O que acontecesse se a Democracia[1] olhasse em seu retrato como fez Oscar Wilde na obra “O Retrato de Dorian Gray”[2]? A Democracia, hoje, reitera o seus princípios e suas bases nas quais foi criada no período helênico e moderno ou conseguiu subverter a suas principais características e se torna tão somente governo de poucos, ou seja, passa do governo de todos outros modelos como plutocracia? Os atuais valores considerados instrumentais se tornaram fundamentais e essa é a imagem que nossa Democracia tem de si ao estilo de Dorian Gray.
Quando a Democracia não consegue reforçar as questões de integração entre as pessoas, de reconhecimento das diferenças, de se transfigurar graças aos novos estilos de se pensar, de se agir e de se conviver, parece - especialmente no século XXI – que se optou pelas posturas egoístas e o projeto Sociedade é apenas uma fachada a fim de afirmar: é (im)possível a vida fundada no estar-com.
Na medida em que o tempo passa e a Democracia evita o seu olhar para aquela pintura na qual se imortalizou, essa deixa de ver o que é, ou seja, deixa de enxerga tudo o que o desmedido uso de sua liberdade permitiu: ódio, miséria, entorpecimento do corpo: a pura manifestação da decadência. Nada menos glorioso que uma Democracia nada virtuosa e incapaz de suscitar a prática de hábitos que corroborem o desvelo de nossa humanidade e de sua intransigente defesa, desde o “cidadão de bem” ao mais pérfido canalha.
Por todos esses motivos, o resgate de uma Democracia mais direta e participativa deve se amoldar a uma questão de responsabilidade cidadã. Talvez, nesse ponto, esteja a nossa soproshyné[3] coletiva. Ao contrário do que ocorreu com a elite intelectual europeia do século XIX, quando se retirou a responsabilidade do cidadão por esse ser inepto a tomar suas próprias decisões, devemos recobrar todas as responsabilidades e trabalhar em conjunto ao modelo representativo. Viver, com mais intensidade, as sensações do momento presente e suas demandas históricas ao aperfeiçoamento desse estar-junto-com-o-Outro-no-mundo. Eis uma possível “iluminação” que surge na Pós-Modernidade e seu projeto de Ética[4].
Nós, cidadãos, não podemos abdicar da nossa cota de responsabilidade para construção de espaços comuns de maior debate, de maior proximidade, de tomadas de decisões coletivas que se apresentam no nosso cotidiano. Talvez seja necessário elaborar um modelo híbrido - como já se observou, por exemplo, em várias situações da nossa cultura[5] - para se manter a comunicação entre os que detém o poder formal – conquistados pela via do voto -, mas, também, de unir essas obrigações com as dos cidadãos para a fim de se representar interesses exclusivamente republicanos.
Nesse caso, requer-se, ainda, um conceito mais amplo de Cidadania, bem como de outros instrumentos que sejam colocados à disposição das pessoas para exercer esse direito, pois, caso contrário, o que se enxerga são os absurdos – semânticos e governamentais - que se identifica tanto no atual governo como nas palavras e atitudes das pessoas que elegeram o Poder Legislativo e Executivo.
A população brasileira não conseguiu enxergar que as respostas fáceis, imediatas, não existem, nem, tampouco, as transformações abruptas desejadas quando estão em perigo valores fundamentais como liberdade, Igualdade Fraternidade, Justiça, Ética, Solidariedade entre outros. Esses são os principais aspectos de uma Democracia entendida tanto no período helênico quanto no período moderno e são essas condições que nós não respeitamos atualmente.
Nessa linha de pensamento a simples regra quantitativa da Democracia não significa que essa esteja acompanhada da sua condição qualitativa, ou seja, não é porque a maioria decidiu de uma forma que esse fato signifique a melhor resposta para a consolidação de uma sociedade pacífica que venha incluir, que venha respeitar as pessoas em todas as suas diferenças.
Na ausência desses pressupostos, e lembrando Darcy Ribeiro[6], a Democracia – representada por todos nós - parece o retrato de Dorian Gray na sua forma de caída, algo semelhante a nossa classe média[7] ranzinza, medíocre, azeda que tem como único exclusivo interesse alcançar os padrões de riqueza material daqueles 1% (um por centro) da população mundial detém.
Se formos pensar e conviver sob os fundamentos da Democracia, precisamos olhar outros horizontes, precisamos continuar a se reconhecer em cada pessoa, em cada humanidade escondida no Outro, pois, caso contrário, a Democracia verá apenas a imagem de sua própria decadência na exata expressão de Jacqués Ranciére[8]: a Democracia se enxerga apenas como puro ódio do Outro contra o Outro.
Notas e Referências
[1] Entende-se Democracia como “[...] um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos [...]”. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 9. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 30/31.
[2] WILDE, Oscar. The collected works. London: Wordsworth, 2007.
[3] Vernant destaca que o caráter mediador da sophrosyne “[...] dá à areté grega um aspecto mais ou menos ‘burguês’: é a classe média que poderá desempenhar na cidade o papel moderador, estabelecendo um equilíbrio entre os extremos dos dois bordos: a minoria dos ricos que querem tudo conservar, a multidão das pessoas pobres que querem tudo obter”. VERNANT, Jean-Pierre. A origem do pensamento grego. 17. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2008, p. 89/90.
[4] “O ‘nós’ que está por um ‘partido moral’ não é, portanto, plural do ‘eu’, mas um termo que conota uma estrutura complexa que liga juntas unidades de posição nitidamente desiguais. Num relacionamento moral, eu e o Outro não são intercambiáveis e assim não se podem ‘acrescentar’ para formal um plural ‘nós’. Num relacionamento moral todos os ‘deveres’ e ‘regras’ que se possam conceber são dirigidos só a mim, obriga só a mim, constitui-me a mim e só a mim como um ‘eu’. Quando dirigida a mim, a responsabilidade é moral. Ela pode perder seu conteúdo moral completamente no momento que eu tento virá-la para obrigar o Outro”. BAUMAN, Zygmunt. Ética Pós-Moderna. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 61/62.
[5] “[...] entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. [...]. A construção lingüística [...] e a social [...] do conceito de hibridação serviu para sair dos discursos biológicos e essencialistas da identidade, da autenticidade e da pureza cultural. Contribuem, de outro lado, para identificar e explicar múltiplas alianças fecundas: por exemplo, o imaginário pré-colombiano com o novo-hispano dos colonizadores e depois com as indústrias culturais [...], a estética popular com a dos turistas [...], as culturas étnicas nacionais com as metrópoles [...] e com as instituições globais [...]. os poucos fragmentos escritos de uma história das hibridações puseram em evidência a produtividade e o poder inovador de muitas misturas interculturais”. CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. 4. ed. 3. reimp. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. XIX-XXII.
[6] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SX5O-IAyO38. Acesso em: 19 de fev. 2019.
[7] “A classe média real, por sua vez, se vê como “elite”, contribuindo para um autoengano fatal e de consequências terríveis para o destino da sociedade brasileira e da própria massa da classe média”. SOUZA, Jessé. A classe média no espelho: Sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. [recurso eletrônico Kindle]. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018, pos.167-170.
[8] “[...] A vida democrática torna-se a vida apolítica do consumidor indiferente de mercadorias, direitos das minorias, indústria cultural e bebês produzidos em laboratório. Ela se identifica pura e simplesmente com a ‘sociedade moderna’, que ela transforma ao mesmo tempo em uma configuração antropológica homogênea”. RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 43.
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