Não existo senão em relação aos outros que estão no mundo. Quando penso e ajo, eu interfiro, ajudo a dar forma ao mundo, logo eu constituo os outros. Mas também eu sou resultado desses outros no mundo em que estou inserido. Sou efeito das circunstâncias.
Há uma complexa relação em que o mundo “instala” “programas” de pensamento e ação em meu cérebro (ideologias). Então, eu, no meu pensar e atuar no mundo a partir do que o mundo me fez pensar sobre o mundo, no mundo interfiro enquanto o mundo em mim interfere.
Entre mim e o mundo há uma contínua interação dialética. Ao pensar e interferir no mundo com os pensamentos que o mundo “instalou” em mim, penso e interfiro em mim mesmo e no mundo, pois tanto sou quanto estou no mundo. A essa relação podemos chamar de História.
O mundo e nós mesmos nunca estamos prontos; somos eterna obra em andamento; sou constituído, constituo. Observo o outro, pelo outro sou observado; critico, sou criticado. Elogio ou censuro o outro, do outro recebo incentivo ou interdição. Eis as relações de poder.
A História foi movida, moveu-se, veio dar na forma democrática liberal de se organizar. A própria ideia de democracia, contudo, não é coisa facilmente definível. Não há um conceito que encerre o todo que a democracia significa. É que a democracia é História em movimento.
Há lugares em que a luta democrática é por igualdade entre homem e mulher; noutros, a peleja é por eliminar direitos de casta; ainda há lutas por acesso à educação. Democracia é mundo, somos nós, é movimento, é construção. Democracia é sempre “insuficiente”.
Conviver democraticamente com o outro é prática da civilização. A convivência é mais tranquila quando o outro com quem convivo professa as crenças que são as minhas. Aceito facilmente, porque me reconheço nele, o outro que me é um duplo ideológico.
O desalinhado dos meus alinhamentos, contudo, me será estranho. O sujeito político das sociedades que se discursam democráticas, todavia, se deve, ainda, a si mesmo, a aceitação do outro que não lhe é uma réplica ideológica. A democracia se realiza entre diferentes.
Os processos civilizatórios erigem categorias de entendimento. São noções essenciais e amplamente aceitas, assentando-se sobre a vida pública e privada. Durkheim diz que são as noções essenciais que dominam a vida intelectual. Eu diria: valores compartilhados.
Conceitualmente, essas categorias são representações da coletividade que permitem o trânsito de ideias, os entendimentos, as formulações de programas comuns. Elas expressam, como construções sociais que são, circunstâncias históricas. “Pontos” de reconhecimento.
As circunstâncias históricas brasileiras, entretanto, parece que anularam nossas categorias de entendimento. Aparentamos viver em dissonância cognitiva. É como se estivéssemos em negação de trânsito do diferente, de recusa do outro. Há casos de eliminação física.
Atores sociais formam-se em alinhamentos ideológicos (ver o filme A Onda, Dennis Gansei, 2008), ocupam redes sociais, falam para os seus e declaram ódio aos outros. Falam? Em geral, rosnam frases prontas. Esses grupos acreditam em líderes, gostam de ser liderados.
Esses grupos são, de si para consigo, intérpretes saudosistas do passado versus salvadores de um futuro idealizado. Empafiosos de suas conclusões e convictos de que o “inimigo’’ é alienado, uns veem golpe nas instituições, outros querem ditadura para salvar o institucional.
Em resumo, a intelligentzia brasileira, regra geral, formou posição em duas sectárias cidadelas: há um tempo, coxinha e mortadela; hoje domina o gosto por Bolsonaro ou Lula. O encaminhamento do debate político nacional está capturado por essas expressões de rancor.
Isso conspira contra a vida democrática. Estar presumido de que se é titular da leitura correta do mundo não basta para se viver democraticamente. O democrata sabe “minimizar” suas concepções para “ler a tela” do outro. Não digo aceitar o conteúdo, mas contravertê-lo.
Quero dizer que não é suficiente ter razão, ainda que se a tenha. Nem é bastante, com razão, derrotar o outro. É necessário abrir-se, por democrática determinação própria, ao argumento do outro, que, em tese, pode estar correto. Em resumo: ganhar a discussão não é persuadir.
Não há democracia unilateral. Na vida em comum, a suspeita das próprias convicções é um método a observar. Persuadir é demonstrar pertinência, não é organizar claque. Legitimar é mais que formar maioria; é fazer-se acatado ao fim de um procedimento, como o eleitoral, por exemplo.
O outro não duplo de mim não é deletável; é o interlocutor necessário de minhas ideias. Ao desalinhado de mim eu sempre devo um argumento. A partida democrática é sempre com o adversário. Sem o antagonista, não acabou a jogada; acabou o jogo: o jogo democrático.
O jogo democrático é plástico, não finca posições. Os jogadores inventam sobre os fatos e constroem o porvir. É um jogo em que outros que não nós mesmos trazem argumentos que se devem considerar. Nós empacamos; paramos a História; rodamos sobre nós próprios.
Em pleno estado de ódio, que comumente nos vem do medo, não só recusamos o outro aparente, mas rechaçamos qualquer outro advindo de fora das nossas bitolas grupais. Queremos a nossa turma, a nossa certeza, enfim, a nós mesmos, ainda que como farsa de repetição.
Os brasileiros subjetivamos uma equivocada ideia de consenso: o “nosso” versus o “deles”. Submissão a um rebanho referente. Pensamento binário e hegemônico. Um triste presente versus o retorno a um triste passado. E quanto ao futuro? Nada? Há outras imaginações por aí.
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