Delação anônima e inviolabilidade domiciliar: reflexões sob o prisma constitucional, penal e processual penal

06/03/2018

Por Marcelo Martins Evaristo

EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA. Pela primeira vez, colocamos aqui, nesta nossa “coluna”, um texto que não é de nossa autoria. Esta nossa decisão decorre de três motivos principais: a excelência do estudo doutrinário, sua relevância e também a sua atualidade, tendo em vista a intervenção federal (militar) no Estado do Rio de Janeiro.

Marcelo Martins Evaristo da Silva escreveu este profundo estudo para o livro que foi publicado em minha homenagem. Na época, era companheiro da minha falecida filha Eliete Costa Silva Jardim, com quem teve um casal de filhos (meus netos). Marcelo é juiz de direito (obteve o primeiro lugar no seu concurso) e também é mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Sem mais demora, vamos ao trabalho referido. Afranio Silva Jardim. 

1. Apresentação

No início de 2002, o acaso conspirava em meu desfavor. A necessidade de migração para o turno da noite do curso de graduação em Direito na UERJ acabava por me privar do magistério de Afrânio Silva Jardim, cuja abordagem crítica e original seria, àquela altura, conhecida apenas através dos livros, palestras e congressos.

Anos mais tarde, o acaso me compensaria não apenas com algumas daquelas aulas perdidas, mas com verdadeiras lições de vida, agora já na condição de “aluno”, genro e amigo. E seria ainda mais generoso ao proporcionar a oportunidade de homenagear não exatamente a pessoa – certamente também digna de tributo – mas a obra de Afrânio. Hoje, inspirado no belo poema transcrito na nota de agradecimento, poderia perfeitamente dirigir-me à sorte para lhe dizer: nesse ponto, estamos definitivamente em paz.

A comentar a importante produção doutrinária do notável processualista não me aventuro, seria muita ousadia. Optei por apresentar algumas reflexões que me ocorreram a partir de um brilhante parecer emitido pelo Procurador de Justiça Afrânio Silva Jardim perante a Sétima Câmara Criminal do Tribunal de Justiça fluminense[1]. Assim o fiz por vislumbrar na apontada manifestação algumas das características que marcam a carreira acadêmica e profissional do homenageado: inquietude em face de maiorias e consensos formados; argúcia para a identificação das implicações sociológicas subjacentes ao caso penal; e perspectiva de mudança da realidade que se mostra iníqua ou injusta.

Eis o pensamento majoritário acerca de hipótese concreta recorrente nas varas criminais do país: é lícito o ingresso de policiais na residência de uma pessoa quando, instados por notícia anônima de crime permanente – no mais das vezes, tráfico ilícito de entorpecentes –, os agentes públicos logram apreender no interior da casa os vestígios materiais da infração penal. Entende-se que, em se tratando de crime permanente – cujo momento consumativo se protrai no tempo –, a situação de flagrância dispensa a prévia expedição de mandado judicial de busca domiciliar, ainda que o ingresso dos policiais esteja fundado em mero informe apócrifo e a certeza visual da infração só apareça após a violação do domicílio[2].

A posição do homenageado sobre a matéria encontra-se sintetizada na seguinte ementa:

“Constitucional e Processual Penal. Recurso em sentido estrito contra decisão que rejeita denúncia e relaxa prisão em flagrante. Conceito de flagrante delito para autorizar a entrada da polícia em residência à noite, sem consentimento do morador. Artigo 5º, inc. XI, da Constituição da República. A mera notícia anônima não pode autorizar o desrespeito a valor jurídico hierarquizado pela Carta Magna. A correta interpretação desta regra constitucional há de exigir real e efetivo flagrante delito, que tenha um mínimo de aparência perceptível aos nossos sentidos da existência material de um crime. Prisão e provas ilícitas, (inconstitucionais). Parecer pelo não provimento do recurso do Ministério Público. (...)”[3].

Incumbe refletir sobre a questão.

2. Enfoque constitucional: Efetividade da garantia jusfundamental e consequências sociais da interpretação constitucional

Deve-se partir da interpretação do artigo 5º, inciso XI da Carta da República, que consagra a garantia da inviolabilidade do domicílio e a excepciona na hipótese de flagrante delito. Conforme o disposto no referido enunciado, “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

Ao investigar em que sentido a expressão “flagrante” teria sido usada pelo Constituinte para admitir a restrição da garantia fundamental, Afrânio Silva Jardim desenvolve o cerne da sua argumentação:

“Sempre entendemos que a tal permissão só é possível diante de flagrante delito efetivo e real, ou seja, só nas hipóteses previstas no art. 302, inc. I e II, do Cod. Proc. Penal. Isto se depreende do próprio artigo 293 do Cod. Proc. Penal, posto em vigor durante a ditadura de Getúlio Vargas. (...) Na verdade, as duas últimas hipóteses do citado art. 302 não são de flagrante, por isso que o legislador consignou; ‘considera-se em flagrante ...’.  Assim, não se pode permitir que o legislador diminua a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, ampliando as situações que não são de verdadeiro flagrante para nelas permitir a prisão.

Entretanto, no caso concreto, se argumenta que a prisão dos recorridos foi efetuada em flagrante real, pois o delito de guarda de tóxicos é um crime de natureza permanente, motivo pelo que os policiais poderiam ‘invadir’ a residência, como ocorre comumente nas casas das pessoas mais pobres de nossa sociedade.

Aqui, mais uma vez, estamos com o magistrado André Luiz Nicolitt. Para legitimar tal atuar policial, seria necessário que tivéssemos ‘um mínimo de aparência perceptível aos sentidos relativamente à existência de um crime’ (fls. 68). Vale dizer, não basta a polícia dizer que recebeu uma notícia anônima para afastar a garantia constitucional e entrar na casa de quem desejar durante o repouso noturno.  Neste sentido é a lição do mestre Fernando da Costa Tourinho Filho, quando diz: ‘... Preciso é, contudo, haja certeza de que um crime está se consumando. Do contrário, a expressão ‘flagrante’ servirá para que os agentes da Polícia adentrem uma residência e ...  quebrada a infranqueabilidade domiciliar, dêem a desculpa esfarrapada de que pensavam que havia, no interior da casa, armazenada, substância entorpecente ...’ (Processo Penal, S.Paulo, Saraiva, 1992, 13.edição, vol. 3, p.361).

