DEPOIMENTO ACOLHEDOR À LUZ DA LEI 13.431/2017

15/09/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

A Lei nº 13.431/17, vem expressamente ratificar a necessidade de uma organização da rede de proteção à criança e ao adolescente no sentido processual, onde busca-se assegurar um atendimento especializado e diferenciado às vítimas de tais violências. Para tanto, a lei basicamente institui duas formas igualmente válidas para a coleta de prova junto a criança e adolescente e /ou testemunhas envolvidas no inquérito policial e/ou processo judicial: a escuta especializada e ao depoimento especial, que hoje são e devem ser conduzidos por profissionais capacitados, qualificados que respeitem o tempo e os desejos, assim como as opiniões das crianças e adolescentes integrantes do processo dessa escuta especializada, além, entre outros objetivos, o de evitar a revitimização, evitando sequelas advindas do fato, garantindo o pleno exercício do direito constitucional ao esquecimento.

O referido instituto - Lei nº 13.431/2017- veio ratificar o ECA (Lei nº 8.069/1990) Estatuto da Criança e do Adolescente) e dar força ao Poder Público, concomitante às leis já existentes na concretização dos direitos da criança e do adolescente vítimas ou testemunhas de violência, de maneira mais eficaz e eficiente, contribuindo com o governo e administração pública, tornando os processos mais céleres e humanizados.

Reza a referida lei que toda criança e adolescente deve estar protegida de qualquer tipo de violência, discriminação, crueldade, opressão, negligência de qualquer esfera de atenção, área do direito ou mesmo fase do processo. Dispondo atenção especial para as oitivas e/ou maneiras de abordagens que, desde então só poderão ser realizadas por procedimentos específicos como escuta especializada e o depoimento especial, ambos tutelados por ela (Lei 13.431/2017 em seus parágrafos §7º e §8º), atribuindo às vítimas a garantia e concretização de seus direitos. 

É preciso, com isso, que o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente e seus órgãos integrantes da rede de proteção e do sistema de justiça, trabalhem de maneira conjunta, harmoniosa e não de forma protetiva ou persecutória. O apoio psicológico a vítima deve ser assumido de maneira compromissada e periódica e não ser usado como simples meio de prova para servir como ferramenta punitiva ao Estado, mas sim, pela gravidade da saúde física e psíquica sofrida, para que só assim possa-se realizar a perfeita formalização dos fatos. Por isso é tão importante um trabalho conjunto da justiça criminal e a rede de proteção articulada de maneira global, sinérgica e eficiente para que se alcance com sucesso uma oitiva eficaz.

Conhecido também como “Depoimento Acolhedor de Crianças e Adolescentes”, ou mesmo “Depoimento Sem Dano”, a escuta especializada de crianças e adolescentes, refere-se a um sistema de escuta que facilita a oitiva da criança e do adolescente a ser investigado para a formalização dos fatos e futura concretização do processo. Segue um rito cautelar, sendo realizados em crianças e/ou adolescentes com menos de sete anos de idade. Cabe ao juiz, portanto, formalizar as perguntas a serem realizadas para que o psicólogo e/ou assistente social como facilitador/interprete, e possa realizar um depoimento eficiente da criança e/ou adolescente de maneira humanizada.

Em detrimento do fato ocorrido, é importante lembrar que devem ser colidas todas as informações de maneira eficaz e relevante a dar suporte a toda e qualquer ação que esteja ou que possa vir a ser ajuizada em torno do caso.

Realiza-se, portanto, a produção de provas antecipadas devido a possível demora do julgamento da causa, evitando com isso, prejuízos do processo, tanto quanto para que não se perca a fidelidade dos fatos narrados no decurso do tempo. A permissão para a realização de um novo depoimento especial pela autoridade competente, só será permitida se justificada ser indispensável ao andamento do processo e ainda pela concordância da vítima, testemunha ou de seu advogado.

É importante destacar que a Resolução nº 10/2010, do Conselho Federal de Psicologia – CFP e a Resolução nº554/2010, do Conselho Federal de Serviço Social-CFESS obstruem a participação das categorias acima citadas no Projeto de “Depoimento Sem Dano” por afirmarem que não é de competência dos mesmos a função de inquiridor judicial de crianças e adolescentes e que extrapolam suas atribuições segundo a Leis nº 4.119/62 e 8.662/1993.

