Democracia para os e nos direitos de crianças e jovens: reflexões em alusão à memória da tentativa de golpe de Estado ocorrida em 8 de janeiro de 2023

09/01/2024

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

O dia 8 de janeiro de 2023 será, para sempre, um daqueles dias em que você vai lembrar tanto pelo que representou em si – um ato de extrema-direita para dar golpe de Estado e danificar as instalações dos poderes da República – quanto pelo o que representou simbólica e politicamente: uma ação planejada de tentativa fracassada de deposição da democracia, com envolvimento de empresários, militares e políticos, e que teria consequências inimagináveis para toda a sociedade, incluindo as crianças e jovens.

Em 2024, na semana em que os poderes da República realizam um ato institucional para relembrar as atrocidades cometidas um ano atrás contra a democracia e Estado de Direito, vale a pena refletirmos de que forma a democracia foi, é e será importante para os e nos direitos de crianças e jovens, e na estruturação e implementação da filosofia da proteção integral. O que buscamos afirmar é que não pode haver direitos de crianças e jovens sem democracia, e que os atos golpistas ocorridos naquele fatídico domingo poderiam, caso logrado êxito, ter desmantelado a estrutura social, institucional e normativa que sustenta a cidadania de crianças e jovens.

 

Democracia para os direitos de crianças e jovens

A retomada do regime democrático no Brasil foi crucial para possibilitar a moldura do que, hoje, conhecemos como Doutrina da Proteção Integral dos direitos de crianças, adolescentes e jovens.

Historicamente, a chamada abertura política para a reinstalação do regime democrático – isto é, de eleições para os cargos políticos e melhoria das condições de liberdade política –iniciou em 1974, durante os duros anos de chumbo do regime militar, na gestão do general Geisel, mas foi apenas no período de 1984 a 1988, no contexto da mobilização popular das “Diretas já!” e da atuação da Assembleia Constituinte Nacional, que as condições democráticas efetivamente se sedimentaram. E, foi nesse momento que a atuação de movimentos sociais ligados às pautas de crianças e jovens, como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, foi crucial para a mudança do paradigma normativo, institucional e social que vigorava para a cidadania infantojuvenil.

Para o campo político-militante de defesa de crianças e jovens, é justamente neste cenário de mobilização nacional para garantia da redemocratização e de novos direitos, que se formam as condições materiais para a mudança de patamar da cidadania infantojuvenil. E, frisa-se, em um contexto de retomada democrática em que a disputa sobre o futuro dos direitos das crianças era parte da conquista do próprio regime democrático, havendo, na época, o grupo dos menoristas (favoráveis à adaptação do Código de Menores de 1979 à nova Constituição Federal) e o grupo dos estatutistas (defensores da revogação do Código de Menores e da criação de uma nova lei).

A expressão máxima, desse período, foi a mobilização de crianças e jovens em situação de rua, que foram à Brasília, em 1986, para dizer o que e como queriam que seus direitos fossem garantidos no processo de construção da nova Constituição Federal, e que depois, em 1989[1], retornaram à capital do país e ocuparam o Congresso Nacional para dizer, agora, o que e como querem que seus direitos sejam garantidos no que viria a se constituir como Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. E, mais adiante, em 1992, o movimento dos “caras-pintadas”, de caráter eminentemente estudantil, e que colocou os jovens na liderança da pressão social pelo impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello.

O protagonismo de movimentos sociais e de crianças e jovens na luta por novos direitos e na afirmação da democracia como regime político necessário para a existência da própria luta (com sua diversidade, conflitos e contradições) e, com isso, dos novos direitos, foi e continua sendo uma memória coletiva e histórica que sempre deve ser lembrada como caminho para continuarmos a trilhar e como lição a ser defendida.

Ao longo dos 34 anos que se seguiram à promulgação da Constituição Federal de 1988, e de seu celebre artigo 227, o campo político-militante dos direitos de crianças e jovens tem insistentemente reafirmado o caráter estruturante da democracia para a efetiva proteção dos direitos de crianças e jovens com prioridade absoluta, pois é somente no regime democrático que a sociedade pode disputar a tomada de decisão dos/das agentes políticos/as para com a prioridade absoluta desses direitos, nos espaços de deliberação democraticamente estabelecidos pela Constituição e outras normativas.

