Há no Direito não apenas dogmas (não confundir com pensamento sistemático ou dogmático, nem com a “dogmática” jurídica) como há também ilusões, e algumas são ilusões de ótica.
Por exemplo: Aparentemente, a perspetiva dos fins das penas que dá pelo nome de “teoria da retribuição” (e que tem a sua exagerada apoteose no “retributivismo”) seria, de todas, a mais profundamente eivada de fundamentos éticos. Fazer pagar um mal a quem infligiu um mal seria uma regra do jogo justíssima, e de acordo, afinal, com o suum cuique. Hegel, nos seus Grundlinien..., numa das passagens que ainda hoje fará mais sentido para o leitor de hoje, dirá que a pena é um direito do criminoso, o suum afinal que lhe cabe, e que se lhe deve atribuir (quase escreveríamos “tributar”). Não fomos rever esse texto bastante pesado: recordamo-lo de cor...
Contudo, mais recentemente se tem suspeitado (ou mesmo declarado abertamente) que esta perspetiva pode andar demasiadamente presa a ideias de talião, e até eivada de alguns dos fantasmas do pensamento um pouco mais moderno (embora na essência não seja Moderno, da Modernidade), como a “culpa” associada à “moral judaico-cristã”. Tememos que tópicos mais ou menos engessados possam ser jogados contra outros tópicos, sem solução à vista.
A temática, para ser tratada a sério, com elevação, não se compadeceria com lugares comuns de vários dos lados envolvidos. E estamos certo de que daria várias teses de doutoramento. Não é tema para nós nem para hoje.
Mas evidentemente que alguma coisa se pode, com frieza e objetividade afirmar, embora sem entrar em debates de grande complexidade: cremos que uma avaliação destas questões antes de mais depende da perspetiva nem apenas jurídica, nem somente ética, mas verdadeiramente civilizacional (com uma dimensão de mentalidade e até espiritual, eventualmente: ainda que possa ser uma espiritualidade laica...) em que nos insiramos.
Quando o Direito é algo de rígido, dogmático, imposto, austero, quando ao entrar nas suas Casas, nos seus “palácios”, sentimos um arrepio provocado por um frio metafísico, certamente que esse “toma lá dá cá”, esse do ut des, essa lei de talião elaborada, subtilizada, mas ainda assim lei de talião, fará todo o sentido. É ainda o Direito como primeiro degrau da suavização da brutalidade primária pulsional, por um fenómeno de subtilização, de sublimação.
Mas quando o Direito deixa de ser o punitivismo “do aço frio das espadas”, como denunciou o poeta Teixeira de Pascoaes (que chegou a ser advogado e que defendeu uma mãe acusada de cometer infanticídio), quando, mais ainda, o Direito deixa de olimpicamente se colocar como se fora da realidade envolvente, vendado, e assume que vê - embora deva, vendo, ser justo e imparcial -, é um novo paradigma, de direito fraterno, de direito humanista, que pode suceder aos dogmas antigos. Sobre esse assunto desenvolvemos alguns estudos num livro recente (Direito Fraterno Humanista. Novo Paradigma Jurídico. Rio de Janeiro: GZ, 2017).
Neste domínio, tudo depende das pessoas, ou quase tudo. Se tivermos cidadãos irados, odientos, frustrados, com a subjetividade à flor da pele, sem nenhum sentido do social, do coletivo, sem qualquer laivo de solidariedade, de pouco valerão boas leis contra os seus maus costumes. Mas há pessoas que começam a estar cansadas do estafado jogo de polícias e ladrões, de mocinho e bandido, de vinganças afinal em cadeia. De ódios de estimação, de corrupção sem fim à vista, no fundo, num plano puramente narrativo: há quem esteja farto, cansado, exausto com a repetição das mesmas estórias, as quais não redimem nada, não edificam nada, apenas repetem sem fim o mesmo enredo, mudando apenas os efémeros protagonistas.
Há quem, sofrendo terrivelmente com perdas, de bens ou de entes queridos, concentre toda a sua atividade e dedique toda a sua vida à vingança. É impressionante como alguns se assumem com essa missão. A história do Conde de Monte Cristo é apenas uma delas, e contada em grande estilo.
Mas nem todos têm essa fibra vingadora. Um dia destes, estava numa esplanada, e ouvi um ancião com ar de sábio, que falava para um parente, neto ou sobrinho-neto, o qual (contra o costume atual da completa desatenção, para mais protegida pelo “celular”) o ouvia atentamente (e sem celular em riste).
Fiquei espantado com o que ouvi, mas isso dá esperança de que pode vir a haver um outro tipo de pessoas, com outra mentalidade. Dizia algo como isto:
“_Muitos me atraiçoaram, me espetaram facadas nas costas, não pagaram o que me deviam, disseram caluniosamente mal de mim a entes queridos, colegas e patrões. Mil patifarias me fizeram. Muito me prejudicaram pessoalmente e nos meus negócios. Porém, pessoalmente, confesso que não me dá a menor satisfação ir atrás dos que me fizeram mal. Não lhes guardo rancor.”
