Democracia: o outro não duplo de mim – Por Léo Rosa de Andrade

08/06/2016

Não existo senão em relação aos outros que estão no mundo. Quando penso e ajo ajudo a dar forma ao mundo, logo eu constituo os outros. Mas também eu sou produto desses outros no mundo em que estou inserido.

Há uma complexa relação em que o mundo “instala” “programas” de pensamento e ação em meu cérebro. Então, eu, no meu pensar e atuar no mundo a partir do que o mundo me fez pensar sobre o mundo, no mundo interfiro.

Entre mim e o mundo há uma contínua interação dialética. Ao pensar e interferir no mundo com os pensamentos que o mundo “instalou” em mim, penso e interfiro em mim mesmo e no mundo, pois tanto sou quanto estou no mundo.

O mundo e nós mesmos nunca estamos prontos; somos eterna obra em andamento; sou constituído, constituo. Observo o outro, pelo outro sou observado; critico, sou criticado. Elogio ou censuro o outro, do outro recebo incentivo ou interdição.

O mundo andou, andou e veio dar na forma democrática de se organizar. A própria ideia de democracia, contudo, não é coisa facilmente definível. Não há um conceito que encerre o todo que democracia significa.

Há lugares em que a luta democrática é por igualdade entre homem e mulher; noutros, a peleja é por eliminar direitos de casta; ainda há lutas por acesso à educação. Democracia é mundo, somos nós, é movimento, é construção.

Conviver democraticamente com o outro é prática da civilização. A convivência é mais tranquila quando o outro com quem convivo professa as crenças que são as minhas. Aceito facilmente o outro que me é um duplo ideológico.

O desalinhado dos meus alinhamentos, contudo, me será estranho. O sujeito político das sociedades que se discursam democráticas, todavia, se devem, ainda, a si mesmos a aceitação do outro que não lhe é uma réplica ideológica.

Os processos civilizatórios erigem categorias de entendimento. São noções essenciais e amplamente aceitas, assentando-se sobre a vida pública e privada. Durkheim diz que são as noções essenciais que dominam a vida intelectual.

Eu diria que essas categorias são representações da coletividade que permitem o trânsito de ideias, os entendimentos, as formulações de programas comuns. Elas expressam, como construções sociais que são, circunstâncias históricas.

As circunstâncias históricas brasileiras, entretanto, parece que anularam nossas categorias de entendimento. Aparentamos viver em dissonância cognitiva. É como se estivéssemos em negação de trânsito do diferente, de recusa do outro.

Atores sociais formam-se em alinhamentos ideológicos (recordo o filme A Onda, Dennis Gansei, 2008), ocupam redes sociais, falam para os seus e declaram ódio aos outro. Falam? Rosnam frases prontas, em geral.

Esses grupos são, de si para consigo, intérpretes do passado e salvadores do futuro. Estão empafiosos de suas conclusões e convictos de que o “inimigo’’ é alienado. Uns veem golpe nas instituições, outros querem ditadura para salvar o institucional.

Em resumo, a intelligentzia brasileira, regra geral, formou posição em duas sectárias cidadelas: uma é coxinha, outra é mortadela. O encaminhamento do debate político nacional está capturado por essas expressões de rancor.

Isso conspira contra a vida democrática. Estar convencido de que se é titular da leitura correta do mundo não basta para se viver democraticamente. O democrata sabe “minimizar” suas concepções para “ler a tela” do outro.

Quero dizer que não é suficiente “ter razão”, ainda que se a tenha. Nem é suficiente, “com razão”, persuadir o outro. É necessário abrir-se, por democrática determinação própria, ao argumento do outro, que bem poderá estar correto.

Não há democracia de um pensamento só. A suspeita metódica das próprias convicções compõe os pressupostos da vida em comum. Persuadir é demonstrar conveniência, não é organizar claque. Legitimar é bem mais que legalizar.

O outro não duplo de mim não é deletável; é o interlocutor de minhas ideias. Ao desalinhado de mim, nem coxinhada, nem mortadelada, argumento. A partida democrática é sempre com o adversário. Sem o outro acabou a jogada.


 

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