Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini
A essa altura não é mais novidade que a Lei n˚ 13.467/2017, popularmente conhecida como Reforma Trabalhista, trouxe a possibilidade de utilização de seguro garantia judicial ou fiança bancária para substituir o depósito recursal, como se extrai do art. 899, §11, da CLT.
Mas parece que a novidade não foi muito bem assimilada por parte do Judiciário Trabalhista. É que passaram a proliferar decisões que fulminaram sumariamente a admissibilidade dos recursos que se valeram de tais formas de garantia judicial, muitas vezes impondo requisitos de validade não prescritos em lei sem sequer intimar a parte para sanar o vício.
É sobre essa temática que se pretende debruçar este breve artigo, analisando quais são os requisitos de validade do seguro garantia para ser admitido como substituto do depósito recursal e qual deveria ser a postura do órgão judicial ao se deparar com alguma irregularidade, considerando as normas fundamentais alicerçadas na Lei Maior e no CPC/2015, com aplicabilidade ao Processo do Trabalho, de acordo com o já consagrado entendimento do Tribunal Superior do Trabalho.
Advirta-se, de logo, que o objetivo do artigo não foi tecer críticas direcionadas a essa ou aquela decisão judicial, motivo pelo qual não foram citados especificamente os dados dos julgados que adotaram os posicionamentos aqui relatados. O escopo do artigo se restringiu a discutir a “tese jurídica”, sem personalizar, demonstrando, de acordo com o que se acredita ser mais consentâneo com as garantias fundamentais, o desacerto do entendimento rígido e inflexível que não se coaduna com os valores e preceitos do atual Estado Democrático de Direito.
Feitos esses esclarecimentos, passa-se ao exame dos pontos que se propôs abordar.
Dois são os defeitos que, na visão de alguns juízes/tribunais regionais trabalhistas, costumam macular o seguro garantia utilizado como depósito recursal: i) a ausência de acréscimo de 30%; b) a existência de prazo de validade (ou por tempo determinado) da apólice de seguro garantia. Para entender os matizes desses “problemas” analisa-se a legislação.
Não há na CLT, com exceção do citado art. 899, §11, qualquer outro dispositivo que verse sobre seguro garantia ou fiança bancária, motivo pelo qual deve-se recorrer às fontes subsidiárias para suprir a lacuna do texto consolidado, com a franquia dos arts. 8˚, 769 e 889 da CLT.
Primeiro enfrentaremos a exigência de acréscimo de 30% e as suas implicações práticas. Sobre o ponto, o art. 835, §2˚, do CPC chancela a necessidade de majorar o “valor do débito” em 30% “para fins de substituição da penhora”, conforme literalidade do dispositivo legal, tratando da penhora realizada em sede de cumprimento de sentença para garantir a execução. Nada diz, porém, com relação ao depósito recursal, decerto pelo fato de o instituto não ser utilizado nos recursos cíveis, que exigem pagamento de custas e porte de remessa e retorno.
Há, portanto, fases processuais diferentes quando se compara o cenário trabalhista com o do processo civil. Em outras palavras, a intepretação de que o valor constante da apólice de seguro garantia - utilizado em substituição ao depósito recursal - deveria ser acrescido de 30%, se faz por analogia, se valendo da regra assentada no art. 835, §2˚, do CPC.
E aí reside o primeiro problema: pode-se criar requisito de admissibilidade de recurso por analogia? A interpretação sobre regra que crie ônus processual para a parte não deveria ser restritiva, na medida em que se deve ter pleno conhecimento do ônus que lhe é imputado para dele se desincumbir? A resposta perpassa pela observância dos princípios da segurança jurídica, cooperação e vedação à decisão surpresa, para citar apenas algumas das garantias fundamentais.
Assenta-se, assim, a primeira premissa defendida nesse artigo. O critério do acréscimo de 30% previsto no CPC, para os fins do artigo 899, §11, da CLT, não deveria ser exigido do recorrente ante a ausência de norma processual específica impondo esse ônus para parte.
Há, ainda, para reforçar essa tese, a fixação anual pelo TST de teto para os depósitos recursais trabalhistas, de modo que, em muitos casos, a majoração de 30% ultrapassaria o valor máximo estipulado pela Corte Superior Trabalhista como requisito de admissibilidade do recurso.
Por outro lado, o plus de 30% ainda poderia exceder o valor da condenação fixado na decisão judicial, contrariando a diretriz cristalizada na súmula 128, item I (parte final), do TST de que “atingido o valor da condenação, nenhum depósito mais é exigido para qualquer recurso”. Assim, o acréscimo seria contrário a forma como o sistema recursal trabalhista foi engendrado.
Não se pode deixar de pontuar, contudo, que há entendimento encampado por algumas decisões que pode ser considerado mais razoável: aplica-se a regra do art. 835, §2˚, do CPC, mas observam-se os limites impostos pelo teto do TST e/ou pelo valor da condenação. Isso significa, portanto, que o acréscimo de 30% só é exigido até alcançar o teto e/ou o valor da condenação, marcos reputados intangíveis para que se respeite o sistema recursal.