E, nisso, a concepção da proteção integral dos direitos de crianças e jovens, que faz deste “integral” um emblema político-filosófico pela ampliação de direitos e sujeitos abarcados, na confrontação a situação irregular e doutrina menorista vigente anteriormente, é, também, como expressão formal da democratização dos direitos e do enraizamento da democracia como base principiológica da cidadania infantojuvenil.

Porém, a presença de governos que desqualificam e desmantelam a participação social na gestão pública[2], as ameaças extremistas de questionamento das eleições e das urnas eletrônicas, e, no limite, de tentativa de golpe de Estado, como visto em 8 de janeiro, de 2023, tornam-se, também, tentativas de golpes à cidadania infantojuvenil pela égide da proteção integral, pois esta não pode existir sem que a democracia também exista, e não pode se fortalecer sem que a democracia também se fortaleça.

 

Democracia nos direitos de crianças e jovens

A proteção integral, que surge juridicamente no Brasil com o advento do artigo 227 da Constituição Federal de 1988, e internacionalmente com a Convenção dos Direitos das Crianças, de 1989, internaliza a democracia como elemento estruturante de suas bases normativas e institucionais, e como condição de efetivação dos direitos.

Em relação à Convenção, o Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas tem reiteradamente afirmado que o direito de ser ouvido, presente nos artigos 12 e 13 do diploma internacional, constitui-se como um dos quatro pilares estruturantes da Doutrina da Proteção Integral, em conjunto com o direito a não discriminação (art. 2º), o melhor interesse da criança (art. 3º, par. 1º) e o direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento (art. 6º).

No Comentário Geral no 12, de 20 de julho de 2009, do Comitê, que trata especificamente na interpretação do direito a ser escutado, o Comitê reforça que este direito tem evoluído para ser reconhecido como um direito à participação (par. 2º) e que a observância de todos os demais direitos contidos na Convenção deve ser guiada pelo cumprimento deste direito-princípio (par. 12). E, tão importante quanto, que não existe limite mínimo de idade ou de grau de amadurecimento para que este direito se efetive, cabendo aos Estados a obrigação de construir as condições adequadas para potencializar a capacidade das crianças de formar e expressar suas opiniões sobre determinados assuntos que lhes interessem, considerando suas diversidades sociais (par. 20-21).

No Brasil, tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 16, inciso VI, quanto (e com maior profundidade de conteúdo) o Estatuto da Juventude (Lei no 12.852, de 5 de agosto de 2013) com toda uma seção específica para tratar “Do Direito à Cidadania, à Participação Social e Política e à Representação Juvenil” (arts. 4º ao 6º), estabelecem o direito à participação de crianças e jovens como base normativa da cidadania infantojuvenil e dever do Estado, da sociedade e da família. Curiosamente, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, não elenca expressamente este direito no rol presente no texto principal do artigo, ainda que possa ser reivindicado como parte dos fundamentos e dos objetivos da República Federativa do Brasil (arts. 1º e 3º).

O direito à participação de crianças, adolescentes e jovens é a expressão do exercício da democracia no campo dos seus direitos e do processo de democratização das instituições (Estado, sociedade e família) na confrontação ao adultocentrismo que ainda hoje busca justificar a injustificável desqualificação ou exclusão dos conhecimentos e ações de tais sujeitos, portanto, de renovar as discriminações baseadas na idade para comprometer a participação de crianças e jovens, e cuja luta anti-adultocêntrica torna-se, por certo, uma luta pela afirmação radical da democracia e da cidadania de tais sujeitos.

Em 2015, nas comemorações dos 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) publicou um relatório em que avaliava o cumprimento dos direitos presentes no Estatuto, e considerou que

“[a]s modalidades de participação infantil podem ser diversas, desde uma consulta de opiniões até processos de organização ou projetos que visem uma maior incidência, a partir do próprio ponto de vista da criança e do adolescente. A participação pode ser considerada um princípio orientador chave, um direito ‘facilitador’, ou seja, seu cumprimento contribui para assegurar o cumprimento de outros direitos; não sendo simplesmente um processo, nem tampouco um meio e chegar a um fim, e sim um direito civil e político básico para todas as crianças e os adolescentes – a participação como condição, e não como concessão” (Conanda, 2015, p. 95).