Porém, vale destacar, que tanto o psicólogo como o assistente social, não atuam como inquisidores, mas sim como facilitadores/interpretes no momento da oitiva da criança e do adolescente, utilizando-se de seus conhecimentos científicos e técnicos da melhor maneira, menos agressiva e, sim, mais humanizada, sempre visando o bem estar da criança em detrimento dos meios de provas suficientes para a punição do agressor.

Sendo assim, tais procedimentos observados, além de evitarem a revitimização da criança e/ou adolescente, a escuta especializada do conjunto de profissionais citados tem entre outros objetivos o de acabar, coibir qualquer tipo de desconfiança ou dúvida referente as tratativas que devem ser seguidas, observadas quando da oitiva de crianças e adolescentes, vítimas ou testemunhas de atos de violência, que muitas das vezes, ou quase sempre, são tratados de forma ilegal, inconstitucional, tendo neste momento seus direitos mínimos garantidos no art. 227 da nossa lei maior, não respeitados.

A escuta especializada, que ocorre dentro da rede de proteção, é realizada de fato, por um conjunto de órgãos municipais, os quais são os responsáveis pelo atendimento e cumprimento dos direitos da criança, adolescentes e suas famílias, tais órgãos trabalham juntos de forma articulada, juntamente com os órgãos de Segurança Pública e Justiça, com funções individualmente definidas, promovendo ainda um intercâmbio de informações, segundo consta o artigo 14, §1º, III, da Lei.13.431/2017. São realizadas reuniões de debates interdisciplinares como meio de buscar as melhores maneiras de abordagem e inserção no caso. Neste procedimento, são observados os princípios do caput do art.100, § único, ECA, nos artigos 5º e 14, §1º desta Lei como segue:

Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas: (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)

Conforme preconiza o artigo 100, não só as medidas pedagógicas adotadas para a proteção/menor são suficientes. Necessário, portanto, observar a importância, o sincronismo desta engrenagem que inclui os vínculos familiares e comunitários como fortalecedores do sistema como um todo.

Além disso, todas as observações elencadas no artigo 5º, inciso I ao XV, nos remete à base de todos àqueles princípios e garantias que estão assegurados em nosso ordenamento jurídico. Resta portanto, despertar para as ações necessárias que garantam a afetividade do referido dispositivo.

Interessante observar que, de forma indireta, a Lei nº 13.431/2017 acabou efetuando uma distinção, até então inexistente (ao menos no plano legislativo), entre a “rede de proteção” e o Sistema de Justiça, assim como os órgãos de segurança pública, embora todos, de uma forma ou de outra, devam atuar na busca da “proteção integral” das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, seja por força do disposto no contexto de toda esta Lei, seja em razão do contido nos arts. 1º, 4º, 5º e 70, do ECA e, em última análise, no art. 227, caput, da CF.

Segundo a Lei 13.431/2017, a rede de proteção é composta e realizada pela união sinérgica de programas de atendimento, serviços e ações que formam o sistema de direitos e garantias da criança e do adolescente, formalizando assim sua proteção integral. Composto por três eixos (Defesa integral, controle social e defesa especializada), que garantem individualmente tais direitos fundamentais tão necessários ao desenvolvimento pleno da criança e do adolescente. Estes eixos são traduzidos a partir da atuação das políticas públicas, acesso à justiça e de controle social através da realização das ações de promoção e defesa.

Compõe portanto, a rede de proteção, toda e qualquer política pública que promova a proteção e dignidade aos direitos humanos, podendo citar como: todos os serviços e políticas de assistência social de proteção social básica e especial, políticas de saúde, políticas e serviços de educação, programas de atendimento socioeducativo e os programas e políticas de proteção aos direitos humanos. E para que garantam o acesso à justiça e para tanto, os seus direitos, fazem parte os seguintes orgãos: Ministério Público, Defensoria Pública, Poder Judiciário, Segurança Pública, Conselhos tutelares, ouvidorias, entidades sociais norteadas à defesa de direitos. 