De um modo ou de outro, independentemente do procedimento a ser adotado pelo juízo, o certo é que não se pode liminarmente considerar o recurso deserto sem dar a possibilidade de a parte complementar o valor que se entende devido, pois isso implicaria em afronta aos princípios da primazia da decisão de mérito (art. 4˚ do CPC), boa-fé processual (art. 5˚ do CPC), cooperação (art. 6˚ do CPC), vedação à decisão surpresa (art. 10 do CPC), além de causar insegurança jurídica, todos aplicáveis ao processo do trabalho (IN 39 do TST c/c CF/88). E isso é apenas dar concretude às normas fundamentais que se extraem da Constituição Federal e do Código de Processo Civil, plenamente aplicáveis ao Processo do Trabalho.
Todo esse cenário deixa claro o seguinte: se o acréscimo de 30% é objeto de celeuma, visto que não há uma posição consolidada na jurisprudência a respeito de qual o procedimento a ser adotado, não se pode punir o recorrente com a sanção processual mais severa de todas que é tachar o seu recurso deserto, sem que tenha a oportunidade de complementação.
Até porque o art. 1007, §2˚, do CPC, admite que o vício seja suprido no prazo de 5 (cinco) dias se constatada insuficiência no valor do preparo, afastando a deserção se o defeito for sanado. Note-se que o próprio enquadramento como vício/irregularidade é subjetivo, pois depende, diante da controvérsia existente, de qual é o entendimento do juízo sobre o tema. Logo, seria temerário simplesmente considerar o recurso deserto sem intimar a parte recorrente.
Agora a questão se volta para a exigência de que a apólice de seguro garantia seja firmada com prazo de validade indeterminado, para garantir a sua subsistência até o final do processo.
Nesta hipótese, diferentemente do que ocorre na situação anterior (do plus de 30%), sequer há vício no momento da interposição do recurso, pois a apólice é plenamente válida, já que se encontra no seu prazo de vigência. O juízo não admite o recurso, assim, por uma mera possibilidade de irregularidade futura, isto é, por receio de ocorrer a perda da garantia pelo alcance do termo da apólice antes de o processo iniciar a fase executória/cumprimento de sentença.
Aqui o caso é ainda mais grave e delicado, pois essa condição de validade da apólice foi criada jurisprudencialmente, ou seja, não encontra amparo em nenhuma fonte normativa formal.
Na verdade, ela contraria a própria lei, visto que o art. 760 do Código Civil, ao tratar sobre o contrato de seguro de um modo geral, determina, de forma imperativa, que na respectiva apólice ou no bilhete conste o início e o fim de sua validade, como se verifica abaixo:
Art. 760. A apólice ou o bilhete de seguro serão nominativos, à ordem ou ao portador, e mencionarão os riscos assumidos, o início e o fim de sua validade, o limite da garantia e o prêmio devido, e, quando for o caso, o nome do segurado e o do beneficiário.
A exigência de apólice sem prazo de validade é, portanto, manifestamente ilegal.
E o pior, não existe contrato de seguro firmado por tempo indeterminado, sendo, portanto, requisito de validade inexequível, ante a impossibilidade material de atendê-lo por circunstância alheia à vontade da parte e que contraria a própria natureza do contrato de seguro.
O que pode ser feito é exigir cláusula de renovação automática, por meio da qual a própria seguradora intima o contratante para dizer se pretende renovar e o seu silêncio importa na renovação compulsória do seguro. E se não renovada automaticamente, a seguradora se responsabiliza em pagar ao segurado (reclamante), nos autos do processo, o valor do prêmio contratado, de modo que não há risco de a garantia se esvair como apontado pela jurisprudência.
Em outras palavras, no próprio contrato de seguro existem ferramentas que impedem a perda da garantia no processo por meio de pagamento pela seguradora do valor ajustado, sem inviabilizar a finalidade da norma de assegurar o cumprimento de uma eventual execução.
Talvez o que falte seja justamente mergulhar um pouco mais no universo do contrato de seguro para se entender as regras do mercado, e não se inviabilizar a utilização de uma medida assegurada por lei (art. 899, §11, da CLT), pautado no simples fato de com ela não concordar.
Em síntese, não há nada no ordenamento jurídico que ampare a exigência de seguro garantia sem previsão de prazo de validade, muito menos que autorize o não conhecimento do recurso sem ser dada a parte a oportunidade de sanar o vício apontado pelo órgão judiciário.
Isso, sem dúvida, é o mais grave, na medida em que não mais se admite o formalismo exacerbado em detrimento da primazia da decisão de mérito e da cooperação. Desse modo, seja qual for o requisito de validade imposto pelo juízo como condição para que o seguro garantia seja utilizado como substitutivo do depósito recursal (CLT 899, §11), a parte sempre deve ser intimada para tomar ciência do vício e regularizá-lo, sob pena de afrontar normas fundamentais que devem orientar os sujeitos do processo, incluindo o magistrado.
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