Nos últimos anos, houve um avanço considerável da participação de adolescentes e jovens nos espaços de tomada de decisão sobre políticas públicas. No caso de adolescentes, com a melhoria da participação nas conferências, via Resolução n. 149/2011 do Conanda, e nos conselhos de políticas públicas, via a experiência do G27[3] e, posteriormente, com a institucionalização do Comitê de Participação Adolescente, vinculado ao Conanda, e com atuação permanente, ainda que em caráter consultivo. No caso dos jovens, toda a estrutura da política nacional de juventude, assentada no tripé institucional da Secretaria Nacional de Juventude, do Conselho Nacional de Juventude e da Conferência Nacional de Juventude, instituídos em 2005, e sempre capitaneadas por representações juvenis de organizações sociais e do governo federal.

Ao mesmo tempo, permanecem os desafios de construir medidas que incluam as crianças, isto é, os sujeitos abaixo de 12 anos de idade, nos espaços de tomada de decisão, com metodologias e linguagens adequadas às suas condições de desenvolvimento e diversidades, e considerando a efetivação do direito à participação da primeira infância. Além disso, de capilarizar as estruturas de participação social para os estados e, sobretudo, para os municípios, muitos dos quais ainda resistentes em garanti-los.

Por outro lado, a democracia é também um princípio da gestão administrativa dos direitos de crianças e jovens. Ela é a base de sustentação das principais inovações institucionais presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, o Conselho Tutelar e o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, de modo a assegurar a participação da sociedade no planejamento, na execução (e, nisso, na articulação da rede de proteção para o cumprimento desta execução) e no monitoramento das políticas públicas, além de ser um preceito implícito nas diretrizes da municipalização do atendimento e da descentralização político-administrativa, que embasam a política de atendimento do Sistema de Garantia dos Direitos, conforme o artigo 88, incisos I e III, do Estatuto. E, nos direitos das juventudes, a sua conformação administrativa em instâncias com forte representação juvenil, dá o tom de que a sociedade e os diversos grupos sociais relacionados à pauta juvenil precisam estar atuantes nas etapas de condução da política.

Não resta dúvida que foi essa base normativa, institucional e social que evitou um desmantelamento mais agressivo dos direitos de crianças e jovens durante a gestão de Jair Bolsonaro (Partido Liberal). Para citar um exemplo, quando o ex-presidente publicou o fatídico Decreto no 9.759, de 11 de abril de 2009, que promoveu a extinção de centenas de colegiados de políticas públicas no governo federal, foi justamente pelo fato dos conselhos de políticas públicas vinculados às pautas de crianças e jovens terem sido instituídos por leis, e não por decretos ou outro instrumento normativo, que evitou com que fossem extintos, ainda que o enfraquecimento tenha ocorrido por outras vias.

Ao mesmo tempo, viu-se ao longo desse período de gestão da extrema-direita no governo federal o avanço preocupante do extremismo ideológico na gestão dos órgãos do Sistema de Garantia dos Direitos, cujo exemplo máximo é o Conselho Tutelar, e a hegemonia que, na atualidade, o conservadorismo político e religioso, de caráter punitivista e discriminatória, possui no processo unificado de escolha de seus representantes, como ocorrido em outubro de 2023,e na gestão deste órgão central de toda a estrutura organizacional do Sistema de Garantia dos Direitos no Brasil.

Por isso, os atos extremistas ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023, foram, também, atos sedimentados e, até mesmo, defendidos pelo extremismo ideológico que permeia as mentes e corações de profissionais da rede de proteção, incluindo os da Segurança Pública. Porém, a derrota destes atos golpistas, e a posterior responsabilização jurídica de todos os agentes envolvidos, incluindo os políticos, é uma resposta contundente de defesa da democracia e do enfrentamento do extremismo ideológico em todos os seus espaços de atuação, incluindo nas instituições voltadas à gestão de políticas públicas de crianças e jovens.

Isso deve ter um impacto especial na educação escolar, para realizar um processo pedagógico de desconstrução dos discursos de ódio, das fake news e de afirmação dos valores democráticos e de direitos. Sim, isso também é um alerta pedagógico às crianças e jovens que compartilham desse extremismo ideológico, para que possam repensar suas práticas e concepções, incluindo o envolvimento em atos extremistas, cada vez mais difundidos nas redes sociais.  