Não vale o argumento de que a polícia teve sorte e encontrou o entorpecente. Este argumento é perigoso, porque assim a polícia vai se sentir ‘estimulada’ a sempre ‘encontrar’ o entorpecente, para legitimar sua conduta. Vamos estimular flagrantes forjados??? Note-se que a questão da legitimidade da atuação policial se coloca no momento anterior, quando da entrada da residência. Pode ser legítima a penetração da polícia em uma residência, diante da certeza de que ali se pratica um crime, mas, ao final, o flagrante restar frustrado. Ao contrário, como no caso, sem qualquer prova da existência do crime, a atuação policial não é legítima no momento em que entra à noite na residência, embora, ao depois, se encontre o entorpecente.”[4] (grifos do original)

Com efeito, a interpretação das disposições normativas constitucionais – como enunciados jurídicos que são – deve servir-se dos conceitos e elementos clássicos da hermenêutica tradicional – inclusive a interpretação literal das restrições a direitos. Porém, como diploma normativo dotado de especificidades – como a superioridade jurídica, a natureza da linguagem, o conteúdo específico e, sobretudo, o caráter político[5] –, a Constituição exige do intérprete a observância de certas categorias próprias, dentre as quais está o compromisso com a sua efetividade. Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos a classificam como um princípio instrumental de interpretação constitucional:

“Consoante doutrina clássica, os atos jurídicos em geral, inclusive as normas jurídicas, comportam análise em três planos distintos: os da sua existência, validade e eficácia. No período imediatamente anterior e ao longo da vigência da Constituição de 1988, consolidou-se um quarto plano fundamental de apreciação das normas constitucionais: o da sua efetividade. Efetividade significa a realização do Direito, a atuação prática da norma, fazendo prevalecer no mundo dos fatos os valores e interesses por ela tutelados. Simboliza a efetividade, portanto, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social.”[6]

A par do zelo pela efetiva consecução das promessas constitucionais, exige-se do intérprete, notadamente em um contexto pós-positivista, especial atenção ao resultado do processo interpretativo, ao seu impacto sobre a realidade. Segundo Eduardo Garcia de Enterría[7], as consequências sociais da interpretação constitucional não podem ser desconsideradas, sobretudo em casos como o ora em apreço, a versar sobre limites da atuação e responsabilização de agentes estatais em cotejo com a delimitação do âmbito de proteção de uma garantia jusfundamental.

De volta à hipótese vertente, é possível constatar, de plano, que o entendimento dominante não rende homenagem à efetiva proteção constitucional do domicílio. Como se sabe, qualquer notitia criminis pode eventualmente se revelar infundada. Mas na delação em comento, o escudo do anonimato – repudiado pelo constituinte originário, vale dizer (artigo 5º, IV da CRFB) – serve de estímulo a leviandades e até a falsas comunicações de crime, o que aumenta sobremaneira a chance de não confirmação do noticiado. Nesse diapasão, o intérprete que admite o ingresso motivado por “denúncia anônima”, dispensando a percepção visual da infração pelo agente estatal – ínsita à noção de flagrante –, trabalha com a possibilidade real – quiçá certeza – de que alguns – ou muitos – lares sejam violados sem que qualquer delito esteja sendo cometido em seu interior. A toda evidência, é o que ocorrerá se a cada notícia anônima de crime permanente em âmbito residencial corresponder uma diligência de busca sem mandado. E nem se argumente, em concessão a uma espécie de utilitarismo perverso, que o benefício social advindo das diligências “bem sucedidas” compensará os prejuízos individuais ocasionados por aquelas frustradas.

Nesse ponto, embora não elimine a possibilidade de equívocos[8], a exigência de “um mínimo de aparência perceptível aos sentidos relativamente à existência de um crime” evita a fragilização demasiada da garantia da inviolabilidade do domicílio e vela pela sua efetividade, ao ensejo de conciliá-la com o direito de segurança e defesa social.

Por outro lado, numa perspectiva consequencialista, afigura-se temerária a possibilidade de o policial, munido de simples informe anônimo, ingressar em casa alheia por sua conta e risco, condicionada a legitimidade de sua ação à efetiva descoberta do crime noticiado[9]. Trata-se de permissão socialmente indesejável porque tende a criar, ao longo do espaço urbano, sentidos plurais e distintos, do ponto de vista sociológico[10], para a inviolabilidade do domicílio. Com efeito, segundo a lógica dominante, o que se defere ao agente estatal é uma aposta: a existência objetiva da situação de flagrante legitimará a sua conduta; a inexistência empurrá-lo-á à seara do abuso de autoridade. Assim, ao policial é dado um cálculo de risco, a ser realizado, inevitavelmente, à luz de suas pré-compreensões, receios e experiências. É óbvio que ele vislumbrará maior chance de êxito – e menor probabilidade de responsabilização – ao diligenciar na laje de uma residência humilde situada em comunidade dominada pelo narcotráfico, onde já efetuou várias prisões, do que na cobertura de um edifício localizado em zona nobre da cidade.

O resultado é conhecido por todos: moradores de comunidades social, jurídica e politicamente vulneráveis têm essa esfera da sua intimidade/privacidade muito mais exposta do que os residentes em bairro vizinho, de classe média ou alta.

E a exposição pode ser ainda maior. Note-se que, ao se valer da “franquia”, o agente público terá duas perspectivas: prender alguém em flagrante delito ou responder possivelmente por abuso de autoridade. Uma vez frustrada a expectativa criada pelo informante anônimo – algo, de resto, bastante factível –, exsurge evidente o estímulo ao flagrante forjado[11], figura que não chega a ser absolutamente estranha à nossa realidade.

Mas nem é preciso raciocinar com o teratológico, com o excepcional. A admissão dessa “aposta leviana” por parte do agente público já fora rechaçada pelo Código de Processo Penal de 1941, que, em plena Era Vargas, exigiu do agente incumbido do cumprimento de um mandado de prisão que o fizesse “com segurança”[12], sempre que a captura dependesse da entrada na casa de alguém. Confira-se a argúcia do jurista homenageado:

“Note-se que a já citada regra do art. 293 do Cod. Proc. Penal, que permite à policia entrar na casa DE DIA E COM MANDADO, exige expressamente a certeza do atuar dos agentes do Estado, usando a expressão ‘com segurança’, tornando necessária, ainda, a presença de duas testemunhas. Um código dito autoritário não pode ser mais garantista do que uma ‘Constituição Cidadã’”[13]. (grifos do original)

Assim, a admissão da busca domiciliar fundada em notícia anônima, sem qualquer indagação de índole intelectiva sobre o atuar do policial – se tinha ou não a percepção da situação de flagrância –, fragiliza a garantia constitucional e fornece pauta nefasta à atividade policial: não importa como e por que a polícia entrou, estará justificada a diligência se houver flagrante; do contrário, configurado estará o abuso de autoridade.

Destarte, afigura-se constitucionalmente adequada a interpretação que vislumbra na expressão “flagrante delito”, constante do artigo 5º, inciso XI da Carta da República, a exigência da percepção, aos sentidos do policial que adentra a casa alheia – no momento em que resolve entrar –, de sinais mínimos da efetiva existência de um crime em plena crepitação. É preciso que, a partir de dados extraídos da realidade empírica, a situação de flagrante delito tenha ingressado na esfera de conhecimento do agente público[14].

E esta é uma conclusão a que também se pode chegar por outros caminhos, de índole infraconstitucional.

3. Enfoque penal: Modelo finalista de ação. Elementos subjetivos de justificação. Ilicitude da conduta do policial

Ao afirmar que “a legitimidade da atuação policial se coloca no momento anterior, quando da entrada na residência”, Afrânio Silva Jardim vai ao cerne da questão. Com efeito, para saber se a prisão é (i)legal, bem como se a prova foi obtida por meios (i)lícitos, deve-se examinar, sob o aspecto penal e à luz do conceito analítico de crime[15], a conduta do policial, ao tempo do seu ingresso na residência.