O jovem fazia um esgar indagador, não entendendo tanta “bondade” ou complacência. O jovem era certamente já fruto desta nossa sociedade de quem só quer vencer e vingar-se... E o velho insistia:
“_ Nada ganho com a desgraça dos meus inimigos, dos que decidiram sê-lo, porque pessoalmente nunca o fiz, da minha parte. Nunca escolhi um inimigo. Não quero vingar-me, embora suspeite que o Universo os punirá e amargamente. Já tenho visto isso ao longo da vida. Eu nada faço, não me vingo, desinteresso-me mesmo se o Estado, através dos seus órgãos judiciais, policiais, prisionais, pune ou não os vigaristas e outros bandidos com que me tenho cruzado. Por mim, não me alegro com a sua perda. Não me regozijo com a sua punição. Nem sequer procuro informar-me sobre o que é feito deles. Tenho até dó deles, quando acabo por saber as suas desventuras, que atribuo em parte a uma ordem inata no universo. Mas pode bem ser apenas coincidência... Vivo descansado, durmo bem. Dormir bem é o melhor remédio. E na minha idade...”
E depois a conversa tomou outro rumo, mais de medicina profilática ou preventiva...
Uma coisa é o desinteresse pela vingança, outra a comiseração pelos criminosos, ou, pelo menos (o que nem sempre é o mesmo) pelos condenados e presos.
Vilfredo Pareto, no seu enciclopédico Tratado de Sociologia Geral, que intimidou até um seu prefaciador relativamente recente, Raymond Aron, tem uma nota erudita sobre professoras que, condoídas com a sorte dos encarcerados, com eles se correspondiam. Não sei se ainda ocorre, dada a proibição da Internet nas cadeias e a substituição da epistolografia em papel pela digital na hora que vivemos. Contudo, é interessante essa dimensão também, que já no tempo do sociólogo e economista suíço dava sinais, com essa preocupação e interesse pelos privados de liberdade.
O Homem só é lobo do homem em condições especiais de agressividade, preconceito e raridade. Há possibilidade de uma sociabilidade altruísta, solidária, fraterna. Nem todos são essas professoras que escreviam cartas para suavizar a solidão dos presos. Nem todos são o velho tranquilo da esplanada de Santos.
Mas começa por cada um de nós. E começa antes de mais pelos juristas, que em vez de acicatarem por vezes os maus ânimos dos seus clientes, os deveriam elevar, e mostrar-lhes que há mais mundo e mais felicidade para além da litigância que envenena a vida. Veja-se o romance de Charles Dickens, Bleak House (Casa Soturna ou Casa Abandonada) de 1853. O nosso colega constitucionalista galego Prof. Antonio-Carlos Pereira Menaut chamou já há uns anos a atenção para as lições que podemos tirar dessa obra.
Em suma, a retribuição parece ser um aspeto dessa mundivisão jurídica (e geral) do individualismo possessivo, onde não há lugar para a flexibilidade, a desculpa, e mesmo o simples e plácido viver a vida. Há algo de mesquinho nessas personagens que só pensam no deve e no haver, e que não gostam de perder “nem a feijões”, perseguindo os seus inimigos (reais ou imaginados) até ao inferno. Claro, indo para o inferno também. Suspeito que em alguns casos antes dos inimigos que perseguem...
Um mundo em que a mais pequena ofensa seja perseguida com afinco pode redundar num caos infernal de guerra de “todos contra todos” hobbesiana, e se o sistema judicial for posto ao serviço de todas as vingançazinhas privadas de somenos a litigiosidade atingirá números colossais. As estatísticas já revelam que em alguns países a dama amiga dos tribunais dos Litigantes ou Quereladores (Les Plaideurs) do dramaturgo clássico francês Jean Racine está na moda: “Como pode haver contentamento na vida sem ter em mãos um processo?”. O problema é que ela não era, obviamente advogada, mas uma maníaca do processar...
A instituição romana do non liquet (um dia romanceada pelo nosso colega de Málaga Prof. José Calvo González) talvez nos pudesse dar alguma inspiração (ainda que remota) para uma futura seleção em tribunal entre casos relevantes e bagatelas jurídicas e mesmo assuntos não jurídicos, mas meramente técnicos, morais, ou de boas maneiras... Não se devem atulhar os tribunais com o que não é jurídico, e muito menos com simples más vontades e antipatias entre vizinhos... Deixemos a relva do lado de lá do muro ser mais verdade à vontade... Seremos muito mais felizes se, na verdade, cuidarmos do nosso próprio jardim.
Imagem Ilustrativa do Post: Escape // Foto de: Hernán Piñera // Sem alterações
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