O artigo 10 da Lei 13.431/17 deixa claro que a escuta especializada e o depoimento especial serão realizados em local apropriado e acolhedor com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência; neste sentido, concorda-se com o entendimento do CNJ –Conselho Nacional de Justiça, que traz a luz da recomendação nº 33/2010, um estímulo maior a criação e desenvolvimento das referidas salas de depoimento especial em todo o território brasileiro, muito embora todos os esforços enveredados para referida criação, ainda nota-se  o pouco número de comarcas no país que dispõe de condições para a criação, manutenção e prática das referidas salas. Como é necessário garantir o direito de as crianças e adolescentes, testemunhas ou vítimas de violência serem ouvidas em um espaço adaptado e acolhedor, necessita-se cada vez mais universalizar o tratamento deste pleito buscando investimento por parte dos tribunais de justiça de modo a garantir a concretização, ou seja, a criação de tais espaços. Paralelamente, deve-se observar que a diligência dos fóruns e delegacias de polícias deva proporcionar um ambiente mínimo de circulação dessas crianças e adolescentes, a fim de se obter na fase policial e/ou processual um depoimento menos traumático.

Observa-se a partir deste ponto a realidade voltada para a implantação desta temática, como exemplo, verifica-se a  Vara de Crimes contra crianças e adolescentes na cidade de Belém-PA, que já realiza a  técnica da escuta especializada- depoimento sem dano-, que tem como objetivo colher uma única vez o depoimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, sendo que este procedimento envolve a participação de uma equipe multidisciplinar inclusive com acompanhamento da promotoria de justiça que busca minimizar os efeitos recorrentes de tal procedimento envolvendo crianças e adolescentes ratificando em seus incisos: I- a necessidade de abolir o termo de informações substituindo pela expressão Escuta Especializada conforme consta no artigo 7º da Lei 13.431/17.

Esta escuta humanizada de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, tem sido aplicada de maneira estratégica na preservação e enfrentamento do problema no Estado do Pará.

Esta iniciativa dos magistrados foi apresentada durante um “debate sobre a proteção integral da infância e da juventude” em junho de 2018, chancelado pelo CNJ. A Comarca de Abaetetuba por exemplo, uma cidade paraense que possui aproximadamente 82 ilhas, destacou-se por ter sido a primeira da região norte-nordeste do Brasil a efetivar a utilização deste depoimento, valorizando a oportunidade da escuta única (que é tomada no depoimento especial) garantindo desta feita o “trauma”, o que chamamos de revitimização da criança e do adolescente que tem o direito de não reviver o trauma sofrido.

Como já referenciado anteriormente, o artigo 7º da lei muito bem define a escuta especializada e a importância deste depoimento especial, no entanto, nosso trabalho de campo nos remeteu a vivencia e as experiências reportadas por toda esta equipe multidisciplinar, nos evidenciou, a grande falta de incentivo e estrutura mínima, por parte do Estado vividas no dia a dia destes profissionais. Como já citado, poderia ser exposto as várias necessidades, no entanto, se faz imprescindível pontuar os seguintes itens: ausência de estrutura física adequada, ausência de uma logística de suporte a vítima e seus familiares, falta de incentivo no aspecto da formação e capacitação das equipes envolvidas no processo, ausência de garantia, de segurança física a rede de proteção envolvida no caso e por fim, entre outros, poderíamos citar o aspecto do acompanhamento desta criança e do adolescente por parte do Estado que deveria ser o garantidor da efetividade dos direitos entre outros “o da dignidade da pessoa humana, ausente neste ser tão frágil e desassistido de toda a sorte, ou seja, as nossas crianças.

Necessário se faz ainda, referenciar a ação do TJ-PA oficializada conforme provimento citado que estabeleceu o padrão para funcionamento das salas necessárias onde deverão ser realizadas o depoimento especial, valorizando o aspecto físico do ambiente para que as técnicas empregadas pela rede de proteção possam garantir um perfeito acolhimento das crianças ou adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

A participação da Comissão Intersetorial especial vem corroborar com todos os esforços desenvolvidos pelo TJ-PA para o avanço da efetividade na aplicação célere e eficaz de todos os instrumentos legais disponibilizados.

