sensação, mas um estado de real impunidade no nosso país.

- Em contrapartida, temos em todo o país cadeias superlotadas. No Estado do Ceará, há mais mandados de prisão em aberto (pessoas que deveriam ir pra cadeia, por determinação judicial) do que vagas nos presídios do Estado, isso se eles estivessem vazios. Mas estão funcionando com 2, 3 vezes a sua capacidade. É como o que ocorre no caso do presídio do Amazonas, que com capacidade pra abrigar 400 e poucos presos, amontoava mais de 1200. Uma hora essa panela de pressão estoura. Não há, hoje, como mandar para a cadeia os condenados pela justiça que lá devem estar. Perdemos absolutamente o controle. O caso é de, no máximo, conseguir administrar quem já está lá. O resultado: impunidade!

Por outro lado, indaga-se qual o crime predominante nesses presídios, já que estão lotados? Alguma surpresa se disser que lá estão, em sua maioria, presos por tráfico de drogas? A escolha (opção 2) faz com que mandemos para a cadeia não os reais bandidos, mas aqueles praticantes do estágio prévio que decidimos punir. Note que, se punirmos adequadamente os homicídios, puniremos a parcela de traficantes perigosos, não por tráfico, mas por aquelas condutas que realmente os tornam incapazes de viver entre nós. A descriminalização do tráfico não traria liberdade para traficantes-assassinos, pelo contrário; concentraria esforços na punição de homicidas, sejam traficantes ou não.

Poder-se-ia argumentar que descriminalização levaria ao caos. Bem, o que me dá mais medo é saber que somente 7% das mortes são investigadas; já passamos do estágio de caos. Com o excesso legislativo-penal, crimes gravíssimos como homicídios, roubos violentos e estupros violentos deixam de ser investigados e punidos por conta da gula punitiva. É claro que a conduta de usuários de drogas é de per si indesejada, mas para coibi-las podemos nos socorrer de meios alternativos e mais baratos, inclusive os não formais de controle social. Afinal, não é por que usar drogas deixe de ser crime que, por exemplo, a convenção de um condomínio não possa vedar a sua prática nas áreas comuns do ambiente. O problema não é prático, mas teórico: esse tipo de argumentador acredita que o Direito Penal é a panaceia dos nossos males, o que, na prática, não condiz com a realidade que se apresenta.

O certo é que a cada TCO de uso ou flagrante por porte de 100g de droga para venda numa festa privada (tráfico), deixamos de investigar, julgar e punir um homicida, um estuprador ou um assaltante violento. Punir o uso e comércio de drogas não ajuda, nem mesmo, na intimidação daqueles que praticam crimes graves. E o que a previsão desses crimes mais graves não faz como efeito simbólico dissuasório ou prevenção geral negativa, tampouco a previsão de um tipo penal com sanção menor (o tráfico tem pena menor que o homicídio) faz. A criminalização do comércio das drogas é tão caro quanto inútil para os fins que se propôs.

Reflitamos.


felinto-martins-filho. . Felinto Martins Filho é Especialista em Direito Penal pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela Unifor. Advogado. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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