Democracia e discursos de ódio

15/04/2017

Por Henrique Abel – 15/04/2017

Há poucos dias, o deputado federal Jair Bolsonaro palestrou no clube Hebraica do Rio de Janeiro. Seus comentários depreciativos a respeito de comunidades indígenas e quilombolas reacenderam questões problemáticas sobre os limites da liberdade de expressão. Cada vez que personalidades públicas de discurso mais agressivo soltam uma nova "pérola", as pessoas se perguntam: esse sujeito pode dizer essas coisas publicamente? Isso não é crime? Não é racismo? A pessoa que fomenta discursos de ódio não deveria ser processada e punida? A liberdade de expressão não deveria ter limites jurídicos?

Há, nesse caso, questões simples e questões mais complexas. As questões simples, aqui, são: primeiro, qualquer pessoa que se sinta ofendida pelas palavras de Bolsonaro pode, sim, processá-lo por danos morais, na forma da lei.

Segundo, as declarações feitas pelo deputado estão no limite da prática de racismo, que a Constituição Federal (Art. 5º, XLII) configura como "crime inafiancável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão". O tipo penal propriamente dito está previsto no Art. 20 da Lei 7.716/89: "Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa".

Significa dizer: sim, é possível que Bolsonaro tenha praticado crime de racismo.

Estas são, portanto, as conclusões simples sobre o problema dos limites da liberdade de expressão. Não, não podemos sair por aí dizendo qualquer coisa sobre qualquer pessoa. Agindo assim, estamos sujeitos a eventual dever de indenizar por danos morais aquelas pessoas que ofendemos. Da mesma forma, estamos sujeitos a cometer crime de injúria, calúnia, difamação ou até mesmo injúria racial (Art. 140, § 3º do Código Penal) ou racismo.

Todavia, as questões realmente complexas a respeito dos limites da liberdade de expressão começam a surgir quando saímos da seara do Direito Penal e da responsabilidade civil e entramos no terreno da filosofia política e do Direito Constitucional.

Os chamados "discursos de ódio" constituem uma questão problemática para as democracias ocidentais há décadas. Grupos envolvidos com práticas desse tipo são comuns nos Estados Unidos e em diversos países europeus. Talvez um dos casos mais delicados seja o dos grupos neonazistas na Alemanha, um país que levou adiante um trabalho cultural muito sério no sentido de confrontar os erros de seu passado recente. Em um primeiro momento, a ideia de ver pessoas novamente pregando o nazismo em plena Alemanha pode parecer insuportável e inaceitável.

Há muito tempo, vejo como problemática a estratégia de resolver o problema dos discursos de ódio por meio da proibição e da ameaça de prisão. Essa desconfiança aumentou depois que conheci a posição de Eric Heinze sobre o tema.

Em outubro de 2015, assisti uma palestra do professor Heinze no Wolfson College da Universidade de Oxford. Na ocasião, ele apresentava aos presentes o argumento que seria desenvolvido em seu próximo livro, Hate Speech and Democratic Citizenship, que veio a ser lançado no ano seguinte. O argumento de Heinze pode ser resumido da seguinte forma: a democracia contemporânea não é mais aquela do liberalismo clássico, na qual as autoridades "iluminadas" e "instruídas" se reuniam para decidir "o quanto de liberdade deveriam dar ao povo". Pelo contrário: na democracia contemporânea, a liberdade de expressão se converte em atributo essencial da própria ideia de democracia, deixando de ser meramente um "direito individual" passível de modulação.

Heinze sugere que a censura a "discursos de ódio" não apenas é incompatível com a democracia contemporânea como, além disso, é ineficiente no combate a estes discursos. Ao transformar o discursante em "perseguido" e ameaçá-lo com "mordaça", só o que o Estado faz, na verdade, é dourar a postura e as ações do "hate speecher" com um verniz de "luta contra a tirania". De falador de cretinices, o discursante é alçado à condição de perseguido, de mente temida, de portador de verdades que perturbam os poderosos. Em síntese, o hate speecher é transformado em freedom fighter. Justamente por isso, não é de se estranhar que países europeus que combatem ferozmente os discursos de ódio por meio do direito penal estejam frequentemente diante de uma proliferação cada vez maior dos próprios discursos de ódio que se busca combater.

Eu sei que uma leitura desse tipo não é necessariamente fácil de digerir. E se conviver com discursos de ódio parece difícil no Brasil, imagine na Europa, onde a lembrança dos horrores do nazismo e do fascismo ainda se faz imensamente presente e onde o medo do terrorismo originado por discursos de ódio é imenso e permanente. Na ocasião da palestra, pude perceber que muitas das pessoas presentes estavam indignadas com a tese de Heinze e ele respondeu uma série de questionamentos ao final do encontro, focados sobretudo no medo das consequências dos discursos de ódio. Para muitas pessoas, parece natural - talvez até imperativo - que os discursos de ódio sejam prontamente coibidos pela autoridade estatal. O que a maioria dessas pessoas talvez não tenha se dado conta é do fato de que esse tipo de postura também traz consequências, potencialmente tão ou mais preocupantes do que o próprio discurso de ódio que se quer combater.

Para concluir: se não gostamos do que o deputado Bolsonaro fala, deveríamos pensar menos em termos de puní-lo e mais em termos de entender as razões pelas quais o discurso dele tem encontrado recepção calorosa em uma parcela tão significativa da sociedade brasileira. O discurso de Bolsonaro não se harmoniza com preceitos elementares da democracia contemporânea e nem com o projeto de país consagrado na Constituição Federal de 1988, e por isso deve ser combatido. Mas deve ser combatido na arena das ideias, do debate, da desconstrução de seus preconceitos e exposição de seus falsos fundamentos, e não por meio do proibitivismo, do tacão do direito penal ou de qualquer tipo de censura. Esse tipo de coisa apenas glorifica, no campo da moral, um discurso político rasteiro. Transforma o discursante em "herói", num corajoso Davi que não tem medo de dizer "a verdade" na cara de um Golias autoritário e intransigente. Se o discurso que queremos combater é preconceituoso e irracional, quanto mais oportunidades de fala o discursante tiver, tanto mais as suas contradições e limitações serão expostas.

Quando é que o discurso de ódio deve ser interditado pelo Estado? Simples: quando se converte em crime, instigação ao cometimento de crime ou planejamento de crime. Um ato, instigação a um ato ou planejamento de ato podem ser objeto de punição. As ideias, por sua vez, não devem ser criminalizadas - por mais estúpidas que sejam. Até porque, vale lembrar que esse tipo de conduta abre precedentes para que, amanhã ou depois, as autoridades possam criminalizar discursos e ideias que eu e você consideramos perfeitamente racionais e aceitáveis.


henrique-abelHenrique Abel é Doutor em Direito pela UNISINOS/RS, com período de estágio doutoral como Visiting Student da School of Law of Birkbeck, University of London (2015). Advogado militante. Autor do livro "Positivismo Jurídico e Discricionariedade Judicial" (Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2015). Associado Efetivo do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul - IARGS. Professor do Curso de Direito da Ulbra - Torres.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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