 

Por fim, parafraseando para radicalizar a defesa da democracia e dos direitos de crianças e jovens    

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moares, em entrevista recente ao jornal O Globo, na série de reportagens alusivas ao primeiro aniversário alusivo aos atos extremistas de 8 de janeiro de 2023, quando perguntando sobre a lição que esta data deixa para ele, é taxativo em indicar:

“[a] primeira é impedir a continuidade dessa terra sem lei das redes sociais. Sem elas, dificilmente (os atos golpistas) teriam ocorrido e forma tão massiva. Na parte criminal eleitoral, todos os políticos, quando houver comprovação de participação, devem ser alijados da vida política, além da responsabilidade penal. Quem não acredita na democracia não deve participar da vida política do país” (apud Muniz e Bronzatto, 2024).   

Faço das palavras de Alexandre de Moraes, parafraseando-a, o mote da mensagem que gostaria de deixar no final deste texto para o contexto dos direitos de crianças e jovens: quem não acredita na democracia não deve participar da gestão dos direitos de crianças e jovens, e tampouco dos espaços representativos para sua deliberação. Há uma contradição ontológica e normativa em defender os direitos das crianças e ser contra a democracia, e essa contradição não cabe, e nunca poderá caber, em um Estado Democrático de Direito, como o Brasil se tornou com muita luta, sangue e suor.

Portanto, em alusão à memória dos atos golpistas ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023, cabe-nos enfatizar a predominância da democracia para os e nos direitos de crianças e jovens, com a força politica da voz e ação social de crianças e jovens, e de todas, todes e todos que se somam com eles/elas na luta por um mundo social, econômico e ambientalmente melhor, em que o melhor só é possível disputar e alcançar quando se está em um regime democrático e em processo permanente de democratização dos direitos, das relações e das instituições sociais para o efetivo cumprimento do respeito às diversidades e do enfrentamento das desigualdades, discriminações e do discurso de ódio.  

 

Notas e referências

CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Relatório avaliativo – ECA 25 anos: + direitos – redução. Brasília: Conanda, 2016.

MUNIZ, Mariana; BRONZATTO, Thiago. “Um dos planos era me prender e enforcar após o golpe”, diz Moraes em entrevista um ano depois do 8/1. Jornal O Globo, 04 jan. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/especial/um-dos-planos-era-me-prender-e-enforcar-apos-o-golpe-diz-moraes-em-entrevista-um-ano-depois-do-81-video.ghtml

OLIVEIRA, Assis da Costa. Bolsonaro propõe fim de toda estrutura de participação social na gestão estatal?, diz especialista. Justificando - Carta Capital, São Paulo, p. 1 - 7, 16 abr. 2019. Disponível em: http://www.justificando.com/2019/04/16/bolsonaro-propoe-fim-de-toda-estrutura-de-participacao-social-na-gestao-estatal-diz-especialista/

OLIVEIRA, Assis da Costa. Participação social nos conselhos de políticas públicas na “era Bolsonaro”: o caso do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Interseções – Revista de Estudos Interdisciplinares, 24(1), p. 172-195, 2022. DOI: https://doi.org/10.12957/irei.2022.68332

[1] O documentário Origens do ECA, no seu episódio 1, denominado de “Comunidade de Militante”, relata, de forma cativante, o que foi esse período de mobilização histórica, no contexto da realização do II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, na capital do país. Para assistir, acessar o link: https://www.youtube.com/watch?v=ZvEQqVZC204&t=595s

[2] Sobre o assunto, veja dois artigos (Oliveira, 2019 e 2022) em que analiso as consequências da atuação governamental para a desqualificação e o desmantelamento da participação social na gestão pública, em especial no controle social dos direitos de crianças e adolescentes.

[3] O grupo de 27 adolescentes, representantes dos 27 estados e Distrito Federal, cuja iniciativa, de 2011, foi base fundamental para a organização da VIII Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, e que depois transformou-se em G38 (representantes dos 27 estados e DF, mais 11 representantes das diversidades sociais de ser criança e adolescentes) e, com a Resolução 191/2017 do Conanda, consolida-se como Comitê de Participação Adolescente, vinculado ao Conanda, e com a participação de 47 representantes adolescentes de todo o país.

 

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