Democracia constitucional: um paradoxo? um diálogo, ainda que breve, com Luhmann, Habermas e Derrida – Por Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

18/05/2016

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O que é democracia? Nas tradições da teoria política, democracia não é aquela forma de governo cujas decisões são tomadas pela maioria? Todavia, mesmo onde uma maioria governa, a minoria não teria direitos assegurados? Se a resposta for sim, como assegurar direitos às minorias, em face das decisões da maioria governante? Atribuindo-se a uma instituição, ao judiciário, por exemplo, um poder contramajoritário? Assim, todas as vezes que a maioria lesasse direitos das minorias, o judiciário estaria autorizado a proteger esses direitos. Mas quem autorizaria, numa democracia, o judiciário, que sequer é eleito, a controlar as decisões majoritárias que supostamente violariam direitos das minorias? Resposta: A constituição. Mas por que uma constituição autorizaria o judiciário a controlar decisões tomadas pela maioria, para que elas não firam direitos das minorias? A constituição, nesses termos, não seria contrária à democracia? Resposta: Não, se entendermos que a constituição não foi estabelecida nem pela maioria, nem pela minoria, mas pela nação. A nação, portanto, acima das maiorias e das minorias, é quem soberanamente estabelece a constituição do estado para que, dentro do estado, decisões tomadas por maioria não violem os direitos das minorias. A nação é o fundamento de todo poder e de toda autoridade. Mas quem autoriza a nação a estabelecer uma constituição, que autoriza o judiciário a controlar decisões majoritárias, para que essas decisões não violem direitos das minorias? A própria nação. Pois se trataria de uma questão de fato, não de direito, ou, pelo menos, não de direito “positivo”, quem sabe “moral”, já que todo direito é posto pela nação? Não há direito sem nação. Mas se a nação cria o direito, quem cria a nação? Ora, uma nação se cria. Mas como uma nação se cria? Por uma fatalidade da história ou a história teria um sentido imanente? De toda forma, como um “fato” se afirma como nação, dotada de soberania, para estabelecer uma constituição, que autoriza o judiciário a controlar a maioria, que toma suas decisões, desde que não fira os direitos da minoria? Uma nação impõe-se pela sua própria soberania. No final, quer dizer, no princípio, está a própria soberania, ou seja, uma força que a todos submete e que não se submete a ninguém. Mas por que a nação quereria estabelecer uma constituição do estado em que, por um lado, as decisões fossem tomadas pela maioria, e, por outro, que as maiorias pudessem ser controladas pelo judiciário, para que a maioria não pudesse violar o direito das minorias? Se a nação é soberana para assim decidir, ela poderia ter decidido de outro modo, por exemplo, que a minoria governe sobre a maioria, ou seja, ter decidido por um governo de poucos ou até mesmo de uma só pessoa? A nação estaria obrigada a decidir pela democracia? O que faz com que a nação decida pela democracia? Ela teria, em princípio, outras opções? Por que não delegar a um ou a poucos o poder de tomada de decisão? Há um fundamento último para essa opção? Ou se trata, pois, sempre de uma escolha com certa margem de arbitrariedade? E, ao fazer essa escolha, quem interpreta as decisões da nação? Quem fala pela nação? A nação fala por si mesma? Não, para isso existe o estado. O estado encarna a nação, representa-a, no sentido de torná-la presente, para si mesma e para todos. O estado é a representação política da nação. E se o estado é a representação política da nação, quem representa o estado? O governo representa o estado. E, numa democracia, quem governa é a maioria. Se o governo da maioria representa o estado e se o estado representa a nação, em última análise, o governo representa a própria nação. Re-presenta – o governo é quem torna presente, quem atualiza, portanto, a nação. Ora, se o governo da maioria re-presenta a nação, se é ele quem incorpora o papel da nação, para que ou por que se falar em direitos para minorias, contra as decisões da maioria governante, e, mais ainda, decisões, essas, que seriam controladas pelo judiciário, ainda que fosse eleito pela maioria? Como falar em constituição, que garante as minorias em face das maiorias se a própria maioria governante representa a nação? Constituição, judiciário, direitos, minorias, para que ou por que tudo isso se a própria maioria governa representando a nação, se a maioria encarna a nação, se a maioria é, pois, a nação no governo, se o governo é a própria representação da soberania nacional? Assim, só se pode falar em constituição, judiciário e direitos, numa democracia, tão-somente nos próprios termos estabelecidos pelas decisões da maioria governante que, em qualquer tempo, re-presenta a nação, torna presente a nação, inclusive para si mesma, de tal sorte que, como num jogo de “espelhos” (Hobbes), o governo majoritário é, portanto, identifica-se com, a própria soberania nacional que se re-presenta? E de tudo isso resulta que certas instituições, como a constituição, que assegura direitos às minorias, seriam, por consequência, ingovernáveis e antidemocráticas, por serem, justamente, contramajoritárias?

Afinal, uma democracia constitucional não seria, assim, uma união paradoxal de princípios contraditórios (para perguntar com Habermas, 2005), a se fundamentar, em última análise, numa mera tautologia? Ou, então, quem sabe, a democracia talvez não deva ser reduzida tão-somente a uma mera forma política de governo cujas decisões são tomadas pela maioria? Ou quem sabe o constitucionalismo e sua garantia de direitos não devam ser tão-somente tomados como contramajoritários? Afinal, o que é democracia? Governo da maioria? Política da maioria? O que é constituição? Um limite para o exercício do poder? A democracia é incompatível com uma constituição garantidora de direitos porque limitadora do governo majoritário? Como, pois, desconstruir as relações/distinções dinâmicas, não contemporâneas a si, a différance, portanto, para usar os termos derridianos (Cf. Ramond, 2001, p. 20-23; p. 25-28), entre direito e política, entre política e democracia?

Para refletir sobre isso, proponho um diálogo, ainda que breve, com Luhmann, com Habermas e, sobretudo, com Derrida.

A inovação semântica do conceito de constituição moderna é acompanhada e acompanha, ao longo do processo de modernização social do direito, o que se poderia chamar de deslocamento temporal acerca da questão do fundamento de validade do direito, do passado para o futuro. Da constituição medieval, mista, como conjunto de tradições jurídicas que se conformam à identidade cultural de uma sociedade política, no sentido da recuperação da chamada constituição material, à constituição moderna como “estatuto jurídico do político” e, adiante também, como “medida material da sociedade”, no sentido de Konrad Hesse. Mas como a constituição moderna passa a articular memória e projeto, entrevendo suas relações com o tempo?

Bernard Bailyn, historiador da revolução norte-americana, em The Ideological Origins of the American Revolution (2012), procura mostrar como no curso dos debates entre os antigos colonos da América do Norte e o Parlamento britânico, às vésperas da ruptura com a Inglaterra, uma distinção inventa-se, entre um direito constitucional e um direito inconstitucional, por meio da introdução de uma assimetria, por um lado, entre um direito superior no próprio interior do direito e, por outro, o demais direito que àquele direito superior deve submeter-se, sob pena de invalidade/ilegitimidade. As leis coloniais do Parlamento são, da perspectiva dos colonos norte-americanos, inconstitucionais, porque violam o princípio constitucional inglês do no taxation without representation. Um princípio do commom law que, em última análise, diga-se de passagem, havia levado, ao longo do século XVII, como bem nos mostra Maurizio Fioravanti em Costituzione (1999), à justificação jurisprudencial da supremacia da lei do Rei no Parlamento, do King in Parliament.

Do lado norte-americano do Atlântico essa distinção ali inventada entre um direito que é constitucional e um direito que não é direito porque é inconstitucional possibilita, pois, com o processo de independência, reconhecer, por um lado, na constituição do federalismo, como nos lembra Hannah Arendt em On Revolution (1963), a base institucional de uma nova sociedade política e, por outro, o caráter de supremacia de uma lei que é expressão de uma promessa mútua e fundação de uma nova república, em outras palavras, a supremacia dessa constituição em face do legislativo, ao mesmo tempo que se cria jurisprudencialmente - e de forma tensa com, nessa e dessa constituição do federalismo - um controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e dos atos normativos do executivo, da administração, como desdobramento e confirmação a posteriori do ato de fundação, portanto, que essa constituição mesma expressa.

Do lado francês do Atlântico a distinção entre poder constituinte e poder constituído também procura lidar com o problema da ausência de um fundamento absoluto, de uma tradição que se perdeu. O Terceiro Estado não é nem constituído nem inconstitucional, é constituinte, como diz Emmanuel Sieyes. Sua soberania nacional consiste em instaurar uma nova distinção acima de toda distinção. Um poder constituinte que expressa ao mesmo tempo, como diria Luhmann, um direito e um poder paradoxalmente ilimitados de autolimitar-se.

Esse deslocamento temporal do direito do passado para o futuro é observado em Luhmann (1996; 2012) como inerente à própria positivação do direito: a constituição é uma aquisição evolutiva, uma estrutura, um acoplamento estrutural, que possibilita a) prestações recíprocas entre direito e política enquanto sistemas funcionalmente diferenciados, b) e, assim, diferenciar tanto uma política que é direito de uma política que não é direito ou um direito que é constitucional de um direito não ou mesmo inconstitucional, paradoxalmente reduzindo e mantendo complexidade e c) deslocar a questão da validade para o futuro na medida que qualquer norma jurídica estaria em princípio passível de um controle a posteriori de constitucionalidade. O que em outras palavras significaria dizer que o fundamento de validade do direito desloca-se para o futuro, para a possibilidade de sua validação a posteriori, em função da positivação ou da recorrência das operações do sistema. Algo que, de certa forma, já estava presente na teoria kelseniana da revolução e do poder constituinte: em Kelsen (2009), somente se pode retrospectivamente, ou seja, futuramente, falar da validade do sistema jurídico, uma vez que somente no futuro se pode constatar a condição para se pressupor a validade do sistema, para se pressupor a norma fundamental: a condição de eficácia geral.

Esse deslocamento temporal do direito, do passado para o futuro, é reconstruído em Habermas (2005; 2013) como a abertura da constituição para o futuro. Em seu debate com Frank Michelman sobre o problema do fundamento, ao mesmo tempo jurídico e político, da democracia constitucional, que se remete à própria plausibilidade do ponto de vista histórico da tese da relação interna entre Estado de direito e democracia, Habermas sustenta a posição segundo a qual se deve interpretar a busca por um momento constituinte e do próprio risco nessa busca de um regresso ao infinito como sendo a exigência de compreensão do caráter de abertura ao futuro das constituições democráticas, e não a busca de um ponto de fechamento no passado, de uma espécie de fiat jurídico ou político. Ou seja, de que elas, as constituições democráticas, podem ser interpretadas como um processo político e social de aprendizagem de longo prazo, no curso do tempo histórico, sujeito a tropeços, mas capaz de corrigir a si mesmo. O que em última análise relativiza as distinções entre poder constituinte e poder constituído, uma vez que no exercício da sua autonomia pública, ao longo do tempo, os próprios cidadãos podem rever as condições materiais justas de garantia do exercício da sua autonomia privada sem, contudo, dela poder dispor, porque condição da própria autonomia pública.

Esse deslocamento temporal do direito do passado para o futuro é desconstruído em Derrida (2005) como a caracterização da fundação como promessa. E promessa irrealizável na medida em que paradoxalmente o direito jamais coincidirá plenamente com a justiça e, com isso, a justiça será sempre a possibilidade de desconstrução de sua própria distinção, distância, diferança, com o direito.

Todavia, com a concepção de por vir em Derrida radicaliza-se uma nova perspectiva sobre a relação entre direito e tempo, que bem pode ser explorada no sentido das preocupações centrais de um autor como Marramao (2005) em seu diálogo crítico com a distinção em Koselleck entre campo de experiência e horizonte expectativa: a questão da hipertrofia moderna do futuro à custa da redução do passado e da perda do presente – a chamada síndrome da pressa. Derrida, como sabemos, fala em por-vir (avenir) – abertura - e não em futuro (futur) - fechamento.

Pois se Luhmann ainda guarda a preocupação de uma descrição sociológica do direito como dever-ser - entenda-se, da norma como expectativa generalizada de comportamento, como programa condicional -, de um dever-ser que desloca o devido do passado ao dever do futuro, ainda que se admita a sua contingência.

E em Habermas se resgata, ainda que numa visão pós-hegeliana, mas não necessariamente anti-hegeliana, um devir do direito, ainda que admita a sua abertura à contingência.

Em Derrida já se pode falar, da perspectiva da justiça como desconstrução ou possibilidade permanente de desconstrução, numa justiça por vir, no seu caráter hiperbólico, extra-vazador e insaturável.

Mas também, e para além dele, Derrida, no que seria um constitucionalismo por vir. Um constitucionalismo cujo fundamento ausente não está simplesmente deslocado do passado para o futuro, mas aberto ao por vir, sem condições. Um constitucionalismo out of joint, cuja legitimidade jamais se fecha, guarda contemporaneidade ou coincide a si, como presença a si: uma ausência, não uma falta, e que se abre ao “outro da justiça”, da justiça como possibilidade permanente de desconstrução. Como afirmei na obra Constitucionalismo e História do Direito (2011),

“O constitucionalismo democrático não possui necessariamente uma legitimidade vivida como falta de um fundamento último, como uma espécie de nostalgia desse fundamento, como dor e obsessão da perda de fundamento último, soberano, enfim, como se um fundamento último fizesse falta ao constitucionalismo democrático. O fundamento último e soberano não faz falta. Ao contrário, o constitucionalismo democrático lança-se, pois, aqui e agora, a um por-vir, a um futuro-em-aberto, como projeto falível, mas no sentido de que o presente pode ser o futuro de um passado que agora é redimido pelo agir político-jurídico, constitucional, que o constitui. Essa abertura remete à própria questão da legitimidade vivida como vazio, não mais passível de ser preenchido, e como ausência assimilada – e não como faltade fundamento último, ao processo jurídico-político de construção da legitimidade por meio da realização no tempo histórico da relação interna entre as noções de autogoverno e de iguais direitos individuais de liberdade, concretizadores de uma noção complexa de autonomia”. (Cattoni de Oliveira, 2011, p. 234-235)

Numa chave de leitura com e além de Derrida, que busca recepcionar parte das críticas de Ranciére (2012) a Derrida, eu diria que, no marco do que poderia ser considerado um constitucionalismo por vir, em que direito jamais se identifica totalmente com as exigências principiológicas do constitucionalismo, a constituição democrática seria não apenas a própria expressão da diferança (différance) entre constitucionalismo e direito, mas também entre direito e política, por um lado, e política e democracia por outro... Isso porque na constituição democrática, do ponto de vista de um constitucionalismo por vir, em que o constitucionalismo jamais se deixa reduzir ao direito, direito e política, por um lado, e política e democracia, por outro, estão implicados ao mesmo tempo em que se diferenciam entre si.

Tal compreensão tem, portanto, implicações para a compreensão da democracia constitucional: pois se essa diferança é vivida como uma tensão permanente, a identidade do “constitutional subject” (Rosenfeld, 2010) - nos três sentidos de subject, ou seja, sujeito, assujeitado ou destinatário e matéria - jamais se fecharia: é uma identidade não idêntica a si, não presente a si – como processo de aprendizado e construção social de longo prazo, com o direito e a política, ela, a democracia constitucional, é sempre por vir.


Notas e Referências:

[1] Trechos desse texto encontram-se inicialmente publicados em inglês no paper apresentado ao Special Workshop Derrida and Law, no XXVI World Congress of Philosophy of Law and Social Philosophy – IVR, Belo Horizonte, UFMG, 21 a 26 de julho de 2013, e na obra CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade e GOMES, David. Constitucionalismo e Dilemas da Justiça. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. Agradeço à Professora Doutora Theresa Calvet de Magalhães, hoje e sempre, pela interlocução e pela amizade.

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