Adotada a formulação teórica tradicional – e ressalvada a categoria da tipicidade conglobante[16] –, enquadra-se no tipo objetivo do artigo 3º, “b” da Lei nº 4.898/65 o comportamento do agente público que, à vista da situação de flagrante delito, ingressa em uma residência para fazer cessar a infração e prender o autor do fato. No entanto, pelo menos na hipótese ora cogitada, o policial age sob o abrigo de uma excludente de ilicitude, qual seja, o estrito cumprimento de um dever legal[17], extraído do comando constante do artigo 301, segunda parte do Código de Processo Penal, in verbis:.

“Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.”

Nesse cenário, o exame acerca da incidência da causa de justificação do artigo 23, III, primeira figura do Código Penal é de suma importância para a aferição da licitude da atuação policial, que repercutirá inexoravelmente na legalidade da prisão e na validade da prova então colhida.

Repise-se a hipótese concreta em foco: ao tempo do ingresso na residência, o agente público não tem acesso visual ao interior da casa nem tem como saber o que se passa lá dentro, mas dispõe de informação anônima no sentido da prática de crime permanente no local – tráfico ilícito de drogas, por exemplo; resolve, então, entrar para averiguar a veracidade do informe e acaba por arrecadar farto material entorpecente, após o que efetua a prisão dos indivíduos que o manuseavam.

Indaga-se: incide, na espécie, a excludente do estrito cumprimento do dever legal? A constatação da justificante pressupõe análise puramente objetiva ou reclama incursão subjetiva, de viés intelectivo, sobre a conduta do agente? Como se vê, a resposta pressupõe breve digressão sobre os elementos constitutivos das causas de justificação e remete à histórica controvérsia entre as principais teorias desenvolvidas acerca da ação humana.  

A teoria causal, com seu conceito mecanicista e objetivo de ação – movimento corporal causador de um resultado no mundo exterior[18] -, pujante sobretudo na primeira metade do século XX, vislumbrou nas normas permissivas características estritamente objetivas, alheias a qualquer indagação de índole intelectual ou volitiva – a existência objetiva da situação justificante bastaria por si só e tornaria irrelevante o seu conhecimento pelo agente ou a vontade de conduzir-se em conformidade com a autorização concedida[19].

A superação da dogmática causalista, primeiro por influência do neokantismo – em contraposição à filosofia naturalista do século XIX – e depois pelo finalismo de Welzel[20], significaria a introdução paulatina de elementos subjetivos na estrutura da ação humana e, por conseguinte, também na constituição da ação típica justificada. A partir da generalização do modelo finalista, inclusive mediante sua incorporação em legislações modernas – como, v.g., a reforma penal alemã de 1975 e a brasileira de 1984 –, não seria mais possível dissociar o comportamento humano da esfera cognitiva do psiquismo individual, mesmo nas ações de defesa, proteção, exercício de direito ou cumprimento de dever. Conforme o magistério de Hans Welzel:

“Las causales de justificación tienem elementos objetivos y subjetivos. Para la justificación de uma acción típica no basta que se den los elementos objetivos de justificación, sino que el autor debe conocerlos y tener además lãs tendencias subjetivas especiales de justificación. Así, por ejemplo, em la legítima defensa o em el estado de necesidad (justificante), el autor deberá conocer los elementos objetivos de la justificación (la agresión actual o el peligro actual) y tener la voluntad de defensa o de salvamento. Si faltare el uno o el outro elemento subjetivo de justificación, el autor no queda justificado a pesar de la existencia de los elementos objetivos de justificación.”[21] 

Na mesma linha de pensamento do penalista alemão, leciona Juarez Cirino dos Santos: 

“As ações justificadas são compreendidas de elementos subjetivos e objetivos como qualquer outra ação típica: se a unidade subjetiva e objetiva da ação determina a estrutura subjetiva e objetiva da ação típica, então a ação típica justificada contém, necessariamente, elementos subjetivos e objetivos. Existe, assim, como refere HAFT, uma relação de simetria entre tipos legais, ou tipos de proibição, e justificações, ou tipos de permissão. Como as justificações excluem não somente o desvalor do resultado, mas o próprio desvalor da ação típica, a ausência dos elementos subjetivos das justificações significa dolo não justificado de realização do injusto.”[22]

Hoje, é amplamente dominante na literatura e na jurisprudência o reconhecimento de elementos subjetivos como componentes das causas de justificação[23], discutindo-se apenas o perfil dessas exigências de ordem subjetiva. Na Alemanha, autores como Günter Stratenwerth[24], Claus Roxin[25], Kristian Kühl e Harro Otto se satisfazem com a consciência da situação justificante, enquanto Günther Jakobs[26], Hans Welzel[27], Reinhart Maurach/Heinz Zipf[28], Hans-Heinrich Jescheck[29] e Johannes Wessels/Werner Beulke exigem, além do conhecimento dos elementos objetivos da justificante, a vontade de atuar conforme o direito[30]. No Brasil, é igualmente farta e francamente majoritária a produção doutrinária no sentido da exigência de uma relação anímica entre o agente e o fato justificado, composta de dimensão intelectual e volitiva, apta a excluir o desvalor da ação típica[31].

Algumas legislações contemporâneas chegam a tratar expressamente do problema das chamadas “justificantes incompletas”[32], caracterizadas pela presença apenas dos pressupostos objetivos, sem que se tenha preenchido o seu segmento subjetivo. O Código Penal espanhol, por exemplo, afasta a excludente de ilicitude e prevê, em seu artigo 68 c/c artigo 21, primeira figura, punição atenuada para a hipótese, nos moldes da modalidade tentada do delito. Semelhante solução é preconizada no artigo 72 do Código Penal português de 1995[33].

O penalista português Jorge de Figueiredo Dias explica que, a par de surgir como corolário da estrutura final da ação humana – aplicável tanto ao fato punível quanto ao fato justificado –, “a verdadeira razão por que se impôs a exigência de elementos subjectivos da justificação reside em que os elementos objectivos do tipo justificador só apresentam virtualidade para excluir o desvalor do resultado, enquanto os elementos subjectivos servem para caracterizar, por excelência, a falta do desvalor da acção[34].

Assentadas essas premissas e admitida a estrutura final da ação típica justificada – cuja espinha dorsal é a vontade consciente do fim –, incumbe retornar ao exame do estado anímico do policial que adentra residência particular motivado por uma delação anônima.

De plano, constata-se que ele não tem exatamente a consciência da situação justificante – é dizer, o flagrante delito –, até porque nada viu, ouviu ou sentiu, pessoalmente e a partir da observação da realidade empírica – trata-se de elemento subjetivo de dimensão intelectual –, que lhe indicasse o pleno cometimento de uma infração penal no interior da casa. Assim, o agente ingressa no imóvel não propriamente para prender quem sabe estar em flagrante delito, mas para apurar a veracidade de uma informação anônima e, só depois de confirmá-la, e somente se confirmá-la, eventualmente prender o(s) autor(es) do fato.

Como se vê, a “tendência subjetiva especial de justificação”[35], ou seja, a finalidade justificante – entrar para prender – não se pode reputar propriamente satisfeita. A rigor, o policial entra para averiguar a procedência de uma notícia, em última análise, entra para investigar, procurar vestígios materiais da infração alardeada, passando, inclusive, a revistar cômodos, móveis e pessoas em busca de provas. A prisão em flagrante constitui, a toda evidência, um escopo mediato e condicionado ao sucesso de uma diligência eminentemente investigatória.

Portanto, o agente público não tem a consciência da situação justificante – ingressa para (talvez) obtê-la – nem age com o propósito direto de prender em flagrante, porque precisa antes investigar. É cediço, contudo, que busca domiciliar para fins investigatórios pressupõe mandado judicial previamente expedido, conforme expresso comando constitucional.

Todo o exposto conduz a uma conclusão inexorável: a constatação a posteriori da situação objetiva de flagrante exclui, quando muito, o desvalor do resultado, mas não afasta o desvalor da ação típica, haurido da vontade consciente do fim. Em suma, é ilícito entrar em casa alheia para investigar, a menos que se tenha em mãos uma ordem judicial[36].

E por falar em investigação, convém dissertar brevemente sobre a (in)idoneidade da chamada “denúncia anônima” como instrumento de deflagração da persecutio criminis.

4. Enfoque processual penal: Delação anônima e persecução penal

Registra-se, de início, que a hipótese concreta em exame é comumente protagonizada, a exemplo do que se observa no caso submetido à apreciação do Procurador de Justiça homenageado, por policiais militares, cuja função constitucional precípua – policiamento ostensivo e preservação da ordem pública (artigo 144, § 5º da CRFB) – não envolve diretamente atividades investigativas, atribuídas, como regra, à polícia civil e à polícia federal.

Entretanto, a realização de diligências próprias de investigação por policiais militares não encerra, por si só, nulidade capaz de comprometer a higidez dos elementos informativos coletados, desde que observado, por óbvio, o figurino constitucional e legal.

Assim, torna-se relevante estudar o procedimento a ser adotado pelos órgãos de persecução penal em face de uma delação anônima. De pronto, constata-se que o já citado veto constitucional ao anonimato, segundo doutrina e jurisprudência amplamente dominantes, não chega ao ponto de engessar o Estado, embora lhe imponha relevantes restrições, resultantes da ponderação entre interesses tutelados em sede constitucional: liberdade, honra, intimidade, privacidade e segurança pública. Da farta produção doutrinária existente no ponto, colacionam-se as lições de José Frederico Marques e Julio Fabbrini Mirabete:

“No direito pátrio, a lei penal considera crime a denunciação caluniosa ou a comunicação falsa de crime (Código Penal, arts. 339 e 340), o que implica a exclusão do anonimato na ‘notitia criminis’, uma vez que é corolário dos preceitos legais citados a perfeita individualização de quem faz a comunicação de crime, a fim de que possa ser punido, no caso de atuar abusiva e ilicitamente. Parece-nos, porém, que nada impede a prática de atos iniciais de investigação da autoridade policial, quando delação anônima lhe chega às mãos, uma vez que a comunicação apresente informes de certa gravidade e contenha dados capazes de possibilitar diligências específicas para a descoberta de alguma infração ou seu autor. Se, no dizer de G. Leone, não se deve incluir o escrito anônimo entre os atos processuais, não servindo ele de base à ação penal, e tampouco como fonte de conhecimento do juiz, nada impede que, em determinadas hipóteses, a autoridade policial, com prudência e discrição, dele se sirva para pesquisas prévias. Cumpre-lhe, porém, assumir a responsabilidade da abertura das investigações, como se o escrito anônimo não existisse, tudo se passando como se tivesse havido notitia criminis inqualificada.”[37]

“(...) Não obstante o art. 5º, IV, da CF, que proíbe o anonimato na manifestação do pensamento, e de opiniões diversas, nada impede a notícia anônima do crime (notitia criminis inqualificada), mas, nessa hipótese, constitui dever funcional da autoridade pública destinatária, preliminarmente, proceder com a máxima cautela e discrição a investigações preliminares no sentido de apurar a verossimilhança das informações recebidas. Somente com a certeza da existência de indícios da ocorrência do ilícito é que deve instaurar o procedimento regular.”[38]

A inadmissibilidade da instauração formal da persecução penal com base única e exclusivamente em informe apócrifo é reiteradamente proclamada pela jurisprudência nacional, conforme se depreende de inúmeros precedentes do Supremo Tribunal Federal[39]. Merece transcrição a ementa de conhecida decisão monocrática proferida pelo Ministro Celso de Mello sobre a matéria:

“PERSECUÇÃO PENAL E DELAÇÃO ANÔNIMA. DOUTRINA. PRECEDENTES. PRETENDIDA EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO PENAL. DESCARACTERIZAÇÃO, NA ESPÉCIE, DA PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. MEDIDA CAUTELAR INDEFERIDA. - As autoridades públicas não podem iniciar qualquer medida de persecução (penal ou disciplinar), apoiando-se, unicamente, para tal fim, em peças apócrifas ou em escritos anônimos. É por essa razão que o escrito anônimo não autoriza, desde que isoladamente considerado, a imediata instauração de ‘persecutio criminis’. - Peças apócrifas não podem ser formalmente incorporadas a procedimentos instaurados pelo Estado, salvo quando forem produzidas pelo acusado ou, ainda, quando constituírem, elas próprias, o corpo de delito (como sucede com bilhetes de resgate no crime de extorsão mediante seqüestro, ou como ocorre com cartas que evidenciem a prática de crimes contra a honra, ou que corporifiquem o delito de ameaça ou que materializem o ‘crimen falsi’, p.ex.). - Nada impede, contudo, que o Poder Público, provocado por delação anônima (‘disque-denúncia’, p. ex.), adote medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, ‘com prudência e discrição’, a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da ‘persecutio criminis’, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas. - Diligências prévias que, promovidas pelo Departamento de Polícia Federal, revelariam a preocupação da Polícia Judiciária em observar, com cautela e discrição, as diretrizes jurisprudenciais estabelecidas, em tema de delação anônima, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.”[40]

Se não autoriza sequer a instauração de inquérito, é evidente que uma notícia anônima não poderá lastrear, por si só, providências restritivas de direitos fundamentais[41]. Por isso mesmo, os tribunais superiores rechaçam, de maneira uníssona, a possibilidade de deferimento de interceptação de conversas telefônicas a partir de isolada notitia criminis inqualificada[42]. A mesma conclusão se impõe no tocante à busca domiciliar, para cuja concessão a lei reclama a existência de “fundadas razões” – artigo 240, § 1º do CPP –, jamais satisfeitas por informação vinda não se sabe de quem ou de onde[43]. Assim já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça:

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. COMERCIALIZAÇÃO IRREGULAR DE MEDICAMENTOS CONTROLADOS. MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO. EMBASAMENTO EM DENÚNCIA ANÔNIMA. INEXISTÊNCIA DE OUTRAS FONTES. NULIDADE DA PROVA COLHIDA. PRECEDENTES. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. 1. ‘Ainda que com reservas, a denúncia anônima é admitida em nosso ordenamento jurídico, sendo considerada apta a deflagrar procedimentos de averiguação conforme contenham ou não elementos informativos idôneos suficientes, e desde que observadas as devidas cautelas no que diz respeito à identidade do investigado’ (HC nº 83.830/PR, 5.ª Turma, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJe de 09/03/2009). 2. Não há nulidade quando, ao receber uma notícia anônima, o membro do Ministério Público, em observância aos preceitos legais, solicita à Autoridade Policial a realização de investigações preliminares a fim de averiguar os fatos narrados e, após evidenciada a verossimilhança da narrativa, requer ao Juízo competente a expedição de mandado de busca e apreensão. 3. No caso dos autos, entretanto, como o Juízo monocrático deferiu a medida cautelar amparando-se unicamente na notícia anônima apresentada, revela-se nulo o procedimento adotado, impondo, por conseguinte, o desentranhamento das provas dele decorrentes. Precedentes. 4. Recurso ordinário provido para determinar o desentranhamento dos autos das provas decorrentes do mandado de busca e apreensão autorizado com base unicamente em denúncia anônima.”[44]

No mesmo sentido, em face de hipótese específica de tráfico ilícito de entorpecentes, colaciona-se abalizado aresto da Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: 

“DENÚNCIA ANÔNIMA’. NULIDADE DE BUSCA E APREENSÃO DETERMINADA TENDO POR EXCLUSIVO FUNDAMENTO DENÚNCIA ANÔNIMA. INEXISTÊNCIA DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL ANTERIOR QUE PUDESSE CONFERIR SUPORTE MÍNIMO PROBATÓRIO À MEDIDA CAUTELAR. ORDEM JURÍDICO-CONSTITUCIONAL QUE REPUDIA NOTÍCIAS ANÔNIMAS COMO FUNDAMENTO PARA A LIMITAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS, ENTRE OS QUAIS AQUELES ATINGIDOS PELA BUSCA E APREENSÃO EM LOCAL DE TRABALHO DO APELANTE. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL QUE, TAMBÉM DE FORMA EXPRESSA, CONDICIONA A BUSCA E APREENSÃO A FUNDADAS RAZÕES, O QUE CORRESPONDE À EXIGÊNCIA ELEMENTAR DE INDÍCIOS DE AUTORIA DE INFRAÇÃO PENAL. ILICITUDE DA PROVA OBTIDA A PARTIR DA PROVIDÊNCIA ILEGAL. AUSÊNCIA DE PROVAS DISTINTAS DAQUELAS QUE DERIVARAM DA ILEGAL BUSCA E APREENSÃO. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÔE. Apelante processado e condenado pela prática das infrações previstas nos artigos 33 da Lei nº 11.343/06 e artigo 58 do Decreto-Lei nº 6259/44. Prisão em flagrante quando o apelante se encontrava em seu local de trabalho. Cautelar de Busca e Apreensão concedida com base exclusivamente em denúncia anônima, sem que sequer fosse instaurado procedimento investigatório para a apuração dos fatos objetos da referida denúncia anônima. Ilegalidade da medida, eis que a denúncia anônima não confere lastro mínimo probatório exigido pela lei para a concessão da cautelar. Constituição da República que veda o anonimato em seu artigo 5º, inciso IV, ante à impossibilidade de se descobrir o autor da denúncia e de responsabilizá-lo por eventuais danos causados a terceiro. Conforme determina o §1º do artigo 240 do Código de Processo Penal, exige-se fundada suspeita de que um crime esteja sendo praticado no interior da casa que se pretende ingressar e que o ingresso seja justamente com o propósito de evitar que se consume. Diligência realizada em contrariedade com o ordenamento jurídico-constitucional. (...) Prova ilícita, eis que produzida em contrariedade à ordem constitucional. Contaminação das demais provas que dela derivam e que por conta desta foram obtidas. Nulidade da apreensão. Decreto condenatório embasado exclusivamente nas provas obtidas na busca e apreensão ilegal. Ausência de outras provas aptas a ensejar a condenação, uma vez excluída a prova ilícita. Absolvição do apelante. (...) Absolvição do apelante. RECURSO PROVIDO”[45].

Chega-se, então, a um ponto de insuperável incongruência: uma simples “denúncia anônima” não autoriza o delegado de polícia a instaurar inquérito, não fornece subsídio ao promotor de justiça para requerer qualquer medida restritiva de direitos fundamentais e, tamanha a fragilidade de tal elemento informativo, não serve como “fundada razão” para uma busca domiciliar, nem mesmo aquela determinada por autoridade judiciária; mas o policial militar em patrulhamento, ao receber da sala de operações uma notícia dessa natureza, pode entrar na casa apontada, desde que encontre efetivamente a droga, a arma ou algo do gênero. Em resumo, o Estado-policial pode mais que o Estado-juiz.

A toda evidência, o quadro assim delineado afigura-se logicamente insustentável, porque se o Judiciário – guardião da inviolabilidade do domicílio, garantia protegida por cláusula de reserva de jurisdição – não pode quebrá-la com base em informação anônima, também não pode consentir que outrem o faça à sua revelia. Perceba-se a incoerência: se, por cautela, optar por buscar um mandado judicial, a polícia não o obterá; mas se resolver entrar sem o mandado e encontrar o que procura, terá a chancela do juiz.

14. Considerações finais 

Em 1776, ouviu-se no Parlamento inglês discurso que captou a essência da inviolabilidade domiciliar:

“O homem mais pobre pode, em sua casa, desafiar todas as forças da Coroa. Esta casa pode ser débil, seu telhado poderá cair, o vento poderá soprar no seu interior, a tormenta e a chuva podem entrar. Mas o Rei da Inglaterra não pode entrar, os seus exércitos não se atreverão a cruzar os umbrais da arruinada moradia”[46].

Mais de dois séculos depois, vemos o brilho dessa conquista arrefecer diante da escalada da violência nos grandes centros urbanos, intimamente relacionada ao poderio de organizações criminosas ligadas ao narcotráfico. É que, como lembra Dieter Grimm, na tensão dialética entre segurança e liberdade, marcante nas sociedades contemporâneas, “quanto maior for ou for feito um perigo, tanto mais legítimas parecem até mesmo as sensíveis intervenções à liberdade”[47].

E assim têm parecido legítimas aos olhos do Judiciário brasileiro, face à premência da repressão ao tráfico de drogas e ilícitos conexos, práticas que fragilizam a garantia da inviolabilidade domiciliar, imprimindo-lhe sentidos sociológicos plurais e díspares ao longo do espaço urbano, tudo a depender do CEP do seu titular.

Em boa hora, Afrânio Silva Jardim chama a atenção para a própria razão da existência de um sistema de justiça criminal: assegurar que o (legítimo e necessário) poder punitivo estatal não seja exercido de modo a infirmar históricas conquistas civilizatórias. Segundo o Mestre, não se pode olvidar, no âmbito do processo penal, a existência de “valores outros, tão relevantes ou mais relevantes do que condenar quem mereça ser condenado”[48].

Na esteira do seu brilhante parecer, desenvolvem-se neste artigo algumas ideias sob o prisma constitucional, penal e processual penal, sendo possível sintetizar as principais nas seguintes assertivas: 

I. Afigura-se constitucionalmente adequada a interpretação que vislumbra na expressão “flagrante delito”, constante do artigo 5º, inciso XI da Carta da República, a exigência da percepção, aos sentidos do policial que adentra a casa alheia – no momento em que resolve entrar –, de sinais mínimos da efetiva existência de um crime em plena crepitação. É que a admissão da busca domiciliar fundada em notícia anônima, sem qualquer indagação de índole intelectiva sobre o atuar do policial – se tinha ou não a percepção da situação de flagrância –, esvazia a garantia constitucional – notadamente em comunidades social, política e juridicamente vulneráveis –, e fornece pauta nefasta à atividade policial: não importa como e por que a polícia entrou, estará justificada a diligência se houver flagrante; do contrário, configurado estará o abuso de autoridade.

II. Sob o enfoque penal, a conduta do agente estatal que ingressa em casa alheia para apurar a procedência de um informe apócrifo não se justifica pela superveniente constatação objetiva do flagrante. Isso porque, conforme orientação doutrinária e jurisprudencial amplamente dominante, as causas de justificação – dentre as quais o estrito cumprimento do dever legal – não se satisfazem com elementos meramente objetivos, mas reclamam, na linha da teoria finalista da ação humana, incursão subjetiva de índole intelectual e volitiva: consciência da situação justificante e vontade de atuação nos lindes da autorização. Na hipótese em comento, o agente público não tem a consciência da situação justificante – ingressa para (talvez) obtê-la – nem age com o propósito direto de prender em flagrante, porque precisa antes averiguar a veracidade da notícia, isto é, investigar, procurar vestígios materiais da infração alardeada, passando, inclusive, a revistar cômodos, móveis e pessoas em busca de provas. E se o agente entra na residência sem um mandado em mãos, sem saber o que há no seu interior, com o propósito imediato de investigar, não age no estrito cumprimento do dever legal imposto pelo artigo 301 do CPP, à míngua dos elementos subjetivos da justificação. Portanto, a sua conduta, além de típica, é ilícita – assim como a prisão e os meios de obtenção das provas então colhidas –, muito embora não seja, em princípio, penalmente censurável (culpável), pois incorre em invencível erro de permissão, fomentado por uma jurisprudência ainda acolhedora do seu atuar.

III. Finalmente, sob o prisma processual penal, uma notícia anônima não autoriza o delegado de polícia a instaurar inquérito, não fornece subsídio ao promotor de justiça para requerer qualquer medida restritiva de direitos fundamentais – como interceptação de conversas telefônicas, por exemplo – nem serve como “fundada razão” para o juiz expedir um mandado de busca domiciliar. Mantido um mínimo de lógica e coerência, também não pode encorajar o policial militar em patrulhamento, instado pela sala de operações de seu batalhão, a entrar na casa de quem quer que seja, por sua conta e risco, à procura das drogas e/ou das armas anunciadas. Não custa repetir: se o Judiciário – guardião da inviolabilidade do domicílio, garantia protegida por cláusula de reserva de jurisdição – não pode quebrá-la com base em informação inqualificada, também não pode consentir que outrem o faça à sua revelia.

O presente ensaio busca levar tais ideias, para além da caserna[49], à reflexão da comunidade jurídica, ao ensejo de endossar a súplica do dramaturgo Bertold Brecht quanto à necessidade de desconfiar do trivial e examinar, sobretudo, o que parece habitual. Afinal, em tempo de “confusão organizada”, de “arbitrariedade consciente”, “nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar”.

 

Marcelo Martins Evaristo da Silva, Juiz de Direito no Estado no Rio de Janeiro. Mestre em Direito Público pela Uerj.

 

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[1] O parecer encontra-se publicado em JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Direito processual penal: estudos e pareceres. 12ª ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, pp. 544-547.

[2] Nesse sentido, v.g., o seguinte aresto do Tribunal de Justiça de Santa Catarina: “APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. ABSOLVIÇÃO. RECURSO MINISTERIAL. CONDENAÇÃO PERSEGUIDA, AO ARGUMENTO DE SER LÍCITA A PROVA OBTIDA E FICAR COMPROVADA A NARCOTRAFICÂNCIA. TRÁFICO DE DROGAS. CRIME PERMANENTE. DESNECESSIDADE DE MANDADO JUDICIAL PARA INGRESSO NO DOMICÍLIO. ATUAÇÃO DA POLÍCIA EM RAZÃO DE DENÚNCIA ANÔNIMA. IRRELEVÂNCIA. PROVA VÁLIDA.
Por ser tratar o tráfico de drogas de crime permanente, desnecessária a expedição do mandado de busca e apreensão para legitimar o ingresso da autoridade policial na residência onde o delito está sendo cometido, pois o mesmo se protrai no tempo. (...) RECURSO MINISTERIAL PROVIDO.” (TJSC: Apelação Criminal n. 2011.086104-8, Quarta Câmara Criminal, Rel. Des. Roberto Lucas Pacheco, julgamento em 26/04/2012). No âmbito dos tribunais superiores, consultem-se: STF - RHC 86082/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 22.08.2008; STJ – RESP nº 1.224.717/RJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, decisão em 21.02.2013.

[3] JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Direito processual penal: estudos e pareceres. 12ª ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p. 544.

[4] Idem, p. 546.

[5] BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. BARROSO, Luís Roberto (organizador). 2ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 327-378, pp. 358-359.

[6] Idem, p. 364.

[7] ENTERRÍA, Eduardo Garcia de. La constitucion como norma y el tribunal constitucional. 3ª ed. Madrid: Editora Civitas, 2001, pp. 179 e ss. A propósito, assim dispõe o artigo 25 do Código de Ética da Magistratura Nacional: “Especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências que pode provocar”.

[8] É possível que agentes estatais, em patrulhamento por localidade dominada pelo narcotráfico, observem um grupo de jovens endolando cocaína no quintal de uma casa e, após pularem o muro com o escopo de detê-los, constatem que apenas embalavam sacos de farinha a pedido do dono da mercearia local. A possibilidade de o policial incorrer em erro de tipo permissivo – remota, se comparada aos riscos inerentes ao anonimato da notitia criminis – não infirma o raciocínio aqui exposto.

[9] Nesse sentido: “Se a polícia tem algum tipo de denúncia, suspeita fundada ou razão para ingressar no domicílio, preferindo fazê-lo por sua conta e risco, sem mandado – porque às vezes a situação requer urgência – pode ingressar no domicílio, mas a legitimidade da sua ação depende da efetiva descoberta do crime. Do contrário, pode-se caracterizar o crime de abuso de autoridade ou mesmo infração funcional.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 8ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 528).

[10] Tal como proposto por Ferdinand Lassalle, resultante dos “fatores reais de poder”, em contraposição àquilo que se encontra escrito no papel.

[11] Nesse sentido, assevera o Desembargador Geraldo Prado: “(...) é necessário que fique demonstrada a fundada suspeita de que um crime esteja sendo praticado no interior da casa em que se pretende ingressar e que o ingresso tenha justamente o propósito de evitar que esse crime se consume. Se assim não fosse, seria permitido ingressar nas residências alheias, de forma aleatória, até encontrar substrato fático, consistente em flagrante delito, capaz de ensejar a formal instauração de procedimento investigatório criminal. Mais que isso, seria incentivar que a autoridade policial assim fizesse e, com a intenção de se livrar de uma eventual imputação de abuso de autoridade, ‘encontrasse’ à força o estado de flagrância no domicílio indevidamente violado.” (Apelação Criminal nº 0003790-57.2007.8.19.0061, Quinta Câmara Criminal, Rel. Des. Geraldo Prado, julgamento em 28.01.2010).

[12] “Art. 293. Se o executor do mandado verificar, com segurança, que o réu entrou ou se encontra em alguma casa, o morador será intimado a entregá-lo, à vista da ordem de prisão. Se não for obedecido imediatamente, o executor convocará duas testemunhas e, sendo dia, entrará à força na casa, arrombando as portas, se preciso; sendo noite, o executor, depois da intimação ao morador, se não for atendido, fará guardar todas as saídas, tornando a casa incomunicável, e, logo que amanheça, arrombará as portas e efetuará a prisão.” (grifo nosso).

[13] JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Direito processual penal: estudos e pareceres. 12ª ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, pp. 546-547.

[14] Nesse sentido, colaciona-se acórdão da Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: “APELAÇÃO. PROCESSO PENAL. ARTIGO 33 DA LEI 11.343/06. CONDENAÇÃO. POLICIAIS QUE, SOB O FUNDAMENTO DE QUE RECEBERAM ‘DENÚNCIA ANÔNIMA’ NOTICIANDO A PRÁTICA DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS NA RESIDÊNCIA DO ACUSADO, NELA INGRESSARAM SEM SUA AUTORIZAÇÃO. FLAGRANTE DELITO QUE, NO PRESENTE CASO, NÃO LEGITIMA A VIOLAÇÃO AO DOMICÍLIO, POIS SOMENTE FOI VERIFICADO APÓS O ILEGAL INGRESSO DOS POLICIAIS À CASA DO RÉU. NECESSIDADE DE PRÉVIA EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DA CIRCUNSTÂNCIA FLAGRANCIAL, PARA CUJA CONFIGURAÇÃO NÃO É SUFICIENTE A CHAMADA ‘DENÚNCIA ANÔNIMA’. PRECARIEDADE DA DENÚNCIA ANÔNIMA REVELADORA DO PROPÓSITO SINGULAR DE CONTORNAR A EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE ORDEM JUDICIAL, PRÉVIA E FUNDAMENTADA, PARA INGRESSO EM CASA ALHEIA. PRISÃO EM FLAGRANTE ILEGAL QUE CONTAMINA AS DEMAIS PROVAS PRODUZIDAS DURANTE O PROCESSO. (...)” (Apelação Criminal nº 0003790-57.2007.8.19.0061, Quinta Câmara Criminal, Rel. Des. Geraldo Prado, julgamento em 28.01.2010 – grifo nosso). Entretanto, o aresto foi reformado, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, por decisão monocrática assim ementada: “RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL. TRÁFICO. DEPÓSITO. CRIME PERMANENTE. MANDADO JUDICIAL. DISPENSABILIDADE. ESTADO DE FLAGRÂNCIA. RECURSO PROVIDO.” (RESP nº 1.224.717/RJ, Min. Maria Thereza de Assis Moura, decisão de 21.02.2013).

[15] Ação típica, ilícita e culpável, segundo a doutrina majoritária.

[16] Na lição de Zaffaroni e Pierangeli, só se aperfeiçoa a tipicidade conglobante se constatada a antinormatividade da conduta do agente e a chamada tipicidade material. Adotado o conceito de antinormatividade, boa parte das hipóteses normalmente tratadas no âmbito da ilicitude – como o estrito cumprimento do dever legal – é deslocada para o estudo do primeiro elemento do delito, qual seja, a tipicidade. Segundo os autores, “a lógica mais elementar nos diz que o tipo não pode proibir o que o direito ordena e nem o que ele fomenta” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Enrique. Manual de direito penal brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 458).

[17] Nesse sentido: NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 13ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 265.

[18] SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 6.

[19] Esse foi o entendimento esposado, por exemplo, por Nélson Hungria, um dos grandes defensores do modelo causalista da ação na primeira metade do século XX (cf. HUNGRIA, Nélson. A legítima defesa putativa. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho, 1936, p. 141).

[20] Nesse sentido: TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 250.

[21] WELZEL, Hans. Derecho penal aleman. Parte general. 11ª ed. Editorial Juridica de Chile, 1976, pp.121-122.

[22] SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, pp. 154-155 – grifos do original.

[23] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral : tomo I : questões fundamentais : a doutrina geral do crime. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais ; Portugal ; Coimbra Editora, 2007, p. 392: “Doutrinalmente afastada pode hoje dizer-se a ideia segundo a qual os tipos justificadores operariam em pura objectividade, independentemente, portanto, da exigência de quaisquer elementos subjectivos” (grifo do original).

[24] STRATENWERTH, Günter. Derecho Penal. Parte General I. El hecho punible. 4ª ed. Traducción de Manuel Cancio Meliá y Marcelo A. Sancinetti. Buenos Aires: Hammurabi, 2008, pp. 262-265.

[25] “(...) para la justificación es en principio suficiente que el sujeto actúe objetivamente en el marco de lo justificado y subjetivamente com conocimiento de la situación justificante” (ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Traducción de La 2ª edición alemana y notas por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo y Javier de Vicente Remesal. Madrid: Editorial Civitas S. A., 1997, pp. 597 e ss.

[26] JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoria de La imputación. Traducción de Joaquin Cuello Contreras y Jose Luis Serrano Gonzales de Murillo. 2ª edición, corregida. Madrid: Marcial Pons, Ediciones Juridicas S. A., 1997. Confira-se o tópico “La llamada tendência a la justificación y el conocimiento de los elementos del tipo de justificación” (pp. 431-435).

[27] WELZEL, Hans. Derecho penal aleman. Parte general. 11ª ed. Editorial Juridica de Chile, 1976, pp.121-122.

[28] Para os autores, aos elementos objetivos “debe agregarse como elemento subjetivo de justificación el que el autor haya reconocido la situación justificante objetivamente existente y actuado de conformidad e ella” (MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz. Derecho penal. Parte general. Teoría general del derecho penal y estructura del hecho punible. Traducción de La 7ª edición alemana por Jorge Boffil Genzsch y Enrique Aimone Gibson. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1994, pp. 432-433).