Juízes, servidores, desembargadores, presidente, enfim, todo este conjunto nos oportunizou uma sensação de que há um longo caminho a percorrer na busca das garantias dos direitos aqui já invocados, no entanto, sabe-se que todas essas experiências contam com uma base sólida, que sustenta o ideal daqueles que lutam por dias melhores na real garantia da efetividade das decisões do poder jurisdicional.

Neste sentido, importante enfatizar a necessidade de especialização oferecida às crianças e adolescentes pelas varas criminais fortalecidas com o surgimento da Lei nº 13.431/2017. Observa-se a partir desse momento, o cuidado do Tribunal de Justiça no atendimento e celeridade dos processos desta natureza, quando os mesmos ao perceberem que determinada vara criminal não possui uma capacitação para tal atendimento, o referido Tribunal de Justiça disponibiliza e encaminha outras equipes, muitas das vezes localizadas em diferentes regiões, o que chamamos de equipes itinerantes.

A Lei nº 13.431/17, se mostra uma ferramenta muito importante de evolução e fomento a tutela dos direitos da criança e do adolescente, um grande passo para a concretização de suas garantias fundamentais que antes vinham sendo relativizadas. No entanto, há uma grande distorção no que se refere as diretrizes da lei, e a realidade em que se vive os órgãos relacionados. Deste modo tornando-se inviável a completa efetivação dos preceitos que a referida lei dispõe tanto quanto os direitos da criança e do adolescente.

Deste modo, lei precisa de uma realidade, onde, tanto o Ministério Público, quanto os órgãos da rede de proteção, os órgãos da persecução penal, possam trabalhar de maneira sinérgica e arranjada, promovendo, diante disso a concretização de uma lei eficiente, pois de nada adianta, o direito positivado sem eficácia legal.

 

Notas e Referências

BRASIL, Constituição Federal Brasileira de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 17 de Agosto 2018.

_______, Código Civil de 1916. Lei 3.071/1916. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm. Acesso em: 17 de Agosto de 2018.

      _______, Código Penal Brasileiro. Lei 2.848/1940. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em Outubro de 2018.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias-6ed.rev. atual. E ampl.-São Paulo:Editora Revista dos Tribunais,2016.

Digiácomo, Murillo José, 1969. Estatuto da criança e do adolescente anotado e interpretado / Murillo José Digiácomo e Ildeara Amorim Digiácomo.- Curitiba . Ministério Público do Estado do Paraná. Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente, 2017. 7ª Edição.

Direitos da criança- legislação - Brasil 2. Direitos da criança - jurisprudência - Brasil I. Digiácomo, Ildeara Amorim CDU 347.63(81)(094.46)

_______, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069/1990, Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. Acesso em: 17 de Agosto de 2018.

_______, Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Lei 13.431/2017, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm.  Acesso em: 13 de setembro de 2020.

Nucci, Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: em busca da Constituição Federal das Crianças e dos Adolescentes / Guilherme de Souza Nucci. – Rio de Janeiro : Forense, out./2014.

NOTA TÉCNICA DO CFP SOBRE OS IMPACTOS DA LEI Nº 13.431/2017 NA ATUAÇÃO DAS PSICÓLOGAS E DOS PSICÓLOGOS- http://www.crpsc.org.br/noticias/nota-t-cnica-do-cfp-sobre-os-impactos-da-lei-n-13-431-2017-na-atua-o-das-psic-logas-e-dos-psic-logos

Resolução CONANDA No 113/2006).

      _______, Resolução 554/2009. Conselho Federal de Serviço Social. 15 de setembro de 2009.

      _______, Resolução 10/2010. Conselho Federal de Psicologia. 29de junho de 2010.

http://www.tjpa.jus.br/PortalExterno/imprensa/noticias/Informes/824853-para-vai-implantar-salas-de-depoimento-especial.xhtml

PARÁ. Tribunal de Justiça. PROVIMENTO CONJUNTO Nº 01/2019.Belém, 23 de janeiro de2019.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura