Por Jorge Coutinho Paschoal – 30/03/2017
Na semana passada - como é de conhecimento geral -, aumentou a temperatura entre o Poder Judiciário e a Procuradoria Geral da República.
Isso porque o Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, fez afirmações a respeito do vazamento de colaborações premiadas à imprensa, sugerindo que a quebra do sigilo de uma parte das delações de empresários da Construtora Odebrecht poderia ter ocorrido de dentro do próprio Ministério Público.
O incidente, obviamente, ensejou imediata resposta do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, em tom bastante contundente contra as ilações feitas pelo Ministro, gerando um mal estar entre as instituições.
Pois bem, divergências e discordâncias existem, inclusive dentro dos órgãos colegiados que, aparentemente, sempre se mostraram mais harmônicos entre si, sendo até certo ponto saudável que tais embates venham a público, para transparência, desde que mantido certo tom moderado.
Apesar do episódio ocorrido – que tem se repetido com frequência entre membros do Judiciário e da própria Procuradoria Geral da República -, não há como fugir da questão jurídica central levantada, consistente em possível anulabilidade de delação eventualmente vazada, o que poderá ser discutido no processo em curso no TSE, que apura a cassação da Chapa Dilma-Temer.
Na verdade, há algum tempo vem-se alardeando anular depoimentos vazados para a imprensa. A esse respeito, o próprio Ministro Gilmar Mendes já assim havia acenado anteriormente, ao aduzir que a Suprema Corte precisaria enfrentar a questão[1].
Para os que levam o respeito à forma às últimas consequências, uma análise nua e crua da matéria poderia levar à conclusão de que seriam nulas essas colaborações.
A visão mais formalista do direito, que privilegia, sobretudo em âmbito persecutório, a adoção de mecanismos que resultem na sanção imediata dos desvios, não deve ser desprezada. Nós mesmos já tivemos oportunidade de defender uma vertente mais formalista do direito, sobretudo na matéria de nulidades, pois, nesse tema, não deve vigorar a incerteza que prepondera hoje em dia, em que ora se reconhece a nulidade, ora não, observando-se que, não raro, a discrepância quanto ao resultado dos julgamentos ocorre em casos bem parecidos (se não idênticos).
Somente em casos absolutamente excepcionais, quando verificada e comprovada a inexistência de prejuízo, não se deveria reconhecer a nulidade.
Analisando-se a Lei de Criminalidade Organizada (Lei 12.850/2013), apesar de ela assegurar o sigilo da delação até o recebimento da denúncia (art. 7.º, § 3), tendo em vista, por um lado, a proteção do delator e, por outro, o êxito das investigações, nada se diz, expressamente, quanto à sanção pela quebra do sigilo.
Na ausência de regra explícita, poder-se-ia trabalhar com o conceito de nulidade implícita, de que a proscrição da quebra do sigilo, considerando uma interpretação sistemática do direito, acarretaria a nulidade, já que, por uma visão legalista, não teria sentido a lei proibir uma conduta sem prever uma sanção.
Contudo, embora, particularmente, entenda sim possível a teorização de nulidades processuais implícitas, elas são de aceitação bastante discutível pela doutrina, que se inclina pela taxatividade[2] das nulidades (ou melhor, pela sua previsão explícita), entendendo que onde o legislador silenciou, não deve o intérprete inventar moda.
Caso não se queira trabalhar com as nulidades implícitas – o que nem seria necessário, considerando que o Código de Processo Penal estatui, ao seu modo, um amplo rol de nulidades – é imperiosa a análise do Código.
No exame da questão, deve-se centrar no artigo 564; neste ponto, o único dispositivo que diria respeito, mais de perto, ao caso em comento, seria o do inciso IV, referente à omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato.
Porém, é necessário reconhecer que a subsunção da hipótese à referida norma seria difícil, pois não se estaria falando, propriamente, de omissão de formalidade, pois o sigilo, na maioria dos casos, foi anteriormente previsto, mas acabou, no meio do caminho, sendo quebrado, por ato de alguém.
Ainda que assim não se entendesse, em sendo possível a aplicação do dispositivo à hipótese, seria questionável o caráter da essencialidade do sigilo para o ato da delação em si, sobretudo quando temos acompanhado vários acordos em que, de antemão, já sabemos quem será o delator e o que delatará, por meio da imprensa...
No limite, poder-se-ia trabalhar com o conceito de prova ilícita, constante do artigo 157, caput, do Código de Processo Penal. Por uma análise seca da lei, ao se reputar um conceito amplo de prova ilícita, assim tida qualquer prova obtida ou mesmo produzida com infringência da lei (abarcando também as ilegítimas), por um estudo apressado da matéria, poderíamos concluir estar diante de ilicitude de prova.
Contudo, em uma ótica mais detida, tendo-se em vista que só se poderia considerar ilícita uma prova que tenha sido produzida ou obtida ilegalmente, teremos que concluir que não haveria ilicitude, justamente porque a produção ou a obtenção da prova se dá em momento anterior à aposição do sigilo.
Ora, convenha-se: uma coisa é a tomada do depoimento, a produção e obtenção da prova decorrente da delação, outra coisa, em tudo diversa, se refere ao modo como essa prova será protegida. Trata-se de hipótese em tudo diferente de uma quebra de sigilo de dados, em que, no momento da obtenção da prova em si (isto é, na obtenção do documento), ocorre a quebra do sigilo.
Somente por uma visão mais formalista do direito[3], em que – com todo respeito à opinião contrária, segundo me parece, se privilegia a forma pela forma, como se fosse um fim em si mesmo, seria de se cogitar de uma consequência tão grave para o caso, apta a ensejar o reconhecimento da nulidade.
Seja como for, por uma visão material, que privilegia a razão pela qual as formas foram previstas, não se sustentaria qualquer invalidação.
Com efeito, de um lado o sigilo das delações é previsto para proteção dos delatores e, de outro, para o êxito das investigações.
Não tem sentido anular delações quando todos já sabem quem são os delatores, não sendo crível falar que a medida seria para a proteção dos delatores.
Outrossim, não se sustentaria aventar a invalidade, sob o argumento de que a quebra comprometeu o êxito das investigações, quando se sabe que, para a homologação da delação, muitas colaborações já se encontram acompanhadas de outros elementos; a rigor, o momento adequado para a comprovação da delação se dá em juízo.
Na verdade, uma invalidação prematura da delação apenas penalizaria o delator, que se veria impedido, ex ante, de comprovar o teor das suas afirmações, restando inacessível, justamente, uma via defensiva a seu favor.
Os delatores são os principais interessados que a delação seja levada adiante, sendo que eventual quebra do sigilo, em alguns casos, poderia ter reflexos apenas na sua proteção e, em outros, no êxito quanto à comprovação das acusações feitas, cujo interesse maior é justamente o seu.
Vindo à tona o teor da delação, deve o Estado proporcionar proteção ao delator, tendo instrumentos legais e institucionais para tanto. Caso o delatado queira se vingar, de nada adiantará anular a delação, deixando-se, com isso, o delator à própria sorte.
Por fim, do ponto de vista do delatado, não há qualquer prejuízo ao saber de antemão o teor de uma delação vazada, ao contrário, pois, em assim ocorrendo, desde logo já pode saber do que é acusado, podendo antecipar a sua estratégia de defesa.
Ora, quem já advogou para delatados sabe como é prejudicial a previsão legal de que a delação só pode se tornar pública quando do momento recebimento da denúncia.
Não raras vezes, o delatado acaba sendo preso, no curso das investigações policiais, sem que, devido ao sigilo das delações até o recebimento da denúncia, não se confere acesso ao advogado ao teor da delação, o qual tem que impetrar habeas corpus, para brigar pela liberdade, praticamente no escuro. Não raro, cumpre observar, vemos que os próprios investigados brigam para ter acesso às delações, mantidas sob um sigilo que muitas vezes não se sustenta.
Caso se entenda que um mero vazamento de delação implicaria a sua invalidade, isso poderá ser usado como uma manobra para se engavetarem investigações.
Basta vazar a delação para tudo ser declarado imprestável. A preponderar esse entendimento, com efeito, toda Operação Lava Jato irá por água abaixo: não só a delação da Odebrecht será anulada, mas, praticamente, a totalidade das colaborações fechadas até o momento, lembrando que já uma das primeiras delações, de Alberto Youssef, acabou sendo vazada em 2014.
Vazamentos seletivos de delações são atos censuráveis, mas, mais questionável ainda, é invalidar toda uma operação, com base em uma questão meramente formal, frise-se, que não acarreta qualquer prejuízo aos interessados, sob qualquer ponto de vista que se queira analisar.
Notas e Referências:
[1] http://www.conjur.com.br/2016-dez-13/gilmar-mendes-nao-descarta-possibilidade-anular-delacao-vazadas ; http://oglobo.globo.com/brasil/vazamento-pode-levar-anulacao-de-delacoes-diz-gilmar-mendes-20641444
[2] Evidentemente, essa taxatividade não deve ser entendida em termos estritos, prevendo o Código de Processo Penal hipóteses específicas e, aliás, bastante genéricas de nulidades.
[3] Ainda assim, bastante questionável, pois as hipóteses legais aventadas para a anulação não se encaixariam ao caso discutido.
. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .
Imagem Ilustrativa do Post: confidential // Foto de: Hilary Dotson // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/naiadsspring/143114085
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.