[29] “(...) el autor debe haber conocido la concurrencia de la situación justificante del hecho y haber actuado en el ejercicio de la facultad que le confiere, o bien en cumplimiento del deber que le impone” (JESCHECK, Hans-Heinrich. Trarado de derecho penal. Parte general. Traducción y adiciones de Derecho español por S. Mir Puig y F. Muñoz Conde. Volumen primero. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, S. A., 1981, p. 447 – grifos do original).

[30] Hoje, na literatura alemã, apenas vozes isoladas, como a de Spendel, seguem fiéis a uma concepção estritamente objetiva das causas de justificação (cf. STRATENWERTH, Op. cit., p. 262). A ampla maioria dos autores está divida entre as duas correntes mencionadas. Alude-se, ainda, como posição isolada, a uma terceira variante da concepção subjetiva, defendida por Hans-Ludwig Günther, segundo a qual seria bastante à justificação que o sujeito tivesse tomado como possível a ocorrência da situação justificante (v. TAVARES, Op. cit., p. 253).  

[31] Exigem tanto o conhecimento dos elementos objetivos da justificante quanto a vontade de atuar em conformidade com o direito, dentre outros: PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 12ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pp. 435-437; BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal : parte geral, volume 1. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 245-246; SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, pp. 154-155; NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 13ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pp. 262-264; JESUS, Damásio E. de. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1999, pp. 357-360; GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 13ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011, pp. 311-313. Em sentido contrário, em corrente nitidamente minoritária, contentam-se com o elemento puramente objetivo: TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, pp. 250-256; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. v. 1, 32ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 201; HUNGRIA, Nélson. A legítima defesa putativa. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho, 1936, p. 141; SHINTATI, Tomaz M. Curso de direito penal, parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 116.

[32] TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 263.

[33] Sobre as legislações citadas, veja-se TAVARES, Juarez. Op. cit., pp. 263-264.

[34] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral : tomo I : questões fundamentais : a doutrina geral do crime. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais ; Portugal ; Coimbra Editora, 2007, pp. 392-393 (grifo do original). Para o estudo das categorias do desvalor da ação e do desvalor do resultado na teoria do delito, consultem-se: ZIELINSKI, Diethart. Disvalor de acción y disvalor de resultado en el concepto de ilícito. Análisis de la estructura de la fundamentación y exclusión del ilícito. Traducción de Marcelo A. Sancinetti. Buenos Aires: Editorial Hammurabi S. R. L., 1990; STRATENWERTH, Günter. Acción y resultado en derecho penal. Traducción de Marcelo A. Sancinetti y Patricia S. Ziffer. Buenos Aires: Editorial Hammurabi S. R. L., 1991.

[35] WELZEL, Hans. Derecho penal aleman. Parte general. 11ª ed. Editorial Juridica de Chile, 1976, p. 121.

[36] Destarte, a conduta do policial, além de típica, é antijurídica, com consequências impositivas: a prisão é ilegal e toda a prova colhida é nula, porquanto obtida por meio ilícito (artigo 5º, LVI da CRFB). Entretanto, não se afigura penalmente censurável a conduta do agente estatal, pois supõe erroneamente a existência de uma proposição permissiva, incorrendo em invencível erro de proibição indireto, também chamado erro de permissão. A inevitabilidade do erro, a isentar o policial de sanção penal, exsurge dos inúmeros acórdãos de tribunais pátrios no sentido da licitude da sua atuação. Nesse ponto, vale invocar novamente o parecer que inspira este ensaio: “Cabe salientar que os policiais que prenderam os recorridos não têm o conhecimento jurídico para que possamos dizer que praticaram abuso de autoridade, até porque há inúmeras decisões de nossos tribunais corroborando suas condutas, conforme demonstram as razões recursais do Ministério Público” (JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Direito processual penal: estudos e pareceres. 12ª ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p. 547).

[37] MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Volume I. Campinas: Bookseller, 1997, p. 135.

[38] MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado: referências doutrinárias, indicações legais, resenha jurisprudencial. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 1997, p. 42. No mesmo sentido: CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 77.

[39] A título de exemplo: HC n° 86.082, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 22.08.2008; HC n° 90.178, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe de 26.03.2010; e HC n° 95.244, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 30.04.2010.

[40] HC nº 106.664 MC/SP, Rel. Min. Celso de Mello, decisão publicada no DJe de 23.5.2011.

[41] No mesmo sentido: ORÇAI, Marcella Cordeiro. A (In)Validade da Delação Anônima. In: Tributo a Afrânio Silva Jardim: escritos e estudos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, pp. 361-381, p. 378.

[42] A propósito: “HABEAS CORPUS. FRAUDE EM PROCEDIMENTOS LICITATÓRIOS. INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS REQUERIDAS E AUTORIZADAS COM BASE APENAS EM DENÚNCIA ANÔNIMA. (…) 3. Se a denúncia anônima não é considerada idônea, por si só, para embasar a deflagração de procedimentos formais de investigação, com muito mais razão não se pode admitir a sua utilização, desacompanhada de outros elementos de convicção, para fundamentar a quebra do sigilo telefônico. Precedentes. (…) 4. Ordem parcialmente concedida apenas para determinar o desentranhamento dos autos das provas decorrentes das interceptações telefônicas autorizadas com base unicamente em denúncia anônima, e deferidas mediante pronunciamentos judiciais não fundamentados.” (HC nº 117.437/AP, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe de 20.10.2011 – grifo nosso).

[43] Fernando da Costa Tourinho Filho vislumbra na expressão empregada pelo legislador a exigência de “razões sérias, convincentes, de molde a se ter certeza de que o que se busca está naquele local” (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado. Vol. 1. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 583). No mesmo sentido, Fauzi Hassan Choukr alude a razões ou motivos prováveis, dotados de “certo grau de credibilidade que justifique afastar as garantias constitucionais” (CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de processo penal. Comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 422).

[44] RHC nº 29.447/MG, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 02.10.2012.

[45] Apelação Criminal nº 2007.050.05634, Quinta Câmara Criminal, Rel. Des. Geraldo Prado, julgamento em 19.06.2008.

[46] É comum na literatura nacional a menção ao discurso de Lord Chatham em alusão às origens do direito fundamental em comento. O texto transcrito constitui tradução encontrada em DOTTI, René Ariel. A liberdade e o direito à intimidade. In: Revista de Informação Legislativa, n. 66, Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, abril/junho, 1980. Consulte-se também MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2005, pp. 48-49. 

[47] GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Tradução de Geraldo de Carvalho; coordenação e supervisão de Luiz Moreira – Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 88.

[48] JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Direito processual penal: estudos e pareceres. 12ª ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p. 545.

[49] Conforme a salutar sugestão constante do parecer ministerial que o inspira: “(...) caso esta Egrégia Câmara adote o entendimento da decisão recorrida, seria interessante remeter o acórdão à Secretaria de Segurança Pública para ciência dos órgãos encarregados da repressão policial.” (JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Direito processual penal: estudos e pareceres. 12ª ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p. 547).

 

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